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12/08/2011

Crônicas de Gustavo Corção em pleno século XXI! Quem diria!?

Surpresa agradabilíssima ver um livro de crônicas do grande Corção publicado em pleno 2010 (Coleção Melhores Crônicas: Gustavo Corção, Editora Global). A seleção das crônicas e o prefácio da edição foram feitos por Luiz Paulo Horta, que desde 2008, leio em sua biografia no final do livro, é membro da ABL. 

No livro, (re)encontramos crônicas que são verdadeiras aulas de catecismo e doutrina católica: Advento, A Primazia do Espiritual, Quaresma, As Duas Vontades, Ressuscitou!, Precisa-se de uma Catarina de Sena, Rue du Bac, A Civilização do Prazer, Quinta-Feira Santa, Marcos de Eternidade, De Profundis, Credo in unum Deum, Morte e Mortificação, E Nós nos Gloriamos na Cruz. Há algumas crônicas que poderíamos classificar como chestertonianas, como Vênus e Natal Interior. Há crônicas de muito lirismo, algumas de crítica literária e musical; há algumas extraídas do grande livro de Corção, O Desconcerto do Mundo, que Manuel Bandeira saudou como digno de Prêmio Nobel, como o texto Machado de Assis e o Eclesiastes (aqui e aqui).

O livro ganharia muito se o Sr. Horta o tivesse acrescido de informações bibliográficas e de um pequeno estudo crítico do Corção cronista. A maioria das crônicas vem sem data e local da publicação original, o que dificulta, para o leitor recente de Corção, a apreensão das circunstâncias sob as quais o cronista escrevia. 

No prefácio, o Sr. Horta não consegue esconder sua admiração pelo grande lutador católico e pelo grande escritor, mesmo que esta admiração venha mitigada por críticas às suas posições políticas pós-64 e às sua posições teológico-doutrinais pós-CVII. Já o título do prefácio revela, talvez, o elevado lugar que o Sr. Horta reserva para Corção; Sinal de Contradição. 

Mas é exatamente no pequeno texto do prefácio, que o selecionador, e prefaciador, se mostra em confusão, ou mesmo em contradição. Não sei se o Sr. Horta é católico, mas suponho que sim. Sendo católico e um intelectual, membro da mais alta academia literária do país, ele nos surpreende por sua ingenuidade, na melhor das hipóteses, e aparente desconhecimento da gravíssima crise atual da Igreja, que já era anunciada e profundamente sentida por Corção. Ele diz, por exemplo: “João XXIII queria o aggiornamento da Igreja, uma Igreja que prestasse mais atenção aos ventos da modernidade, que se inserisse na vida de todos os dias. E isso de fato aconteceu; já não conseguimos pensar a Igreja sem o Vaticano II, com a sua valorização dos leigos, a reforma da liturgia que acabou com a missa em latim, e assim por diante.” Alguém que conhece minimamente o pensamento de Corção, não consegue deixar de imaginar o que ele diria acerca de tal comentário. O Sr. Horta subscreve certamente as idéias modernistas, condenadas pelo Papa São Pio X como a síntese de todas as heresias. Se ele não consegue pensar a Igreja sem o Vaticano II, é porque ele não consegue pensar a Igreja de forma nenhuma, pois há uma notícia que tem de ser dada ao prefaciador: a Igreja começou uns dois milênios antes desse concílio. Ora, dizer que o concílio “acabou com a missa em latim”, sem dizer, no mínimo, algo sobre o Summorum Pontificum, em pleno ano de 2010, é, desculpem-me a expressão, de lascar! Suponho também que a valorização dos leigos seja o aparecimento dos famigerados ministros da Eucaristia, da Comunhão da mão e de pé, das leituras feitas por leigos e leigas, etc. Isto não tem nada de catolicismo verdadeiro, é preciso dizer. 

O Sr. Horta continua: “No nosso cenário brasileiro, Alceu Amoroso Lima empunhou decididamente a bandeira dos ‘otimistas’, E, desde então, é difícil achar quem ainda sustente a tese de que o Vaticano II foi uma ameaça aos alicerces da Igreja.” É de se perguntar como um “imortal” pode ser tão ... (estou procurando uma palavra mais cordial) ... tão ... vá lá! desconhecedor de uma Fé que ele parece professar? Onde vive o Sr. Horta? Que paróquia freqüenta? Meu Deus! Será que ele já ouviu falar de Michael Davies, de Romano Amério, do cardeal Ottaviani, de Gherardini? Será que ele tem acompanhado as declarações atuais, ao menos, do episcopado brasileiro? (Vejam aqui e aqui, por exemplo.) Não sabe ele que mesmo Roma admite haver muitos, muitos bispos hereges? (Vejam aqui). Não terá o Sr. Horta lido Nelson Rodrigues, outro grande cronistas brasileiro, sobre Alceu Amoroso Lima, D. Hélder Câmara e os padres de passeata, que poucos anos depois do concílio já surgiam no cenário eclesiástico? Será que o Sr. Horta nunca leu Mt 7, 15-20? De um simples leigo católico pode-se desculpar um desconhecimento deste; não de uma intelectual, membro da Academia Brasileira de Letras. 

De qualquer forma, o livro com as crônicas de Corção vale pela lembrança do grande católico, do grande escritor e do grande chestertoniano brasileiro. O Sr. Horta e a Editora Global prestam, neste sentido, um serviço à memória do grande cronista e aos seus leitores, já antigos e os mais recentes.

06/05/2011

Machado de Assis e o Eclesiastes – Parte II: exegese machadiana


Em O Desconcerto do Mundo
Gustavo Corção


Recomendamos a leitura de Machado de Assis a quem desejasse apurar o ouvido para o áspero e aflitivo timbre do Eclesiastes. Agora sugerimos a leitura do livro atribuído a Salomão a quem desejar compreender um pouco melhor o tão caluniado pessimismo de Machado de Assis. “No Eclesiastes há tudo para todos” dizia já em 1895 o cronista da A Semana. Haverá, pois, para os críticos, uma chave que permita abrir os cofres secretos desse mesmo autor que em outra crônica, de 1893, escrevia: “Onde há muitos bens, há muitos que os comam, diz o Eclesiastes, e eu não quero outro manual de sabedoria.” São numerosas as passagens em que Machado se refere a esse manual de sabedoria tão adequado ao seu estilo, mas o que nos autoriza a dizer que o livro sagrado exerceu poderosa influência sobre o autor de Brás Cubas não é a freqüência da citação. É antes a profunda, a misteriosa perspicácia com que Machado penetrou o espírito do angustiado Qohelet. 

Nas páginas anteriores, seguimos a hermenêutica traçada pelos sábios comentadores, pela qual o Eclesiastes será um livro existencial, uma espécie de filosofia do absurdo, um manual de contra-senso escrito na pauta da limitação marcada pelos horizontes terrestres. Se a sorte do homem é o que se vê sob o sol, então a vida é um disparate. A forte estimulação desse livro consiste na confiança incondicionalmente posta na fé dos mandamentos. Esses, aconteça o que acontecer, não podem ser absurdos. Serão incompreensíveis como os sofrimentos de Jó e como o sacrifício de Abraão. No dinamismo das propulsões negativas, ou melhor, do vácuo produzido por essa bomba pneumática, tira-se a conclusão: a sorte do homem não pode limitar-se ao que se vê. Ou ainda, do que se vê tira-se todo um prenúncio do que está escondido. 

Os autores das modernas filosofias existencialistas optaram pelo absurdo. O que vale dizer que não optaram, e que ficaram detidos, imobilizados, sem ímpeto para atravessar o espelho e entrar no mundo das maravilhas. Dessa paralisação da inteligência resulta um pessimismo real, profundo, desconsolado e degradante, que não era, de modo algum, o pessimismo de Machado de Assis. Melhor do que a maioria dos nossos críticos, o inglês que comentou a tradução de Brás Cubas chamava a atenção para o que denominou pessimismo estimulante. 

Até seus últimos dias, na desolação da velhice e da viuvez, Machado de Assis conserva intato o senso moral. Se nos romances parece ter atingido um cansaço de vida e um desconsolo supremo, aí está sua correspondência para nos mostrar o outro lado do homem que persiste em crer no homem e na realidade moral. E a explicação desse dualismo está no Eclesiastes, que é por assim dizer um livro onde o principal é justamente o que falta: a notícia de nossa transcendência, e de nossa ressurreição. O princípio da complementaridade, que tem tanta importância nas teorias interpretativas da física moderna, e que também dá uma das regras capitais para a interpretação do Livro Santo, mostra-nos o desolado discurso do Qohelet como um sequioso apelo à outra metade da história que só muito mais tarde será revelada. O sábio-louco diz “tenho sede”, como Cristo na cruz, momentos antes da ressurreição. Sede de complemento, de completação, de consumação. Sede de solução. 

Ora, há uma passagem de sua obra onde se vê que Machado de Assis compreendeu muito bem essa complementaridade dos mistérios de Cristo: é aquela em que, ao Eclesiastes, contrapõe o Sermão da Montanha. Em 25 de março de 1894, o cronista da A Semana, disfarçando com guizos de frivolidade a sua sabedoria, entra a descrever um ofício da Paixão a que assistira. E termina assim a crônica como aquele seu ar de quem não sabe que está dizendo coisas enormes: 

“Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

– Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
– Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados.
– Vêde a injustiça do mundo. Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.
– Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
– Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males ...
– Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da  justiça, porque deles é o reino do céu. 

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de Esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo como o povo. E o sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos ...” 

Como se explica, pergunto eu, sem apelos ao caso, essa aproximação que tem finuras de sutil hermenêutica? Nós outros, depois de lermos muito sábios exegetas, chegamos a essa mesma conclusão. Depois de vivermos longos anos no convívio dos doutores em teologia, conseguimos entrever as escondidas intenções do antigo escritor inspirado. Machado achou aquilo sozinho, talvez na Rua do Ouvidor, porventura na mesma esquina onde teve a notícia do 15 de Novembro: “Disseram-me na Rua do Ouvidor que os militares proclamaram a república ...”    

03/05/2011

Machado de Assis e o Eclesiastes – Parte I: o Eclesiastes

Em O Desconcerto do Mundo
Gustavo Corção

Nota do blog: Compartilho com os leitores um trecho extraordinário de O Desconcerto do Mundo, livro que arrancou de Manuel Bandeira a seguinte frase, em bilhete enviado a Corção: o livro “precisa ser traduzido para todas as linguas, a fim de mostrar lá fora que nós também somos dignos do Prêmio Nobel.” Neste trecho, que dividi em dois posts, há, primeiro, uma exegese de Corção do Livro do Eclesiastes, e depois uma exegese do próprio Machado sobre o estranho livro bíblico.

