15/02/2010

Um artigo comum

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929

Gilbert Keith Chesterton

Nota do tradutor – com este texto, Chesterton usa seu magistral conjunto de instrumentos literários para, de uma forma simples, talvez até simplória – dada a audiência a que ele se dirigia – para nos mostrar que qualquer sistema mais ou menos auto-sustentável de crença – seja ele político ou religioso –, usa, senão todos, alguns procedimentos do único sistema realmente auto-sustentável e indestrutível de crença jamais criado, a Igreja Católica – pois Quem a criou é a fonte da sua sustentação e força. Todos eles se reúnem em concílios, todos editam seus anátemas, todos excomungam hereges, todos são altamente sensíveis às heresias. Contudo, só a Igreja é acusada de fazer tudo isso.

O editor de um jornal vespertino publicou recentemente o que ele anunciou como, e até se desculpou por, um “artigo incomum”. Ele ansiosamente se acautelou de expressar qualquer opinião sobre as idéias temerárias e perigosas apresentadas pelo artigo. Desnecessário dizer que, depois de ler cinco linhas do artigo incomum, percebi que ele era um exemplo satisfatório de um artigo comum. Era mesmo uma cuidadosa e correta cópia de um artigo comum; um tipo de espécie premiada, como se a coisa pudesse ser ‘incomumente’ comum. Já lera o artigo antes, claro – milhares de vezes (penso eu) – e sempre dele pensara o mesmo; mas nunca antes, de alguma forma, ele me parecera exatamente o mesmo.

Há coisas de que o mundo está hoje subconscientemente muito cansado. Ele nem sempre sabe o que são; pois elas se apresentam comumente com grandes, embora desbotados, rótulos descrevendo-as como o Novo Movimento ou a Última Descoberta. Por exemplo, os homens já estão cansados do Estado Socialista como se já tivessem nele vivido por milhares de anos. Mas há algumas coisas cujo tédio já está se tornando agudo. Está agora muito próximo da superfície; e pode repentinamente acordar numa forma de suicídio, assassinato ou mesmo no ato de rasgar jornais com os dentes. Tal é o caso desse produto familiar, o Artigo Comum. Ele não é somente excessivamente comum; tem se tornado intoleravelmente, insuportavelmente, insustentavelmente comum. Ele é apropriadamente descrito como “O Clamor de uma Mulher às Igrejas”. Permitam-me anunciar que, embora eu seja de hábitos plácidos e firmes, e nunca tenha sido acusado de qualquer característica feminina como histeria, ainda assim, se tivesse lido este artigo mais três vezes, eu teria gritado. Meu grito seria intitulado, “O Clamor de um Homem aos Jornais”.

Repetirei, algo resumidamente, o que a senhora em questão gritou; pois o leitor já o sabe de cor. A mensagem de Cristo foi perfeitamente “simples”: que a cura para tudo é Amor; mas como Ele foi morto (não entendo muito bem a razão) por ter feito esta observação, grandes templos foram erguidos para Ele e pessoas horríveis chamadas padres têm dado ao mundo nada mais que “pedras, amuletos, fórmulas, crenças mortas.” Eles também “discutem eternamente sobre o lugar de um botão ou o ato de ajoelhar.” Tudo isso não oferece nenhum conforto ao infeliz cristão, que aparentemente deseja ser confortado apenas por saber que tem um dever para como seu próximo. “Quantos homens na hora de sua morte se confortam com o pensamento dos Trinte-e-Nove Artigos,[1] da Predestinação, da Transubstanciação, da doutrina da punição eterna, e da crença de que Cristo retornará no Sétimo Dia?” Os itens compõem um curioso catálogo; e o último item é para mim especialmente misterioso. Contudo, só posso dizer que, se Cristo foi um formulador da mensagem original e realmente reconfortante do amor, penso que FARIA diferença se Ele retornasse no Sétimo Dia. Do resto da lista, considero necessário distinguir os itens. Eu certamente nunca consegui nenhuma profunda ou calorosa consolação do pensamento sobre os Trinta-e-Nove Artigos. Nunca soube de ninguém que o tivesse feito. Da idéia da Predestinação, há, em termos gerais, duas visões; a calvinista e a católica; e faria a mais incomum diferença ao MEU conforto se eu acreditasse na primeira em vez de na última. É a diferença entre acreditar que Deus sabe, como um fato, que eu escolho ir para inferno; e acreditar que Deus me jogou no inferno, sem que eu tenha nenhuma escolha. Quanto à Transubstanciação, é mais difícil falar dela de forma simples; mas eu gentilmente sugeriria, aos outsiders mais comuns com algum senso comum, que há uma considerável diferença entre Jeová impregnando o universo e Jesus Cristo vindo a um recinto.

