Do livro A Coisa, 1929
G.K. Chesterton
Aventurei-me muito imprudentemente a escrever sobre o Espírito de Natal; e o assunto apresenta uma dificuldade preliminar sobre a qual devo ser franco. É curioso ver atualmente as pessoas falarem sobre “o espírito” de uma coisa. Há, por exemplo, um tipo particular de pedante que está sempre nos dando lição de moral a respeito os espírito do verdadeiro cristianismo. Tanto quanto posso compreender, ele diz o exato oposto do que ele pretende. Ele explica que devemos usar os nomes “cristão”, “cristianismo”, etc., para algo que possui o espírito que especialmente não é cristão; algo que é um tipo de combinação de otimismo infundado de um ateu americano com pacifismo de um hindu moderado. Da mesma forma, lemos muito sobre o Espírito de Natal no moderno jornalismo e mercantilismo; mas isto é um oposto do mesmo tipo. Longe de preservar a essência sem a aparência, preserva-se a aparência onde não pode haver a essência. É algo similar a tomar duas substâncias materiais, como o pinheiro e as bolas de natal, e espalhá-los por todos os enormes e frios hotéis cosmopolitas ou em torno de colunas dóricas de clubes impessoais repletos de cansados, cínicos e velhos cavalheiros; ou em qualquer outro lugar onde o real espírito de Natal tem a menor chance de estar. Mas há também outro modo em que a complexidade comercial moderna devora o coração de uma coisa, enquanto preserva sua casca pintada. E este é o sistema assaz elaborado de dependência da compra e venda, e, assim, do barulho e confusão; e da real desatenção com as novas coisas que poderiam ser feitas ao modo dos antigos Natais.
Normalmente, se tudo fosse normal nos dias de hoje, seria um truísmo dizer que o Natal foi um festival familiar. Mas é agora possível (como tive a sorte ou má sorte de descobrir) ganhar a reputação de paradoxal por simplesmente afirmar que truísmos são verdadeiros. Neste caso, claro, a razão, a única razoável razão, foi religiosa. Tinha a ver com uma família feliz porque era consagrada à Sagrada Família. Mas é perfeitamente verdade que muitos homens viram o fato sem especialmente sentirem a razão. Quando dizemos que a raiz foi religiosa, não queremos dizer que Sam Weller estava concentrado em valores teológicos quando disse a Fat Boy para “por um pouco de Natal” em algum objeto, provavelmente comestível. Não queremos dizer que Fat Boy teve um êxtase de contemplação mística, como um monge ao ter uma visão. Não queremos dizer que Bob Cratchit defendia o ponche ao dizer que estava apenas observando o vinho quando este era amarelo; ou que Tiny Tim citou Timothy. Apenas queremos dizer que eles, incluindo o autor, teriam confessado humilde e entusiasticamente que havia alguém muito anterior ao Sr. Scrooge, que poderia ser considerado o Fundador da Festa. Mas, de qualquer forma, qualquer que seja a razão, todos teriam concordado sobre o resultado. A festa do Sr. Wardle centrava-se na família do Sr. Wardle; e, ainda assim, porque as românticas sombras do Sr. Winkle e do Sr. Snodgrass ameaçavam a dividi-la para a formação de outras famílias.[1]
O período natalino é doméstico; e por esta razão a maioria das pessoas se preparam para ele apertando-se em ônibus, esperando em filas, correndo pelos metrôs, comprimindo-se em casas de chá, e imaginando quando ou se vão chegar em casa algum dia. Não sei se alguns não desaparecem para sempre na seção de brinquedos ou simplesmente se deitam e morrem nas casas de chá; mas pelas suas aparências, isto é muito possível. Exatamente antes do grande festival do lar, toda a população parece ter se tornado desabrigada. É o supremo triunfo da civilização industrial que, nas enormes cidades que parecem ter casas em excesso, há uma desesperada falta de moradia. Muito tempo atrás, grande número de nossos pobres se tornaram nômades. Nós até confessamos o fato; pois falamos deles como árabes das ruas. Mas essa instituição doméstica, na sua presente fase irônica, foi além de tal anormalidade normal. A festa da família transformou tanto o rico quanto o pobre em vagabundos. Eles estão tão espalhados no confuso labirinto de nosso tráfego e de nosso comércio, que não podem, algumas vezes, sequer chegar a uma casa de chá; seria indelicado, claro, mencionar uma taverna. Eles têm dificuldade em se aglomerar em seus hotéis, quanto mais em se separar e chegar a suas casas. Tenho em mente o contrário da irreverência quando digo que o único ponto de semelhança entre eles e a família natalina arquetípica é que não há espaço para eles na estalagem.