Era o predileto de Machado de Assis esse livro estranho, desconcertante, que permitiu aos comentadores e exegetas a extensa gama de perplexidades que vai de um Pertersen, que denuncia o ceticismo e pessimismo do sábio Qohelet até o R. Pe. Buzy, que concebe a tese central do livro como uma filosofia otimista moderada do honesto meio-termo! E continua a ser o livro provocante, que assusta o leitor quando o citamos, ou quando afinamos nosso falar por seu diapasão. Aliás, apesar do movimento bíblico que corre paralelo ao movimento litúrgico, e apesar da encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII, não somente o Eclesiastes, mas toda a Bíblia permanece um livro fechado para a maioria dos católicos.[1] Em página famosa do Génie du Christianisme, Chateaubriand descreve o embaraço, o susto do católico mediando que pela primeira vez corre os olhos pelas páginas da Bíblia. É este então o Livro Santo?! Como discernir a palavra de Deus nesse amontoado de textos que parecem reunidos por acaso? Como ajustar a boa e sólida doutrina de bom comportamento e idéias medianas, a doutrina que a gente ouviu nos sermões ou leu nos livros edificantes, com essa torrente de fatos e personagens nem sempre louváveis, ou com essa erupção de imprecações e gemidos de desamparo?

É fácil imaginar o espanto desse leitor se a loteria das páginas folheadas o conduz àquele ponto onde alternativamente se exprimem o descrédito e o louvor da sabedoria, onde se diz que a vida é detestável e logo após se canta uma alegria de viver num tom que deixa divididos os exegetas, onde, em suma, a tese e a antítese se acotovelam. Como também é fácil imaginar o choque desse leitor na passagem do livro de Jó (clique também aqui) onde a voz de Deus, dentro da tempestade, repreende os amigos de Jó, cujos discursos, pelo tom razoável e piedoso, tanto se assemelham ao que se ouve nos bons sermões paroquiais. 

No Eclesiastes a dificuldade começa pelo pluralismo de tons. Há diversas vozes. Haverá diversos autores? O Pe. Buzy, comentador do livro na Bíblia dirigida por Louis Pirot, pronuncia-se a favor da pluralidade de autores, que seriam os seguintes: Qohelet, autor dos discursos principais sobre as decepções e vaidades da vida; um piedoso judeu, hasid em hebraico, incumbido de retocar e mitigar as asperezas da primeira voz; um sábio, hakham, autor de numerosas sentenças disseminadas pelo livro sem ordem aparente; e finalmente o epiloguista, que fala de Qohelet na terceira pessoa e que encerra o livro inopinadamente em termos de fidelidade aos mandamentos. Mas R. Pautrel S.J., comentador do opúsculo publicado pela Escola Bíblica de Jerusalém, acha perfeitamente admissível a unidade de autor desde que se tome o pluralismo de vozes como uma discussão interior, como uma espécie de assembléia dos personagens tirados por clivagem de uma agonia íntima, de uma perplexidade vivida. Nesse sentido, Qohelet, o personagem mais eloqüente e mais embaraçador, seria uma espécie de eu antitético, um antieu, ou um contraditor que resolve exprimir brutalmente suas dificuldades. Para o Pe. Pautrel, que me parece muito mais fino do que o Pe. Buzy, o nome de Qohelet já por si só sugere uma assembléia interior, esse ecclesia dos debates platônicos. (...) 

Fala então Qohelet, e diz o que se vê sob o sol, isto é, diz o que é a vida limitada aos horizontes terrestres. Tudo é vão, e de nada lhe vale a sua sabedoria, porque é a mesma a sorte do louco e do sábio. Chega a maldizer a vida e o dia em que nasceu. Chega a dar parabéns ao aborto. Pois tudo é decepção, tempo perdido, vazio, vaidade, perseguição do vento. E conclui que devemos comer e beber alegremente, assim como hoje se diria que é isto o que se leva desta vida.  É a nossa parte.

Diante de tão subversiva doutrina, o Pe. Buzy se assusta e procura nos convencer que Qohelet apenas verbera os excessos da sabedoria, a estudiosidade curiosa e não a própria sabedoria. Sua filosofia seria assim a do honesto meio-termo. (...)

Mais corajosa e muito mais fina parece ser a interpretação de R. Pautrel, que se situa na mesma linha adotada por Setillange (...).

No debate interior a que se refere o comentador da Escola Bíblica de Jerusalém, Qohelet aparece como um sábio-louco, ou como um sábio que desatou por instantes a mordaça de um doido. E até o deixou usar, na antítese das decepções, palavras que cantam as alegrias da vida como as do insensato do Livro da Sabedoria (Sab. II, 8-9): “Coroemo-nos de rosas antes que elas murchem! Não faltemos aos lugares de prazer, e atrás de nós deixemos o sulcos de nossos gozos, porque essa é a nossa parte.”

Os outros personagens respondem ao apaixonado libelo, à filosofia do absurdo de Qohelet, com palavras de sabedoria positiva e obediente à fé; respondem com paciente obstinação; respondem como Abraão respondeu ao Senhor quando preparou obedientemente a imolação de Isaac. Mas o hasid piedoso e o judicioso hakham não conseguem neutralizar o machadiano observador que observa o que se passa sob o sol. E não conseguem porque não possuem ainda as bem-aventuranças, e a chave da ressurreição, a única que pode responder adequadamente aos absurdos da vida. E o epiloguista encerra essa estranha mesa-redonda de uma alma ardente dividida com palavras inopinadas, que deixam o debate mais aberto do que nunca: “Além disso, meu filho, fica prevenido de uma coisa: escrever livros é um trabalho sem fim que cansa o corpo. Dou por terminado o discurso. Se bem entendeste, teme a Deus e guarda os mandamentos ...” Como assim? Se bem entendi o quê? Terminado como? A tentativa de exegese racionalista se ressente de uma falta de finura que o erudito, suposta a possibilidade de tal conversão, poderia adquirir na leitura de Machado de Assis, de Sterne, de Camões. Essa leitura profana não traz autoridade para orientar a interpretação dos textos sagrados, mas tem a virtude de aguçar a alma e permitir melhor sincronismo como as intenções e subintenções de um autor difícil. O que então se depreende é que o ácido tom do Eclesiastes revela uma lúcida e penetrante ciência das coisas vistas sob o sol. Essa ciência, que tem ares de loucura, é verdadeira, pungentemente verdadeira, desde que se observe bem o condicionamento estabelecido pela clave fundamental do discurso: sub sole. É um pessimismo – não um brutal e degradante pessimismo como o dos modernos que academicamente se instalam e vivem da filosofia do absurdo – é um pessimismo estimulante, como o dom de Ciência que desabrocha nas lágrimas. É também uma pedagogia de provocação, contra o torpor criado pelo naturalismo e contra a secura do racionalismo cientificista, que nos leva a procurar mais alto a chave de nossa sorte. Embora em pauta diferente, O Livro do Eclesiastes tem a mesma intenção do Livro de Jó, e inscreve-se dentro do depósito sagrado como uma espécie de demonstração por absurdo da transcendência de nossa vocação, pois de outro modo, se tudo se limita ao que se vê sob o sol, ao castigo dos bons, à impunidade dos maus, à glória dos impostores, e ao massacre dos inocentes que se tornou uma rotina das civilizações, então a vida é realmente absurda e só nos resta comer e beber, como dirá o Apóstolo, ou só nos resta a coroa de rosas, enquanto não murcham, ou então o riso, a mofa, a figa aos prestígios do mundo e a língua de fora aos astros indiferentes. “Eia! Chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te. É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.”

Leiam também Machado de Assis e o Eclesiastes - Parte II: exegese machadiana.


[1] Se isto era verdade em 1965, imagine agora, depois de 50 anos de CVII! (N. do Blog)

28/04/2011

Gustavo Corção, o Chesterton brasileiro

Nota do blog – O título deste post é, na verdade, o título de um post futuro, que ainda vou escrever. Quero mostrar num futuro próximo que nenhum escritor brasileiro, dos poucos que foram influenciados pelo autor inglês, foi tão chestertoniano quanto Gustavo Corção. Não examinarei Três alqueires e uma vaca, que é um livro escrito sobre Chesterton, de uma forma completamente chestertoniana; ou seja, um livro sobre Chesterton, mas não inteiramente biográfico. Um livro que o próprio autor admite ter escrito com Chesterton, a quatro mãos. Quero examinar, sobretudo, A descoberta do outro, o primeiro livro escrito por Corção. Mas quero agora apenas compartilhar com meus leitores este artigo de nosso Chesterton brasileiro sobre o Chesterton inglês. O título do artigo é simplesmente G.K. Chesterton. É um artigo que eu gostaria de ter escrito, tivesse eu a competência de um Corção, pois expressa muito de minha própria experiência com o gigante da rua Fleet.
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Graças à vigilância de Antônio Olinto, na sua “Porta de Livraria” de O Globo, chego ainda a tempo para saudar o centenário de G. K. Chesterton, o incomparável escritor inglês que mais indelevelmente me marcou a alma nos dias em que andei perdido pelo mundo a procurar uma luz, luz de João e Maria, luz de Casa, luz de acolhimento entre as trevas de meu triste exílio. Devo a Chesterton as primeiras alegrias católicas. No seu grande livro, Ortodoxy, onde esteve mais à vontade para atirar nos braços da cruz seu jogo de inebriantes paradoxos, entre outras descobertas maravilhosas do cristianismo, ele nos diz aquilo que Cristo de si mesmo nos escondeu: “There was some one thing that was too great for God to show us when He walked upon our earth; and I have sometimes fancied that it was His mirth.” Tentemos traduzir estas palavras de ouro com que Chesterton fecha sua obra-prima: “Uma coisa houve que era n’Ele grande demais para nos ser mostrada enquanto Ele andou por este mundo, e eu penso às vezes que foi sua alegria”. Ou seu riso. Ou seu júbilo. O termo mirth é aqui intraduzível. E ouso dizer que o grande poeta da língua fechou seu livro-jóia sabendo bem que só podia encerrar com um termo impróprio, tratando-se de coisa que esteve sempre presente e todavia escondida na vida de Jesus.