Toco rápida e relutantemente nesses exemplos porque eles exemplificam uma questão muito mais ampla dessa interminável maneira de falar. Ela consiste em falar como se o problema moral do homem fosse perfeitamente simples, enquanto todos sabem que não é; e então depreciar as tentativas de resolvê-lo citando longos trechos técnicos, e falar sobre cerimônias sem sentido sem perguntar sobre seu sentido. Em outras palavras, é exatamente com se alguém dissesse sobre a ciência da medicina: “Tudo que se pede é Saúde; o que pode ser mais simples que a graça da Saúde? Por que não se contentar para sempre com o brilho da juventude e do frescor de estar sempre bem? Por que estudar as ciências áridas e lúgubres da anatomia e fisiologia; por que inquirir sobre as condições de obscuros órgãos do corpo humano? Por que pedantemente distinguir entre o que é rotulado um veneno e o que é rotulado um antídoto, quando é tão simples curtir a Saúde? Por que se preocupar com a exatidão minuciosa do número de gotas de laudanum[2] ou da exata dose do cloral,[3] quando é tão legal ser saudável? Fora com seus sacerdotais aparelhos, tais como estetoscópios e termômetros; como suas ritualísticas fantasias de sentir os pulsos, examinar as línguas, etc.! O deus Esculápio veio à terra só para nos informar de que a Vida é completamente preferível à Morte; e este pensamento consolará muitos moribundos desatendidos por médicos.”

Em outras palavras, o Artigo Comum, que é agora velho de mil edições, era sempre besteira e contra-senso mesmo quando era novo. Pode haver, e ter havido, pedantismo na profissão médica. Pode haver, e ter havido, teologia que era superficial, árida ou que não oferecia consolação aos homens. Mas falar como se fosse possível a qualquer ciência atacar qualquer problema sem desenvolver uma linguagem técnica, e um método sempre metódico e quase sempre minucioso, meramente significa que você é um tolo e nunca atacou realmente um problema. Mesmo sem pensar na teoria de uma Igreja, se Cristo tivesse permanecido na terra por um tempo indefinido, tentando induzir os homens a amar uns aos outros, Ele teria considerado necessário estabelecer alguns testes, alguns métodos, alguma forma de separar amor verdadeiro de amor falso, alguma forma de distinguir entre tendências que arruinariam o amor e tendências que o restaurariam. Você não pode ter sucesso em algo, mesmo no amor, sem pensar. Tudo isso é tão óbvio que pareceria desnecessário repeti-lo; e mesmo assim é necessário repeti-lo, porque é sua superficial contradição que é agora repetida incessantemente. Sua superficialidade se estende em torno de nós como uma vasta imensidão em todas as direções.