Ora, o Natal é feito de um belo e intencional paradoxo; que o nascimento do desabrigado deve ser comemorado em todos os lares. Mas o outro tipo de paradoxo não é intencional e não é certamente belo. É mal o suficiente para que não possamos desnudar a tragédia da pobreza. É suficiente mal que o nascimento do desabrigado, celebrado no lar e no altar, deva às vezes coincidir com a morte de desabrigados em asilos e favelas. Mas não precisamos regozijar neste desassossego universal que atinge ricos e pobres igualmente; e me parece que nesta questão precisamos de uma reforma do moderno Natal.
Não emitirei outro brilho de paradoxo ao observar que o Natal ocorre no inverno.[2] Isto é, ele não é somente a festa dedicada à domesticidade, mas é colocada deliberadamente sob condições em que é muito mais desconfortável correr por aí do que ficar em casa. Mas sob as complicadas condições das modernas convenções e conveniências, surge este mais prático e mais desagradável tipo de paradoxo. As pessoas têm de correr para lá e para cá por umas poucas semanas, mesmo que seja para ficarem em casa por umas poucas horas. A velha e saudável idéia de tais festivais de inverno era esta: que as pessoas estando fechadas e sitiadas pelo clima se voltavam para seus próprios recursos; ou, em outras palavras, tinham a oportunidade de mostrar se havia algo em seu interior. Não é seguro que a reputação de nossos mais modernos e elegantes caça-prazeres sobreviveria ao teste. Algumas terríveis revelações seriam feitas de algumas figuras favoritas da sociedade, se elas fossem isoladas do poder da máquina e do dinheiro. Elas estão muito acostumadas a ter tudo nas mãos; e mesmo quando vão aos mais recentes bailes dançantes americanos, parece que só os músicos negros dançam. De qualquer forma, para a média da saudável humanidade acredito que este isolamento de todas estas conexões mecânicas seria um alento e um despertar. No presente, elas são sempre acusadas de meramente se divertirem; mas elas não estão fazendo algo tão nobre ou compatível à sua dignidade humana. Elas, em sua maioria, já não podem se divertir; estão acostumadas demais de que outros as divirtam.
O Natal deve ser criativo. Dizem-nos, mesmo os que o prezam mais, que ele é principalmente precioso para preservar antigos costumes e antiquados jogos. Ele é realmente valioso para ambos estes admiráveis propósitos. Mas no sentido a que estou me referindo, pode ser novamente possível torcer a verdade. Não é que o Natal real deva criar coisas antigas, mas coisas novas. Ele poderia, por exemplo, criar novos jogos, se as pessoas fossem realmente levadas a inventar seus próprios jogos. A maioria dos antigos jogos começava com o uso de ferramentas comuns ou peças do mobiliário. Assim, as próprias regras do tênis se baseiam na estrutura do antigo pátio de estalagem. Assim, acredita-se, as estacas do cricket foram originalmente somente as três pernas do tamborete de tirador de leite. Ora, poderíamos inventar novas coisas desse tipo, se lembrássemos quem é a mãe da invenção. Quão prazeroso seria começar um jogo em que marcássemos ponto por acertar o porta-guarda-chuva ou o carrinho porta-refeição, ou mesmo o hospedeiro ou a hospedeira; claro, com um projétil de material leve e macio. As crianças que têm sorte suficiente de ficarem sozinhas no berço inventam não somente jogos completos, mas dramas e histórias de vida completos; elas inventam línguas secretas; conduzem laboriosamente revistas de família. Este é o tipo de espírito criativo que queremos no mundo moderno; queremos tanto no sentido de desejar quanto no sentido de sentir a falta. Se o Natal pudesse se tornar mais doméstico, creio que haveria um vasto aumento do real espírito de Natal; do espírito da Criança. Mas entregando-nos a este sonho, devemos, uma vez mais, inverter a convenção corrente em uma espécie de paradoxo. É verdade, em certo sentido, que o Natal é o tempo em que as portas devam ser abertas. Mas eu mandaria fechar as portas no Natal, ou pelo menos um pouco antes do Natal; e então o mundo veria do que somos capazes.