Outro notável inglês deixou-nos, sobre a poesia, uma definição inesquecível: “poetry is emotion recollected in tranquility”; donde nós tiramos uma definição de liturgia: “liturgy is passion recollected in tranquillity”, cujo teor paradoxal, próprio do Mistério da Fé, parece mostrar, sob as aparências do júbilo e da festa, a dor e o Sangue de nossa Redenção. Fiel a esse espírito, Chesterton não procurou nos seus tão admirados paradoxos fazer acrobacias verbais, e muito menos procurou jogos para agradar os jovens e os imaturos. Pascal, com seu timbre de abismos, não é mais trágico nem mais sério do que Gilbert Keith Chesterton, em cuja obra, como disse atrás, eu tive a felicidade de encontrar no caminho daquilo que Jesus nos escondeu, isto é, das mais puras e vivas alegrias católicas deste mundo. Com um extraordinário vigor do Dom da Ciência, que está na linha da Fé e da Esperança, isto é, das virtudes peregrinas, Chesterton viu que o mundo, e mais fortemente os dias deste século de corrida atrás do vento, está desconcertado, subvertido, de cabeça para baixo, e então, para poder descobrir melhor seus erros e suas malícias, punha-se ele mesmo freqüentemente de pernas para o ar. Sua obra de apologia, assim condicionada, fazia função de revulsivo, de purgativo, e operava inopinadas restaurações nos desconcertos do mundo. O personagem principal de O poeta e os loucos era ágil, nessa ginástica, e, em quase todos os contos dessa série, quem diz loucuras é o sábio, o sisudo, o poeta, o sério; e quem fazia as mais desvairadas loucuras era o homem pausado, equilibrado na representação diplomática dos desvarios do tempo.

Chesterton criou, depois de Edgar Poe e Conan Doyle, o tipo de novela policial em que o genial investigador, longe de ser o esmiuçador sagaz e raciocinante, era o Padre Brown, o Padre Vicente O.F.M., seu amado confessor, que tinha os olhos lavados pela Fé e pelo colírio das lágrimas e assim conseguia, mesmo cochilando, descobrir os meandros da malícia mais pela ingenuidade do que pela sagacidade. Em A Esfera e a Cruz, espécie de romance simbólico e apocalíptico, reaparece o personagem obsessivo de Chesterton, em luta implacável, mas por fim, cordialíssima, com o ateísmo desvairado da época. Na verdade, porém, não é o ateu Tornbull o adversário; não, em A Esfera e a Cruz, o espírito hediondo que Chesterton detesta, como detesta o Diabo, é o liberalismo que pretende evitar o confronto e a luta entre o Bem e o Mal. O personagem mais repugnante da sucessão de figuras que se levantam contra o Combate é o pacifista, contra o qual Chesterton não disfarça sua náusea extrema. Porque Chesterton foi sempre guerreiro. Em tempo e contratempo combateu o bom combate, e guardou a Fé até o momento supremo em que o Padre Vicente, depois de ministrar-lhe a extrema-unção, ajoelhou-se aos pés da cama do agonizante e com piedade profunda beijou a pena que estava à mesa-de-cabeceira, como que a descansá-la também, depois de ter escrito mais de oitenta volumes a serviço de seu Rei e de sua Dama.

Grande falta nos fazem hoje autores como Chesterton, que souberam desarmar, denunciar, desmascarar os ídolos, os ideais dos tempos modernos, que não passam das “antigas virtudes cristãs tornadas loucas” ou perversas.

Na falta dessa leitura saudável, tônica, fortificante, curativa, inebriante do melhor espírito, surgiu em seu lugar, a fazer um sucesso editorial que deveria ruborizar o planeta Terra e empalidecer o planeta Marte, surgiu o repulsivo impostor Teilhard de Chardin, que renega a Fé, abandona os mestres da Companhia de Jesus e da Igreja, para inventar uma gnose tola, de medíocre ciência ensopada com religião ainda pior, graças a cuja fétida composição consegue atrair os espíritos fracos.

Não me canso de agradecer a Deus o fato de ter encontrado Chesterton nos dias de desolação em que, sempre crendo em Deus-Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, das coisas visíveis e invisíveis, não conseguia, entretanto, encontrar a alameda e a porta de Sua Casa. A par de todos os defeitos e imperfeições, tenho a alma muito agradecida, porque desde cedo até tarde, na tarde da vida, deu-me Deus a ventura de sentir a dependência em que vivi, de minha mãe, de meus irmãos, de meus alunos, de meus professores, de todos os que neste longo trajeto que já se aproxima do marco assinalado pelo salmista para os vigorosos, sim, sempre tive a ventura de sentir muito melhor o bem que me fizeram e que especialmente reservo aos que me ajudaram na morte para o mundo. E entre esses reservo um especial lugar no altar que hoje adornei em meu velho coração para lembrar G. K. Chesterton.

O resto desta apologia e deste estudo está no livro Três alqueires e uma vaca, que escrevi quando, graças a Chesterton, entre tantos autores e amigos, consegui passar no vestibular da Casa do Pai, isto é, consegui voltar à Fé e à Igreja de meu batismo. Ave Maria! 

 O Globo 06/06/1974.
Do site Permanência.

20/04/2011

No Sangue

Nota do blog: não custa nada, nesta Semana Santa de 2011, lembrar o valor do Sangue de Nosso Senhor. Acompanhemos o grande Corção, que rastreia este Sangue e o traz até nós, sem deixar de nos alertar acerca do sofrimento da Igreja, de seu sangramento, nestes tempos de modernismo extremo.
Gustavo Corção


Desde os primeiros anos de sua peregrinação na terra, "entre as aflições dos homens e as consolações de Deus", a Igreja sempre marcou uma especial devoção pelo Sangue de nossa salvação. Já o Apóstolo em Hebreus IX, 22 diz: "É com sangue que quase todas as coisas se purificam e sem efusão de sangue não há salvação". 

Mas foi no tormentoso século XIV que Catarina de Sena, nas cartas e nas lições ditadas aos seus discípulos, pôs uma singular ênfase na riqueza de significações do Sangue, sim, uma ênfase marcante no Sangue! Transcrevemos a seguir algumas amostras de sua pregação colhidas ao acaso no livro Sainte Catherine de Sienne vous parle do Pe. S. Bezin O.P., ed. L´Abeille, Lyon, 1941: "Corramos, então, corramos todos cristãos fiéis, atraídos pelo odor do Sangue" (pág. 251). "Inebriemo-nos do Sangue de Jesus crucificado já que o temos ao nosso alcance. Não nos deixemos morrer de sede. Não nos contentemos com pouco, mas tomemos muito para nos embriagarmos e nos afastarmos de nós mesmos". "Nós não fomos resgatados por preço de ouro, nem somente por amor mas pelo Sangue". "Não há outra maneira de saciar o homem: somente neste Sangue poderá alguém se desalterar". "Este Sangue é nosso, foi derramado para nós, ninguém nô-lo pode tirar a não ser nós mesmos" (pág. 252). 

Folheando o epistolário de Santa Catarina de Sena em seis volumes (Le Lettere di S. Catarina de Siena, Casa Editrice Marzocco, Firenze 1947) não resistimos ao desejo de transcrever mais este grito da Dolce Mama: "Caminho sobre o sangue dos mártires, o sangue dos mártires ferve e convida os vivos a serem fortes". 

Tenho a firme convicção de que Santa Catarina de Sena falava com esta obsessiva insistência por uma razão muito simples e muito extraordinária: a vigésima terceira filha do tintureiro Benincasas via o Sangue do nosso Salvador em todos os sinais sagrados da Igreja. Quando por exemplo ela procurava seu confessor Frei Raimundo de Capua costumava dizer: "Vou-me ao Sangue".

De bom grado ficaria aqui a contar histórias da dolce mama Catarina; mas o encontro marcado deste artigo me obriga a seguir o roteiro que deixa quinhentos anos para trás a santa padroeira da Itália. 

* * *

Foi efetivamente no século XIX, no longo e glorioso pontificado de Pio IX, que o preciosíssimo Sangue de Jesus teve no calendário da Igreja o lugar que merecia. Pio IX, caro leitor, foi o grande Papa que sempre combateu os graves erros de seu tempo sem nenhuma transigência e acomodação à mentalidade contemporânea. E não somente denunciou os erros de uma "civilização" apóstata, como também nos ensinou o modo de combatê-los. 

Em 9 de novembro de 1846 Pio IX lançou com a encíclica Qui Pluribus, seu primeiro brado de alerta; mais tarde, em 8 de dezembro de 1864, publicou a encíclica Quanta Cura, à qual anexou o famoso Syllabus que catalogava as proposições errôneas que a Igreja condenava, e que ainda hoje, onde ela estiver, una e santa, continua a condenar. Todas essas publicações foram firmadas na santa intolerância, sem a qual não há nem pode haver catolicismo fiel a Deus e marcado pelo Sangue de nosso Salvador. 

Essa pregação desencadeou a fúria dos anarquistas italianos (carbonários) que, comandados por Garibaldi e Mazzini, conseguiram expulsar de Roma o Papa para júbilo de todos os revolucionários da época, e de todos os liberais que, desde então, fizeram tudo para lançar à execração pública até hoje as encíclicas de Pio IX, principalmente o Syllabus. 

Os soldados franceses e pontifícios conseguem dominar a fúria dos carbonários, e com o apoio deles o Papa volta a Roma. 

Em ação de graças por essa vitória contra os inimigos da Igreja, Pio IX teve a idéia de marcar no calendário católico uma data litúrgica que ficou até anteontem fixada no dia 1o. de julho, sendo o mês inteiro consagrado ao Preciosíssimo Sangue. Até anteontem a festa do Preciosísismo Sangue era considerada "duples de primeira classe". 

Será preciso dizer aos nossos leitores que no atual calendário da liturgia alterada, reformada ou deformada "para se acomodar à mentalidade contemporânea" da Igreja pós-conciliar, foi suprimida a festa do Preciosíssimo Sangue? E por quê? Primeiro, por alguma razão que comandou todo o conjunto frenético das reformas. Creio eu entretanto que a "Igreja Conciliar" e "Pós-conciliar" sente uma aversão sistemática pelo caráter de luta, de vitória e de sangue que destoa, para eles, de todas as aberturas e de todos os ecumenismos. Ocorre-me a idéia de associar a supressão do culto do Preciosíssimo Sangue, ao silêncio sepulcral da Hierarquia na data do quarto centenário da miraculosa vitória de Lepanto. Que eu saiba, em 7 de outubro de 1971 só manifestou júbilo nessa data, aqui no Brasil, a excelente publicação o Catolicismo. Para caracterizar ainda melhor esse silêncio, tivemos uma notícia singular: por ordem superior a Santa Sé, com certo alarde, devolveu os troféus, digo melhor, as relíquias daquela vitória, aos turcos. "Que turcos?" perguntou-me aflito e divertido Ariano Suassuna a quem contava eu a história de tão cômica e trágica devolução. 

Decididamente a "nova Igreja" que pretende eclipsar a Igreja Católica, não gosta de soldados, não gosta de lutas e não gosta de sangue e também não gosta de odiar o mal como Santa Catarina recomendava: "Deveis odiar o mal com os dentes". Daí o frenesi de concessões e de ecumenismos agora adotados pelas hierarquias em contradição formal com a Doutrina imutável da Igreja. 