O Artigo Comum tem um caráter que ocasionalmente alude à Nova Religião; mas sempre de uma forma assaz tímida e remota. Ele sugere que haverá uma crença melhor e mais ampla; embora raramente toque na crença, mas somente em sua amplidão. Não há nunca nele qualquer coisa que lembre sequer uma nota do verdadeiro inovador. Pois o verdadeiro inovador deve ser, em algum sentido, um legislador. Podemos colocar a questão de uma maneira hostil, dizendo que o revolucionário sempre se torna tirano. Podemos colocar a questão de uma maneira amigável, dizendo que o reformador deve se voltar para a idéia de forma. Mas qualquer um que funde uma nova religião, mesmo uma falsa religião, deve ter certa qualidade de responsabilidade. Ele deve se fazer responsável por dizer que algumas coisas devem ser proibidas e algumas permitidas; que há certo plano ou sistema que deve ser defendido contra a destruição. E todas as coisas que lembram em qualquer aspecto novas religiões, para fazê-las justiça, mostram essa qualidade e sofrem dessa desvantagem. A Ciência Cristã é teoricamente baseada na paz e quase na negação da guerra. Contudo, a guerra não tem sido pequena nos concílios desse credo; e as relações de todos os sucessores da Sra. Eddy tem sido tudo menos pacíficas. Não digo isso como um sarcasmo, mas como um tributo; devo dizer que esses procedimentos realmente provam que as pessoas envolvidas estão tentando fundar uma religião real. É um elogio aos cientistas cristãos dizer que eles também tiveram seus testes e seus credos, seus anátemas e suas excomunhões, suas encíclicas e suas caças às heresias. Mas é um elogio aos cientistas cristãos que eles dificilmente conseguem deixar de usar como um insulto aos cristãos. O comunismo, mesmo em sua forma final do materialismo marxista, tinha algo das qualidades de uma fé vigorosa e sincera. Teve uma delas pelo menos; expulsou homens que negavam o credo. Ambos, o comunista e o cientista cristão, estavam sob essa grave desvantagem; eles realmente transformaram uma fé num fato. Há tal coisa como um governo bolchevique e ele governa, mesmo que seja um desgoverno. Há tal coisa como curadores na Ciência Cristã; há provavelmente algo como cura na Ciência Cristã, mesmo que não admitamos que a cura seja saúde. Há uma Igreja em ativa operação; e por isso ela exibe todos os dogmas e diferenças de que se acusa a Igreja de Cristo. Mas a filosofia expressa no Artigo Comum evita todas essas desvantagens, pelo truque de nunca aparecer no mundo da realidade. Seu deus teme nascer; sua escritura teme ser escrita; consegue permanecer como a Nova Religião, prometendo sempre acontecer amanhã, nunca hoje. Ela se incha com orgulho espiritual, pois não pode impor o que não pode nem mesmo inventar. Ela brilha com uma auto-satisfação farisaica, porque não há crimes cometidos por seu credo e nenhum credo para ser motivo de seus crimes. Esse tipo de crítica é como um cirurgião que nunca faz uma operação malsucedida, pois nunca opera; um soldado que nunca falha porque nunca luta. Qualquer um pode falar indefinidamente sobre uma religião inexistente que será livre de todos os males da existência. Qualquer um pode sonhar com essa cristandade inteiramente humana e harmoniosa, cujo Cristo nunca nasceu e nunca foi crucificado. É tão fácil de fazer que uma centena de pessoas nos jornais e nas discussões públicas têm feito nada mais que isso nos últimos vinte ou trinta anos. Mas é tão fútil aplicar isso tudo a um ideal espiritual quanto aplicá-lo a uma teoria científica ou a um programa político; e menciono-o apenas porque acabo de ouvi-lo pela centésima vez; e sinto uma pequena esperança que posso estar mencionado-o pela última vez.


[1] Estabelecidos em 1563, definem a Igreja Anglicana em relação às outras confissões protestantes. (N. do T.)

[2] Tintura de ópio, contendo 10% de ópio e 1% de morfina. Prescrito para diarréia, dores ou para desintoxicação de bebês de mães viciadas em heroína e opióides. (N. do T.)

[3] Tricloroacetilaldeído, este aldeído é uma substância sedativa. (N. do T.)

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Do livro “A Coisa” ver A lógica e o tênis, Por que sou católico, A máscara do agnóstico, Um pensamento simples, A Revolta contra as Idéias, As superstições do protestante, Raízes da sanidade, Inge versus Barnes, O que pensamos a respeito, O que é “A Coisa”?

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