Não posso deixar de lembrar, com um certo sorriso, que numa página anterior e mais controversa deste livro eu mencionei uma senhora que estremeceu com a idéia das coisas perpetradas por mim e pelos de minha religião por trás das portas. Mas minha memória está suavizada pela distância e pelo assunto presente, e sinto o oposto de uma controvérsia. Espero que aquela senhora, e todo o seu modo de pensar, tenha também a sabedoria de fechar suas portas; e, assim, que ela descubra que somente quando todas as portas estão fechadas é que a melhor coisa será encontrada lá dentro. Se eles forem puritanos, que professam uma religião baseada apenas na Bíblica, que eles sejam, uma vez, uma Família da Bíblia. Se eles forem pagãos, que não aceitam nada exceto a festa de inverno, que eles sejam, pelo menos, uma família em festa. A discordância ou desconforto de que os modernos críticos reclamam, não são devidos a que o fogo místico ainda queima, mas que ele já esfriou. É porque os frios fragmentos de uma coisa antigamente viva são desajeitadamente agrupados. Brinquedos de Natal estão dançando sem harmonia perante tios graves e pagãos que prefeririam estar jogando golfe. Mas isto não altera o fato de que eles poderiam se tornar mais brilhantes e mais inteligentes se soubessem como brincar com os brinquedos; e eles são muito aborrecidos com o golfe. Seu tédio é apenas o último produto mortal do processo mecânico dos esportes organizados e profissionais, naquele rígido mundo de rotina fora de casa. Quando eram crianças, por trás das portas da casa, é provável que quase nenhum deles tivesse sonhos acordados e dramas não escritos que pertencessem a eles como Hamlet pertenceu a Shakespeare ou Pickwick a Dickens. Quão mais excitante seria se Tio Henry, ao invés de descrever em detalhes todas as tacadas com que ele se livrou do banco de areia, dissesse francamente que ele estivera numa viagem ao fim do mundo e capturara a Grande Serpente do Mar. Quão mais intelectualmente verdadeira seria a conversa de Tio William se, ao invés de nos dizer de quanto ele reduziu seu handcap, ele pudesse ainda dizer com convicção que ele era o Rei das Ilhas Canguru, ou o Chefe dos Pele-Vermelhas. Essas coisas, saídas desde dentro, eram quase todas puro espírito humano; e não é normal que a inspiração delas deva ser tão completamente esmagada por coisas desde fora. Que não se suponha por um momento que eu também esteja dentre os tiranos da terra, que imporia meus próprios gostos, ou obrigaria todas as crianças a jogar meus próprios jogos. Não desrespeito o jogo de golfe; é um jogo admirável. Eu já o joguei; ou melhor, eu já brinquei com ele, o que é geralmente considerado o exato oposto de jogar. Deixemos evidentemente que os praticantes do golfe joguem golfe e mesmo os organizadores o organizem, se sua única concepção de um órgão é algo como um realejo.[3] Deixem-nos jogar golfe dia após dia; deixem-nos jogar golfe por trezentos e sessenta e quatro dias, e noites também, com bolas banhadas em tinta luminosa, a fim de serem vistas no escuro. Mas que exista uma noite que as coisas brilhem desde dentro: e um dia que os homens procurem por tudo que está enterrado em si mesmos, e descubram – no lugar onde ele está realmente escondido, por trás de portões trancados e janelas cerradas, por trás de portas três vezes trancadas e aferrolhadas – o espírito de liberdade.
[1] Sam Weller, Fat Boy, Wardle, Winkle e Snodgrass são personagens de Dickens nos Pickwicky Papers e Bob Cratchit, Tiny Tim e o Sr. Scrooge em Christmas Carol. (N. do T.)
[2] No hemisfério norte. (N. do T.)
[3] Barrel-organ em inglês. (N. do T.)