Ao menos resta-nos um proveito nesta supressão da data litúrgica escolhida para a comemoração do Preciosíssimo Sangue. Que proveito? O de tornar cada dia mais evidente que a chamada "Igreja pós-conciliar" opõe-se sistematicamente à Tradição Católica, colocando os fiéis numa alternativa estapafúrdia: recusar as "novidades" que vêm de Roma ou acatar todos os atos, ditos e feitos do Papa reinante e para isto renegar o Depósito sagrado e os ensinamentos que a Igreja por seus 254 papas nos legou como tão bem disseram os Cardeais Ottaviani e Bacci no Breve Exame Crítico do Novo Ordo dirigido ao Papa Paulo VI no dia de Corpus Domini, em 1969. Eles disseram que as reformas litúrgicas pós-conciliares "... põem cada católico na trágica necessidade de escolher". Eu já escolhi. 

O Globo, 13/7/78

O último artigo entregue por Gustavo Corção ao GLOBO foi publicado com o noticiário sobre sua morte. Este texto, embora estivesse concluído, só foi encaminhado à redação após a morte do escritor, por seus colaboradores.

03/12/2008

Uma terrível mensagem de Natal: SE ELE NÃO TIVESSE VINDO

Nota: Neste Natal, o presente do blog aos seus leitores é TERRÍVEL, mas absolutamente necessária. Gustavo Corção nos alerta sobre a responsabilidade que o Natal nos trouxe, há mais de 2000 anos. “Se Eu não tivesse vindo ...”


Gustavo Corção


“Se Eu não tivesse vindo e não lhes tivesse dirigido a palavra,
eles não teriam pecado; mas agora não há desculpas
para o pecado deles” (Jo. XV, 2).

Estas palavras terríveis ditas por Jesus na noite da Ceia, devem ser lidas e meditadas com especial atenção nos atuais tempos litúrgicos, para bem apreendermos o nexo entre a Natividade e a Paixão, e sobretudo para aprendermos um vislumbre das dimensões trágicas da vinda de Jesus para a nossa Salvação. Costumamos pensar que Jesus recém-nascido trouxe ao mundo, para nos salvar, uma atmosfera com perfumes dos céus e cânticos dos anjos; costumamos associar a idéia de Natal à de um socorro da divina misericórdia, pousado no regaço da Virgem Santíssima e todo feito de delicadezas e fragrâncias; ora, é Ele mesmo, no momento supremo em que nos ensinará na última estação o segredo de Sua vinda. E diz-nos estas palavras das quais inferimos que, se não se pode dizer sem absurdo e blasfêmias que Ele nos trouxe o pecado, pode-se entretanto dizer que, a este mundo já marcado pelo pecado mal definido, cinzento, misturado ao bem de um modo desordenado, Jesus trouxe a Ordem que discrimina mal e bem, e trouxe aos homens, com preço e condição da Salvação, um sentimento mais agudo, uma responsabilidade abismal. Essa iluminação moral, que nos mostra que todo mal é uma ofensa a Deus, já estava anunciada nos clamores proféticos, mas o mundo inteiro, na confusão da cinzenta mistura muito vagamente sentia a Vontade de Deus contrariada. De uma maneira cósmica, nas catástrofes, nos incêndios e nas inundações, tinham uma vaga intuição de que os elementos irritados traduziam a irritação de uma alta instância. Mas esse vago panteísmo mais eclipsava do que elucidava o transcendental contraste do bem e do mal, e principalmente a noção de pecado pessoal cometido contra um Deus pessoal.

“Se Eu não tivesse vindo...” diz-nos Jesus na hora da Paixão não se teria realizado o plano eterno de Deus: o de oferecer aos homens um alvo, um blanco, contra o qual, nitidamente, com inacreditável ferocidade se concentrasse a maldade difusa para que o cinzento desse lugar ao claro-escuro, e o bem fosse chamado bem, e o mal, mal. “Se o mundo vos odeia, sabei que a Mim Me odiou primeiro”. E também: “Aquele que me odeia, odeia também meu Pai”.

Então, retornando pela terceira vez a terrível declaração de Jesus, diríamos que o Natal, Sua vinda, foi também a vinda do ódio mais consciente, mais nítido e mais cruel. Mas para que a humanidade pudesse abrir os olhos para essa consciência do mal como ofensa a Deus, como ódio a Deus, o Pai inventou esse recurso extremo de se tornar acessível às mãos dos homens: “Se és Deus, adivinha quem Te bateu!” Coroara de espinhos: “Salve o Rei dos Judeus!”.

E assim, por Sua vinda e por Sua Paixão, Jesus trouxe a Ordem que da ao mal o nome de mal, e ao bem o nome de bem.
“Agora já não poderão esquivar-se: Se Eu não tivesse vindo, e não lhes tivesse falado, eles não teriam pecado; mas agora o pecado que cometem, chama-se pecado, sem subterfúgios, sem pseudônimos”.

Por isso, quis o Pai, desde o princípio, que a Religião de nosso perdão fosse a Religião que por isso mesmo dá ao pecado o nome de pecado. Mas também, se na divina invenção todos os homens que se levantam contra Deus, contra Sua Vontade, contra Sua Lei são participantes da flagelação de Jesus, este com a sua bofetada, aquele com sua martelada nos pregos da cruz, aquele outro com o escarro na Santa Face, sim, sim, se a humanidade inteira, agora sem desculpas, tem participação de verdugo na Paixão, também está incluída na invenção de Deus os santos recursos que oferecem a todos os homens a participação de vítima, a participação de sacrifício oferecido ao Pai.

Na verdade, na verdade, não sei como pode um coração humano, sem estalar de dor, suportar a lembrança da profundidade de seu pecado, e a lembrança da altura de sua esperança. Nem entendo como é possível pensar na Ceia do Senhor como um ameno e festivo encontro de onde os padres e bispos tiram modelo para brincadeirinhas mais ou menos sexuadas entre jovens! Nem entendo a frivolidade com que se mexeu e remexeu no Santo Sacrifício da Missa para agradar aos heréticos, aos frívolos e aos anormais.

* * *

Uma das características de nosso tempo é justamente aquele cinzento informe, desordenado, anárquico, onde bem não é bem e mal não é mal, ou tanto faz como tanto fez. Este estado de toda uma civilização é o estuário de erros trazidos e acumulados por séculos de Revolução contra Deus, contra a Igreja, para a reconquista do ameno charco inconseqüente, que era o mundo depois do Pecado, e antes da Vinda de Cristo.

“Se não fosse minha vinda...” O Demônio para bem persegui-la, conhece melhor a Sagrada Doutrina às avessas do que os bispos modernistas ou simplesmente modernos que querem fazer da Igreja uma barraca atraente, agradável, divertida. Essa Igreja persegue Jesus pela degradação, pela inflação, pela vulgarização a fim de que, com seu apagamento, se apaguem da memória dos homens aquelas palavras: “Se Eu não tivesse vindo...” e então voltava ao mundo a mistura de mal e bem, e o tranqüilo esquecimento de Deus.

E nessa direção que trabalham todos os ditos progressistas que se esforçam por fazer da Igreja um circo, um cassino, um lupanar qualquer coisa onde possam agradar aos homens, até o desprezo de Deus.

Artigo tirado do site da Permanênca

07/07/2008

Gustavo Corção e Bento XVI

Há trinta anos, ontem, morria Gustavo Corção. Não sei se alguém mais se lembrou da data. Não sei nem quantos brasileiros conhecem a obra de Corção. Mas, para quem não conhece, e mesmo para quem conhece, vale a pena ler o texto de D. Lourenço Fleishman, no site Permanência (aqui).

Só vim conhecer a obra de Corção há poucos anos. Quando ele morreu, eu cursava engenharia e era, como todos os alunos da universidade (de então e de agora), esquerdista. Achava lindo ser esquerdista. Se o tivesse lido na época teria odiado o velho mestre.

E o que o papa tem a ver com tudo isso? Bem, por uma dessas coincidências, o prof. Orlando Fedeli escreve hoje no site Montfort um artigo dando conta de que as fontes murmurantes de Roma anunciam coisas muito importantes para a Igreja. Coisas que talvez alegrassem Gustavo Corção e que serão postas em andamento, proximamente, pelo papa Bento XVI.

Esta noite rezarei pela alma de Gustavo Corção, pedindo a Deus que sua obra não desapareça da memória dos brasileiros, que seus livros (todos eles) sejam reeditados e que seus ensinamentos voltem a aproximar da Igreja de Cristo todos os seus leitores.

11/05/2008

Uma aula de Gustavo Corção: Cientificismo, senso comum e a Igreja

Gustavo Corção

Nota do blogueiro: Neste texto excepcional (parte do capítulo III – A revolução se avoluma – do monumental “O Século do Nada”), Gustavo Corção nos ensina o que é cientificismo e quais são suas conseqüências, assunto de uma recente resenha que publiquei neste blog. O texto é longo e demandará muita paciência ao leitor. Talvez nem seja um texto adequado a um blog. Contudo, como o livro de Corção está fora de edição há anos, senão décadas, e é dificílimo de encontrar em sebos, resolvi publicá-lo assim mesmo. Fiz muitas correções de texto e de ortografia no texto original. A edição de que disponho foi muito mal revisada e não faz jus à importância do texto, nem à erudição do autor. Introduzi também algumas observações, nos lugares que considerei conveniente, e as marquei com “N. do B”, nota do blogueiro, para distingui-las das notas do próprio Gustavo Corção. Faço também alguns destaques no texto, colocando-os em negrito. Vamos ao texto!


Com o objetivo de apontar, na bacia hidrográfica a que nos referimos atrás, os principais afluentes que convergem todos na caudalosa Revolução que faz de nosso século um estuário de contestações e recusas, comecemos por este "ismo" que, no livro anteriormente citado (Dois Amores, Duas Cidades, AGIR 1967), foi apontado como uma das primeiras conseqüências da poluição nominalista.[1] Cremos que vale a pena transcrever algumas linhas dessa obra:

Como atrás já dissemos, o termo cientificismo não designa o maior incremento de pesquisas nem o maior ardor de estudo nos domínios das ciências naturais. Tudo isto, em si, é bom. O que não é bom é o estado de espírito que coloca a ciência da natureza na presidência de uma civilização, depois da expulsão da Sabedoria.

Uma vez que a inteligência não alcança as coisas superiores — diz o homem moderno — apliquemo-la no trabalho de apalpar o fenômeno para deles tirar uma nova confiança em nós mesmos, e para ordenhar a nosso gosto a imensa mãe telúrica, brutal, que às vezes, no seu sono pesado, mata os próprios filhos.

Esse estado de espírito nos primeiros tempos produzirá grande euforia. A humanidade, depois de descobrir a pólvora, o movimento dos astros, a força do vapor, o poder mágico da eletricidade, terá, como teve nos séculos XVII, XVIII, XIX,
momentos de inebriado otimismo.

A cândida idéia que logo ocorrerá nos espíritos fracos é a de que, na continuação dos tempos, a Ciência do fenômeno polirá todas as arestas do Velho Homem, iluminará todas as trevas, resolverá todas as dificuldades. Ora, essa idéia, comicamente
falsa, extravagantemente, delirantemente falsa foi difundida e tornou-se o ar que respiramos e a água que bebemos, e isto aconteceu porque a Civilização Ocidental moderna já não tinha à sua presidência os dados da antiga Sabedoria.
Se a tivesse, ouviria a censura clara e irreputável: a ciência dos elementos exteriores dilata o campo do domínio do homem sobre as coisas exteriores e inferiores, mas nada acrescenta ao domínio do homem sobre si mesmo.
Uma civilização ( . . .) não pode ser governada pelas ciências da natureza que é cega, surda e conseqüentemente muda para os problemas mais comuns e mais profundos de nossa vida. Como já disse em outra obra[2], a ciência pode-nos dizer que nossos pulmões estão anormais e devem ser tratados desta ou daquela maneira, mas é inteiramente incapaz de nos dizer, de nos sugerir o que podemos ou devemos fazer de nossos pulmões normais.

Hoje eu não diria que o cientificismo, isto é a falsíssima idéia que espera da ciência inferior solução para os problemas superiores, difundiu-se depois da desmoralização e do destronar da Sabedoria; antes diria que essa tentação foi um dos fatores que contribuiu para a rejeição da Sabedoria. E, assim dizendo, estarei apontando o "cientificismo" (e não a legítima glória das ciências) como um dos fatores do revolucionarismo vacuador da civilização.[3]

O cientificismo e o senso comum [4]

Para entender bem o processo demolidor da subversão cientificista é preciso compreender a imensa significação que teve nesse drama a desmoralização do "senso comum" promovida pelos "intelectuais" a partir do século XVIII sempre em nome da "Ciência". Todo o drama cultural que no século XVIII capitaliza explosivos para a Revolução Francesa começou pelo repúdio do senso comum, que eu chamaria de "pétite sagesse" e que foi a primeira vítima da torrente nominalista que inundou os tempos modernos. E para compreender bem a gravidade e a infinita conseqüência desse processo precisamos saber o que não é, e o que é o "senso comum" neste contexto. Poderia remeter o leitor à citada obra (Dois Amores, Duas Cidades, AGIR, 1967, vol. II p. 57 e seg.) ou recomendar o profundo estudo de R. Garrigou-Lagrange, Le Sens Commun (Desclée de Brouwer, Paris, 1936); mas cremos prestar bom serviço avivando e condensando aqui as noções principais.

De início lembremos que todo o homem já nasce com todos estes dons de sua natureza racional:

a) a alma espiritual ou forma específica pela qual o homem é homem;

b) as potências da alma: a inteligência e a vontade racionais;

c) as inclinações inatas determinadas pelo condicionamento (inclusive o corpóreo e o sensível) que favorecerá ou desfavorecerá a sorte ulterior dos hábitos adquiridos:

d) os primeiros princípios, que são dons de natureza.

A partir desse núcleo essencial começa a história das aquisições intelectuais e morais. O senso comum se situa na zona dos primeiros acervos da razão especulativa e da razão prática, é uma primeira metafísica rudimentar, e uma primeira filosofia moral. Situado entre a cercadura dos primeiros princípios, e a cercadura maior e mais confusa do consabido cultural de cada época, ouso dizer que o senso comum, de importância vital para todo o desenvolvimento ulterior do homem, está muito mais próximo dos primeiros princípios do que do firmamento das coisas sabidas por todos num momento histórico, e portanto participa mais da perenidade da metafísica (digo da reta metafísica) do que da fluência e da mobilidade do consabido que anos atrás ignorava totalmente os raios laser, o código genético, a existência de um planeta transnetuniano e outras coisas desse tipo.

O senso comum é um acervo das primeiras elaborações dos primeiros princípios e poderá ser enriquecido ou deformado pelo envoltório cultural.

Gostaria de me estender longamente sobre a transcendental importância do senso comum tanto na vida temporal, particular ou pública, como na vida da Fé, que se torna dificilmente praticável numa sociedade que perde a docilidade ao real, e o instinto racional quase espontâneo que levaria a razão a bem considerar as coisas se não houvesse perturbações culturais trazidas pela enxurrada da história. Sem o senso comum sadiamente começado e alargado sem estorvos, dificilmente pode o homem começar a fazer filosofia e teologia, dificilmente pode ser vivida a sabedoria. Este é o drama dos tempos modernos, desde a Renascença e a Reforma, que na obra anteriormente citada chamei "civilização do homem exterior". E nesta "civilização", mal nascida de imensos dramas intelectuais, morais e religiosos de toda a Cristandade, e marcada com os sinais genéticos do nominalismo, um dos fatores mais nocivos para o senso comum, e portanto a todo o edifício da civilização e de seu relacionamento com a Igreja, foi o cientificismo. Torno a dizer: não foi em si o progresso da ciência das coisas exteriores e inferiores — a física, a astronomia, etc. — que é razoável e constitui uma glória para o homem, e sim o preço filosófico e religioso que custou esse progresso, por ter sido orgulhosamente armado em forma de rejeição de mais altos graus de saber, isto é, em forma de revolução.

Até hoje a pestilência do cientificismo continua a produzir seus frutos, como se vê no prazer sádico com que um Betrand Russell, sob pretexto de filosofia matemática, tentou desmoralizar o senso comum, e como se vê no próprio nível vulgar da estupidez moderna que é, toda ela, tecida de pedante e asmático cientificismo.

Creio poder afirmar que um dos grandes pioneiros desse espúrio subproduto das ciências foi Galileu — ou mais exatamente — foi o "affaire Galileu" em que o próprio foi um dos agentes, irias não o único. É pena que Jacques Maritain não tenha introduzido este d'Artagnan entre os Três Mosqueteiros da Revolução (Trois Réformateurs) que na verdade foram quatro. Para maior aflição nossa, o grande tomista teve a infelicidade de abordar o caso Galileu pela outra ponta que só vem servir os interesses da grande Rejeição. No seu livro recente, De l’Église du Christ (Desclée de Brouwer, 1970), Maritain aborda o caso mais explorado dos últimos 4 séculos como se estivessem em jogo os direitos da Ciência feridos pelo Santo Ofício, e não como efetivamente estava em jogo a pretensão do "cientificismo" e a injúria feita ao senso comum em nome do "progresso da Ciência"[5].

Em vista do papel de destaque que esse caso desempenhou no afluente revolucionário que nos trouxe a este estuário de erros, não resisto à idéia de inserir, com a maior condensação possível, algumas considerações que, de início, têm o picante do desafio, porque levam a mostrar que, no caso, certo estava o Santo Ofício e errado Galileu. E antes que clamores de asneiras escandalizadas cheguem ao meu tugúrio, apresso-me a explicar o problema em termos de exemplar moderação. E desde logo observo que só entenderá alguma coisa do imbróglio quem tiver, razoavelmente claras, meia dúzia de noções.

Entre essas noções dou lugar de destaque ao "senso comum" que é, por assim dizer, uma primeira trincheira onde temos de defender o humano. Forçado pelo espaço a contentar-me com o que disse no tópico anterior, e na leitura que remeto a Garrigou-Lagrange (Le Sens Commun), passo a ocupar-me da segunda, que diz respeito à estrutura e aos métodos das ciências da natureza: física, química, biologia, astronomia, etc.

O "depósito observado" e as "teorias"

Desde a Idade Média, e principalmente desde Santo Tomás, sabemos que convêm distinguir, no cabedal científico a que damos vários nomes, conforme seus objetos materiais, duas coisas:

a) O acervo dos dados observados e trazidos por observações e experimentações à prova da evidência sensível. Demos a este principal patrimônio, e principal critério das ciências o nome de "dado fenomênico" ou de "fenômenos observados", ou ainda lembremos o nome que lhe davam os escolásticos: "apparentia sensibilia" onde o termo "apparentia" não quer dizer "o que parece ser . . . " e muito menos "o que parece ser, mas não é", e sim "o que é evidente para o conhecimento sensível".

b) A segunda coisa é a síntese interpretativa feita de teorias destinadas a propor uma explicação conexa aos vários elementos dispersos do dado observado.

E aqui cabe um reparo importante: a teoria interpretativa, apesar de seu talhe imponente, é cientificamente sujeita ao observado, aos fenômenos, e só se mantém enquanto suas articulações e a costura de seu tecido de hipóteses explicativas conseguem dar conta dos dados observados. Santo Tomás, na questão relativa à possibilidade de prova metafísica da Trindade (S.T. Prima, Qu.32), chega à conclusão de que seria possível sem a Revelação adivinhar, propor a idéia de um Deus Trino refletido em todas as coisas, mas não é possível prová-lo como provamos a existência de um Ato Puro ou de um Ser A-ser. E então, para ilustrar genialmente com um exemplo astronômico, Santo Tomás diz que é evidentemente provado o movimento dos astros, que naquele tempo se enquadravam para cálculos de eclipses, etc, na teoria dos epiciclos que viera do Almagest de Ptolomeu e durante quatorze séculos conseguiu enquadrar os "dados observados"; mas logo o Doutor Angélico acrescenta com o mais lúcido discernimento científico (além dos outros mais altos) que isto não provava a teoria dos epiciclos, e que amanhã ou depois outra teoria interpretativa poderia dar uma explicação mais simples. O que importava era a salvaguarda de "depósito observado". Digamos como os escolásticos: "opportet salvare apparentia sensibilia".

Dois exemplos de ruptura de uma teoria interpretativa

Há nos tempos modernos dois exemplos curiosos e curiosamente cercados de circunstâncias e ressonâncias diversas. Comecemos pelo segundo: a saturação e os primeiros estalos de uma das teorias interpretativas mais gloriosas da ciência moderna: a da síntese newtoniana. Durante mais de dois séculos o mundo ocidental viveu tão solidamente agarrado à gravitação universal formulada por Newton que muitos, mesmo nos grêmios mais científicos, chegaram a esquecer a essencial distinção, i.e., chegaram a esquecer que a teoria interpretativa pode ter as costuras rompidas pelo advento de um fenômeno observado que nela não consiga encontrar explicação cabal. Tal era a convicção, mais cientificista do que científica, que milhões de pessoas não hesitariam em dizer que estava matematicamente provado que os corpos se atraíam na razão direta das massas etc. etc.

Ora, essa afirmativa era errônea (filosoficamente) porque nada se pode demonstrar matematicamente de coisas físicas. Pode-se observar, pode-se medir, mas essa mesma não é uma operação matemática e sim física.

Hoje sabemos que a grande síntese newtoniana não dava boa conta, por exemplo, do movimento do periélio de Mercúrio, nem conseguia enquadrar bem o eletromagnetismo depois de Maxwell. Por essas e outras e sobretudo depois de Plank e Einstein operou-se uma transformação do sistema de síntese explicativa para cumprir o preceito escolástico: salvaguardar o depósito observado. Não se trata pois de reformar, de revolucionar, e sim de procurar novos meios de sistematização que continuem o acervo adquirido e crescido. Não creio que tenha passado no espírito de Einstein ou de Plank que Newton fosse um trevoso medieval deixado para trás a babar na gravata, ou na gargantilha, que era o que se usava naquele tempo em que também se usava a ação a distância como vitória sobre o aristotelismo.

Aliás, convém lembrar que Netuno, descoberto com cálculos de Lavoisier do mais ortodoxo newtonismo, até a 6ª ou 7ª casa decimal do logaritmo, não tornou a mergulhar no ignoto, nem os eclipses, que ainda se calculam na mesma honrada mecânica celeste, que tão bons serviços prestou, deixam de comparecer, com a prevista pontualidade. Mas o fato incontestável é que a Física newtoniana assim chamada por seu lado hipotético-explicativo, cedeu lugar a uma outra Física que ainda se debate perdida numa excessiva soma de dados que andam à procura de uma nova roupagem.

O segundo exemplo de mudança de teoria interpretativa para mantença do "depósito observado" foi cronologicamente anterior à transmutação Newton-Einstein e ocorreu num clima de euforia já revolucionária. Refiro-me ao "caso Copérnico", que merece um tópico especial, mais por seu alarido do que por seu valor epistemológico.

A "revolução" coperniciana

A contribuição de Copérnico, por causa do ponto histórico em que ocorreu, produziu no mundo um ataque de estupidez que dura até hoje. Até então o sistema de Ptolomeu permitia prever a posição dos astros e o comparecimento dos eclipses, com uma precisão que só dependia do aperfeiçoamento dos aparelhos de medida (isto é, do instrumental de observação física), e todo ele se firmava em referenciais que estavam na Terra e eram tidos por imóveis. Da escolha desse sistema referencial fixado no observador terrestre resultavam os famosos epiciclos para adequada, e tão rigorosa quanto possível, previsão do movimento dos astros. Durante quatorze séculos esse majestoso sistema deu conta dos "dados observados", ou salvou os fenômenos como dizia Santo Tomás. Copérnico fez a experiência placidamente prevista por Santo Tomás; imaginou outra escolha de eixos coordenados com centro no Sol e viu que toda a geometria do movimento se simplificava se colocasse o Sol no centro do sistema planetário e se partisse do puro postulado (sem nenhuma base na observação) de serem circulares os movimentos dos planetas em torno do Sol.

É inegável a intuição que teve Copérnico nessa escolha de novos referenciais, mas há um colossal exagero no valor que passa o mundo inteiro a atribuir-lhe. Na verdade, nem o instrumental matemático possuía esse cientista e foi um matemático alemão Georg Rhéticus (1514-1516) que, ouvindo falar em sua teoria, veio trabalhar dois anos com ele. Com os dados observados retomados no século XV por George Burlach (1423-1461), da Universidade de Viena, e sobretudo por seu discípulo Johannes Miiller (1436-1476), que haviam estudado na Itália as versões gregas do original de Ptolomeu, puderam ambos elaborar a obra principal que Copérnico publica: De revolutionibus orbium coelestium. Morre poucos anos depois (1543) sem ser
incomodado por ninguém e talvez sem imaginar que lançava uma outra revolução diferente do giro circular dos planetas. A chamada revolução coperniciana é realmente uma revolução no sentido que hoje dou a este termo. Sem culpa nenhuma do autor, a mudança de eixos de uma cinemática trouxe fortes abalos culturais, e muita gente sentiu efetivamente um abalo no nível do senso comum, e até hoje as vítimas do cientificismo exageram o feito, ignoram as controvérsias, ignoram que a estrepitosa "revolução coperniciana" nada descobriu na natureza física dos astros, mas pouco mais fez do que rearrumar os eixos de uma geometria do movimento, i.e., de uma cinemática. E sobretudo ignoram que, facilitando embora os cálculos astronômicos de previsão da ascensão reta e da declinação dos planetas, e das datas dos eclipses, o sistema do Copérnico não trazia melhor aproximação do que os cálculos feitos com os epiciclos de Ptolomeu, e até de certo modo se arriscava a trazer erros maiores, porque, enquanto os astrônomos tradicionais se apegavam aos dados observados que extrapolavam, Copérnico apegava-se a priori, e sem base física, à idéia antiqüíssima, pitagórica, de órbitas circulares.
Há, assim, na festejada novidade um divertido anacronismo que vem precisamente do fato de ser mais imaginoso do que cientista o autor de De revolutionibus. . ., e do fato de não ter sido dócil ao observado como ensinava Santo Tomás; "opportet salvare apparentia sensibilia". É curioso notar que o conhecido autor da revolução coperniciana, além de apriorista em matéria física, era rigidamente tradicionalista quando censurava Ptolomeu por ter-se afastado demais de Pitágoras. E eis aqui um divertido paradoxo resultante da mistura do cientificismo com uma espécie de mística, ou de gnose, com a qual Copérnico é ao mesmo tempo o abridor de portas do século XVI e o fiel pitagórico de vinte e dois séculos atrás! Kepler (1571-1630), quando descobrir a forma elíptica das órbitas planetárias e as famosas três leis do movimento planetário, dirá que Copérnico não soube aproveitar a riqueza que tinha nas mãos. Cumpre porém notar que, mesmo depois do apuro trazido pelas leis de Kepler ao movimento dos planetas, aplica-se à astronomia do tempo a mesma queixa formulada por Francis Bacon contra Galileu e Copérnico.

Adversário do método elaborado por Galileu, que consiste em isolar os fenômenos do contexto natural, para estudar somente os aspectos mensuráveis, e para desenvolver depois vastas teorias matemáticas sobre a base dos resultados, Bacon reclama a consideração dos fatos que tenham relação com a matéria tratada: em astronomia, por exemplo, a natureza física dos corpos celestes, que Copérnico desprezava, e a resistência do ar na queda dos corpos, desprezada por Galileu... [6]

Na verdade, a astronomia até Kepler, e antes de Newton, reduz-se a uma cinemática baseada em medidas de ângulos: era uma trigonometria esférica em movimento, com duas dimensões angulares, e uma 3ª dimensão de duração t. Exagerei dizendo em outro lugar[7] que se reduzia a uma cinemática colocada no 2º grau da abstração matemática. Onde há medida experimentalmente feita, com régua e transferidor, por exemplo, já há uma espécie de topografia do espaço físico. O que se pode dizer, sem exagero, é que aquela astronomia era de uma magreza física esquelética que não tinha o direito de passar dos entes de razão, ou da teoria interpretativa para matrícula no acervo fenomênico, a não ser com prova física, isto é, reduzida experimentalmente a uma evidência sensível, a uma "apparentia sensibilia".

Mesmo depois de Newton (1642-1727) é ainda prematuro dizer que está fisicamente provado o movimento de rotação da Terra, e fisicamente justificada a escolha do centro do sistema planetário no astro que condensa a maior massa. É somente depois da medida da constante g de gravitação, realizada em laboratório por Cavendish, (1731-1816), que a chamada lei da gravitação universal pode ser provocada, medida e, assim, enquadrada no acervo fenomênico. Mas ainda é cedo para dizer que está cientificamente provado que o Sol atrai os planetas na razão direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias, porque o verbo atrair implica toda uma teoria interpretativa. Na física moderna ainda não se solidificou uma tranqüila teoria da gravitação, mas a tendência parece ser a de procurá-la mais numa "forma" do espaço-tempo em torno de uma massa do que numa ação a distância.

Ainda depois de Kepler, Newton e Cavendish é prematuro falar em prova física do movimento diurno da Terra, que só ingressa no patrimônio do "dado observado" com as experiências do pêndulo de Foucault, na cúpula do Panthéon de Paris, em 1850.

Reflexões sobre ciência autônoma e heterônoma

Apesar do título rebarbativo, o que queremos dizer neste tópico é simples e relevante: sendo as ciências empíricas (a astronomia, a física, a biologia, etc.) compostas de duas partes, um acervo fenomênico ou um "dado observado" de um lado, e uma "teoria interpretativa" de outro, é fácil adivinhar a soma de equívocos que advirá quando tomarmos uma coisa pela outra. E aqui cumpre notar que, embora não pareça, a primeira parte é muito mais inacessível e impopular do que a segunda, porque são poucos os que entram em confronto direto e fraterno com o irmão-fenômeno, e muitos são os que lêem as notícias das sínteses teóricas, quase sempre em formas vulgarizadas e brutalizadas.

Tomemos por exemplo o movimento diurno da Terra.

Muito poucos são os que fizeram ou refizeram a experiência de Foucault, e os que, com o olho colado à ocular do círculo meridiano, puderam verificar com aproximação cada vez maior a uniformidade do movimento angular dos "pontos no infinito" que cruzam os fios do retículo. Todos os outros que falam da rotação da Terra, de oitiva falam. De ouvir dizer e não de coisa vista ou diretamente ouvida. Essa grande e respeitabilíssima maioria dos não-astrônomos, o pouco que sabem de astronomia não o sabem com ciência adequada e autônoma, sabem-no por informação, por fé humana, ou por ciência pobre, inadequada e heterônoma. A mais lúcida inteligência do mundo, digamos por exemplo Jacques Maritain, fala com toda a simplicidade do acerto de Galileu, da mancada do Santo Ofício, sem se dar conta de que a verdade "científica" do movimento da Terra só é por ele conhecida em nível colegial de ciência heterônoma, colada por informação.

Arma-se aqui um problema filosófico interessante e indispensável à compreensão dos equívocos tecidos em torno do "caso Galileu". Será hoje o movimento diurno da Terra um simples dado do consabido, uma ciência realmente heterônoma de pura informação, ou será hoje um dado do senso comum e, portanto, sob certo título, uma ciência muito mais densa do que uma simples informação?

Respondeo dicendum que, nos tempos de Galileu e Copérnico, a rotação da Terra era um dado da teoria interpretativa, sem prova física para os próprios autores e defensores da idéia, que abusavam de seus dons intuitivos, divinatórios, ou de suas faculdades oníricas quando a apresentavam como fisicamente provada. Galileu chegou a dizer, sem direito de fazê-lo, que sentia-o (o movimento da Terra) como se o tocasse com as mãos. O glorioso florentino, nesse passo, abusava de seus talentos e cometia fraude epistemológica. E aqui não me venham dizer — pelo amor de Deus e das verdades menores — que o futuro deu razão a Galileu e provou que era verdade o que afirmava, porque a honra e dignidade do cientista não consiste em ter intuições de que outros mais tarde darão a prova adequada a esse grau do saber. Não, mil vezes não. A honra e dignidade da ciência não consiste em acertar como na loteria (que só mais tarde comprova o acerto), consiste essencialmente em dar as razões do que assevera e demonstrar o que diz com os recursos adequados a esse grau de saber. Foucault poderia dizer, metafisicamente, que sentia o movimento diurno da Terra como se o pegasse, mas Galileu, sem fraude ou abuso, não podia. Mas não é ainda aí que se situa o nó da questão para o qual abrimos este "respondeo dicendum", é na posição do problema em relação ao senso comum. Perguntávamos se hoje o movimento da Terra é um simples dado do consabido, ou do dilúvio de informações, ou se já ganhou lugar no senso comum. E agora respondo dizendo que hoje o movimento da Terra se incorporou aos dados periféricos do senso comum porque entre os dados mais nucleares da petite sagesse está a confiança no que se tornou opinião universal e incontrovertida apesar da minguada minoria dos astrônomos.

Diferente era a situação no tempo de Galileu: a influência do consabido da época no senso comum tornava-o pouco acolhedor de uma transposição de eixos que colocasse o observador no Sol a menos que se atribuísse ao Sol uma imutabilidade e outros atributos cientificamente desnecessários para salvaguardar o "depósito observado", mas psicologicamente necessários para amolecer as resistências do senso comum e predispô-lo a novidades fantásticas de caráter gnóstico em que se misturavam dados de ciência e de religião entremeados.

O heliocentrismo e o culto do "Deus-Sol"

A História é sempre composta de uma face clara, consciente, superficial, onde se demarcam as datas, se travam as batalhas e se mudam os regimes, e de outra subterrânea, por onde correm os vasos capilares de mistério, irracionalismo e perpétua conspiração que os homens inventam nas profundezas da alma com a ilusão de conjurar assim as variadas aflições da vida.

O claro e estridente século da Renascença e da Reforma, com toda a sua presunção cientificista, ou por causa dela, não escapou à regra geral e até pode-se dizer que confirmou-a com certo exagero. Assim é que no próprio domínio da ciência que produzirá o cartesianismo e o culto das idéias claras vê-se o lado sombra formado pelo culto religioso do Sol, que vigorava na era das pirâmides, no Egito e na Mesopotâmia.[8]

Num recente artigo,[9] Lewis Mumford assinala a estranha composição do "progressismo" do século XVI, metade mecanicista e metade gnóstico, sendo de notar que a parte gnóstica, esotérica ou mágico-supersticiosa, não era trazida pelas classes mais ignorantes, mas pelos mesmíssimos "filósofos" que enaltecem a ciência e que no século seguinte começarão a preparar a revolução. Vale a pena inserir aqui algumas passagens de Mumford:

Se algum ponto da História pode ser assinalado como o início da moderna concepção do mundo, concepção mecânica, expressão de uma nova religião e base de um novo sistema de poder, esse ponto está na quinta década do século XVI. Nesse tempo não foi apenas o sensacional De revolutionibus Orbium Coelestium, de Copérnico, que veio a lume; foram também o tratado de anatomia De Humani Corporis Fabrica, de Vesalius (1543), a Ars Magna, álgebra de Jerônimo Cardano (1S4S), e a teoria da bacteriologia patogênica enunciada por Fracastor em De Contagine et Coníagionis Morbis (1S46). Cientificamente pode-se dizer que foi a década das décadas.


A maneira usual de interpretar a chamada revolução coperniciana é a que considera como principal efeito a ruptura de uma teológica e assentada concepção, pela qual Deus colocara a Terra no centro do universo, e fizera do homem o objeto último de Sua atenção. Se o Sol é efetivamente o centro do universo, então toda a estrutura da teologia dogmática cristã — com seu único ato de criação e a alma humana tida como interesse central de Deus, e a provação moral do homem neste mundo como preparação para a vida eterna em conformidade com a vontade de Deus — toda essa estrutura está ameaçada de colapso.

Observo eu que não é a Sagrada Congregação do Santo Ofício que está dizendo essas coisas em Roma nos idos de 1616, é o atualíssimo e muito lúcido autor de The History of Utopies que nos descreve o impacto cultural, teológico e, conseqüentemente, o impacto na fé católica trazido pelo "heliocentrismo", e nos prepara o espírito para a divertida surpresa de ver o refluxo desse impacto sobre os próprios autores das descobertas, invenções, utopias ou sonhos.

Continua Mumford:

Visto através das novas lentes da ciência, o homem encolheu. Em termos de escala astronômica, o gênero humano totaliza pouco mais do que um efêmero e inquieto mofo deste pequeno planeta. A ciência, que realizou esta impressionante descoberta pelo simples exercício das naturais faculdades humanas e não pela divina revelação, tornou-se a única fonte de autêntico conhecimento digno de crédito. Tudo isto, porém, embora nos pareça hoje tão claro, não foi imediatamente reconhecido por aqueles que estavam mais profundamente cativados pela nova religião...


Cabe aqui um reparo: esse encolhimento do homem não ocorreu logo no século XVI, após a formulação do heliocentrismo por Copérnico, porque a escala astronômica só ganhou divulgação depois da medida da distância do Sol que, não podendo ser feita por método puramente trigonométrico com base na Terra como a distância da Lua, foi efetivada pelo astrônomo Halley em 1631 por um processo mais indireto, que envolvia a observação de uma passagem de Vênus sobre o disco solar observada por dois astrônomos muito afastados. Essa distância, que orça por 149.000.000 quilômetros, passou a ser o metro da nova escala astronômica que
somente no século XIX (1840), quando Bessel mediu a primeira paralaxe da estrela 6N do Cisne, ganhou as dimensões de anos-luz que logo passaram de 4,3 (da estrela mais próxima, Alfa do Centauro) para milhares, milhões e bilhões de anos-luz com os sucessivos progressos da espectroscopia, da fotometria e da atual radioastronomia. Como, porém, "tudo isto foi descoberto pelo simples exercício natural das faculdades humanas, segundo observa Lewis Mumford, o conseqüente encolhimento do homem esmagado pela escala astronômica foi alternativamente seguido de momentos de narcisismo idolátrico: o próprio homem, em vez de passar de pulga a Napoleão, como na cabeça de Raskalnikoff, oscilava vertiginosamente entre Deus e Nada. Nunca chegara a tão delirante amplitude a oscilação psicológica a que Oliver Brachfeld[10] denominou "complexo de Gulliver". E nunca se descurou tanto o conselho de Pascal: não é bom falar na glória humana sem evocar sua miséria, mas também não é bom demorar-se em sua miséria sem lembrar sua glória.

Outro reparo: Mumford diz que todas as exorbitâncias do cientificismo, que hoje nos parecem claras, não foram imediatamente percebidas por aqueles que estavam profundamente cativados pela nova religião. Ora, isto que parece tão claro hoje a um dos mais argutos observadores da atualidade continua obscuro para os "progressistas" da nova religião, e o que disse ele ter passado despercebido aos "progressistas" da nova religião do século XVI não passou despercebido ao Santo Ofício, cujos juízes, no caso Galileu, sentiram, no nível do senso comum vivificado pela Fé, ou graças aos dons do Espírito Santo, não apenas uma tese ousada e mal fundada, mas todo um intrincado processo de cientificismo e de gnose que divinizava o Sol, no século XVI, como nos mostra Lewis Mumford, que mais adiante escreve:

O efeito imediato da nova teologia foi o de reviver concepções que datavam do tempo das pirâmides no Egito e na Mesopotâmia.

Alongando-se, no referido artigo, em considerações que merecem ser lidas e meditadas, em certa altura Mumford cita Battersfield, que diz: "Copérnico se torna lírico e chega quase à adoração do Sol quando escreve a respeito de sua natureza monárquica (regai) e da posição central que ocupa". Tyllyard assinala que o Sol, na era elisabetana, era geralmente considerado como a contraparte material de Deus.

O caso Galileu [11]

Creio que agora temos, na condensação que nos foi possível, as várias noções e os vários dados que permitem uma abordagem do caso Galileu que permitirá, assim o espero, desanuviar mais uma das tantas histórias mal contadas com que se tece a história.

Eis os termos em que o Santo Ofício, sob o pontificado de Paulo V, foi consultado em fevereiro de 1616.

Duas proposições foram apresentadas.

1 — O Sol é o centro do mundo e por conseqüência imóvel de movimento

2 — A Terra não é o centro do mundo nem imóvel, mas move-se ela toda por um movimento diurno.

Poucos dias depois a resposta é dada:

a) "A primeira proposição é insensata e absurda em filosofia e formalmente herética, por contradizer expressamente muitas passagens da Sagrada Escritura, conforme a propriedade dos termos, segundo a
interpretação comum e o sentido dos santos padres e dos doutores da teologia";

b) "quanto à segunda proposição, ela merece a mesma censura filosófica, e em relação à verdade teológica é pelo menos errônea na fé.[12]

Dois dias depois, o comissário do Santo Ofício notifica a Galileu a censura lavrada contra a opinião segundo a qual o Sol está no centro imóvel do universo, e a Terra se move. Essa opinião não deve ser sustentada nem defendida. Galileu é advertido das penas a que se expõe e promete obedecer.

Aqui termina a primeira parte do caso Galileu, e desde já se escandalizam os que vêem em tais condenações do Santo Ofício um crime de lesa-majestade contra a Ciência. Ora, por incrível que isto pareça aos que se deixaram conscientizar pelo culto da "livre pensée" (que na verdade, como veremos, é um culto da "pensée vide"), ouso dizer que essa reação é errônea. O próprio Maritain, que quer ser mais anti-antimoderne do que nunca, diz mais adiante[13] que: "se os juízes do Santo Ofício se enganaram tão gravemente foi porque, por um errôneo princípio ainda mais perigoso (por ser de alcance geral) julgaram que a ciência dos fenômenos estivesse sob a jurisdição da teologia e de uma interpretação geral da Sagrada Escritura”. Pode ser — digo eu a título de hipótese — que os juízes do Santo Ofício acreditassem nesse falso princípio epistemológico, mas o que é certo, e duvido de que algum filósofo ou teólogo possa contestar-me, é que, se a teologia e o Magistério da Igreja não podem julgar as ciências dos fenômenos nos seus processos intrínsecos e próprios, podem e devem julgar o uso que o cientista faz das intuições e teorias interpretativas do fenômeno. Não ignoro que essa jurisdição da Igreja é hoje negada e recusada em todo o nosso bravo novo mundo gloriosamente pluralista. Mas é preciso lembrar que, no tempo de Galileu, a Igreja e o Santo Ofício ainda se sentiam responsáveis por todos os passos em que a prudência pastoralmente recomendava moderação nos domínios da ficção e do sonho científico. Além disso, explica-se certa brutalidade na sumária condenação do Santo Ofício, que parece efetivamente colocada em termos dogmáticos, pela consciência que tinha de representar ainda a paternal proteção de uma civilização cristã.

Podemos admitir que os assessores e juízes do Santo Ofício, não sendo todos geniais e santos como Santo Tomás, tenham confundido a censura pastoral que as proposições de Galileu bem mereciam com a censura dogmática que só mereceriam efetivamente os erros formalmente contrários à Revelação e à Fé; mas não podemos deixar de assinalar que tais proposições, lançadas num contexto cultural despreparado, em que os próprios astrônomos como Tycho Brahé reclamavam provas mais convincentes, afligiriam a cristandade nos costumes intelectuais, no nível do senso comum que, além da Fé e dos Costumes, também está sob a alvaguarda da Igreja. Além disso, notemos que a Igreja seria impraticável, e que a Civilização Cristã seria impraticável, se os juízes do Santo Ofício devessem todos ter a estatura de Santo Tomás. O próprio Maritain (na página 357 da mesma obra citada) diz encolerizado que:

. . . se era verdade —• e é efetivamente verdade — que (como diz o Cardeal Journet) todos os contemporâneos tinham como evidente "que essa condenação doutrinal atingia matéria revogável por uma autoridade falível", eles, os juízes, eram certamente os primeiros a saber que podiam estar enganados.


É o caso de perguntarmos: e daí? Se os juízes do Santo Ofício só podiam proibir e censurar infalivelmente, concluo eu que o erro não está no personnel mas na Personne da Igreja que tanto tempo admitiu a possibilidade de governar que necessariamente inclui a possibilidade de decisões gravíssimas em matéria revogável, e fora do domínio estrito da infalibilidade. Se o Santo Ofício além de uma grave mancada (bourde) cometeu um "abuso de poder", então concluímos que é impraticável o governo da Igreja, já que o exercício da infalibilidade deve ser poupado preciosamente para as questões extraordinárias, e diretamente contrárias à Fé e já que o governo exige medidas pastorais em todas as matérias ordinárias.

E volto a dizer, com a consciência de estar afrontando de um lado um himalaia de opiniões amontoadas durante quatro séculos, e de outro um autor que em filosofia sempre tive por mestre, que o pronunciamento do Santo Ofício quis dizer que aquelas proposições eram perigosas contra a fé, nocivas à fé no nível do senso comum, que é uma sabedoria (rústica embora), e como tal superior e mais merecedora de cuidados do que as ciências das coisas exteriores e inferiores que nada perderiam por esperar um pouco o sinal verde nos cruzamentos da história, e que põem em risco toda a civilização se querem ser elas as infalíveis.

Além disso, nunca é demais insistir neste ponto: o erro do genial Galileu, no seu próprio campo científico, foi mais grave e mais petulante do que o excesso de formulação dogmática com que o Santo Ofício o advertiu. A idéia de um Sol imóvel no centro do mundo é mais grotesca, mais fantástica, mais insensata do que a tradicional idéia que colocava o centro na Terra em que surgiu o homem e se encarnou o Verbo de Deus. O Santo Ofício, sem o saber, sem mesmo fazer questão do provar as sucessivas revoluções da Física, dizendo que o "heliocentrismo" era insensato e absurdo "filosoficamente", diz o mesmo que diriam os físicos modernos: a proposição que diz estar o Sol imóvel no centro do universo é meaningless para um físico, "e mesmo para um não-físico" como disse Einstein em situações semelhantes. Mais acertada é a proposição filosófica ou teológica que coloca o centro do mundo onde está o observador capaz de medir paralaxes e anos-luz, ou onde esteve a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em sua condição carnal.

Sim, em 1611 como em 1971, e como em 2611 e até o fim do mundo, só terá sentido a noção de centro do universo na ordem do conhecimento e do amor. O Sol será, se quiserem, centro imaginário (ente de razão matemática) da órbita percorrida pelos centros de gravidade dos planetas, órbita circular para Galileu, elíptica para Képler, e complicadamente helicoidal quando se descobriu, depois que a análise espectral revelou o deslocamento de certas raias K na direção do vermelho ou na oposta conforme se observavam estrelas nas cercanias da constelação de Hércules, ou na oposta. Desde essa observação ficou sabido que messer frate il sole, longe da majestática imobilidade que lhe atribuíram Copérnico e Galileu, é um globo incandescente caindo, ou melhor, errando no espaço, mais erradiamente do que Parsifal sem elmo e sem lança. Desmanchou-se num novelo caprichosamente desenrolado o pomposo "heliocentrismo" que sempre foi uma pobre verdade de fraca compleição, como dizia Ibsen, porque já no tempo de Képler o Sol passou do centro do círculo para o foco da elipse, e hoje não passa de um dos trepidantes e incertos grãos de nosso restless Universe, como diz Max Born.
Na verdade, a proposição apresentada ao Santo Ofício por Galileu, ligada à presunção de uma prova física de que lhe parecia "evidente como se a tocasse com as mãos", constitui um monstro epistemológico, onde se misturam os graus de abstração e onde a hipótese explicativa se transforma em dado observado, ligado a uma fraude pelo empenho com que tentou, na divulgação, inculcar a idéia de uma prova científica.

Parece-me indubitável que, nesse episódio, Galileu, como cientista, errou mais gravemente na formulação de sua comunicação do que os juízes do Santo Ofício erraram como teólogos; porque para defender cabalmente o enunciado da condenação basta-nos colocá-lo no plano pastoral de defesa do senso comum barbaramente agredido, não pelas pesquisas e observações dos satélites de Júpiter, não pelas teorias explicativas apresentadas prudentemente com caráter de hipóteses, mas pela fraude com que se pretendia inculcar como provado o que teria de esperar muito estudo para ganhar direito a um enunciado decentemente científico. E aqui parece-me especialmente infeliz a nota (a) de Maritain (op.cit.pág.393):

Que Galileu não tenha realmente demonstrado o movimento da Terra nada tem a ver aqui. Realmente foi somente depois de Newton que o heliocentrismo se impôs a todos os homens de ciência. As provas invocadas por Galileu não eram demonstrativas e pouco valiam. Mas, antes de mostrar e sem estar ainda em condições de fazê-lo, há no espírito do grande sábio uma percepção intuitiva que basta (grifo nosso) para lhe dar uma convicção da qual — certo ou errado (grifo nosso), isto é outro assunto que diz respeito ao progresso da ciência — ele absolutamente não duvida. Tal foi o caso para o gênio intuitivo de Galileu.


Nesta nota infelicíssima, onde se evidencia o empenho de glorificar um dos motoristas do progresso da ciência, em detrimento do obscurantista Santo Ofício, não reconhecemos o autor de Théonas, de Antimoderne, de Trois Rêformateurs, de Reflexiona sur l’Intelligence et sa Vie Propre, não reconhecemos o severo e exigente filósofo que nos ensinou, entre mil outras coisas, esta lição que eu já escrevi atrás e agora repito: a honra e dignidade do cientista não consiste em ter acertado (ou quase acertado) a proposição que outros demonstrarão, e da qual ele mesmo, dizendo que a sente como se a tocasse, não sabe provar; não, mil vezes não: a honra do cientista, do filósofo e do teólogo não é de natureza esportiva ou lotérica, não consiste em acertar à tort ou à raison, mas consiste essencialmente em dar as razões de sua proposição.

Os tomistas, e com toda a razão, costumam ficar irritados quando os franciscanos lhes dizem, ou melhor, lhes diziam com garbo que Duns Scotus acertara na questão da imaculada conceição da Virgem Santíssima, enquanto Santo Tomás perdera o ponto. Volvendo com saudades aos bons tempos em que dominicanos e franciscanos discutiam essas coisas, lembro-me de um O.P., não sei se Garrigou- Lagrange ou Gardeil, que chegava a asseverar que no encaminhamento da proclamação do dogma valeram mais os argumentos refutadores de Santo Tomás do que os surtos intuitivos com que Duns Scotus, à fort ou à raison, afirmava.

No caso Galileu, para terminar, direi que hoje, melhor do que nunca, estamos em condições de apreciar a real e profunda intuição com que o Santo Ofício sentiu a presença do monstro — o cientificismo e não a ciência — que arrombava as porteiras e se precipitava para devastar uma civilização. Mas nossa constatação não é triunfalista porque são muito poucos os que participam dela; é antes melancólica, e tem todo o travo de uma batalha perdida.



[1] Duas referências adicionais poderão ser importantes ao leitor: a primeira são os
artigos de Olavo de Carvalho sobre a Mente Revolucionária (por exemplo,
A mentalidade revolucionária, Mensagem de Natal 2007, A lógica da destruição, Afinal, lutamos contra quem?). A segunda, sobre a “poluição nominalista”é o texto por mim traduzido de Richard Weaver e publicado neste blog sob o título A dissolução do Ocidente: uma introdução. (N. do B.)

[2] Gustavo Corção, A Descoberta do Outro, AGIR.

[3] Não posso deixar de lembrar a passagem de Doutrina Cristã, Livro I, parte B, capítulo 11, item 11a, do grande Santo Agostinho: Ora, nós não conseguiríamos nos purificar se a própria Sabedoria não se houvesse dignado adaptar-se à nossa tão pequena fraqueza carnal, para tornar-se modelo de vida, precisamente fazendo-se homem, visto sermos nós homens. // Mas ao passo que agimos sabiamente quando nos aproximamos da Sabedoria, ela, ao vir a nós, foi considerada, por homens soberbos, como realizadora de loucura. Enquanto nós nos fortificamos ao nos aproximar da Sabedoria, ela, ao se aproximar de nós, foi considerada como realizadora de ato de fraqueza. Contudo, o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens (1Cor 1,25), // Eis por que a Sabedoria, sendo a pátria, fez-se também caminho para levar-nos à pátria. (N. do B.)

[4] Dois textos adicionais são importantes sobre a questão do senso comum, ambos de Marcel de Corte: Common Sense in Crisis e Inteligência em Perigo. (N. do B.)

[5] Jacques Maritain, De 1'Eglise du Christ, Desclée de Brouwer, 1970, pág. 345 e seg.

[6] S. J. Mason, Histoire de la Science, Armand Colin, 1956, pág. 10.

[7] PERMANÊNCIA, n° 41, pág. 22.

[8] Na verdade, a Renascença foi um dos períodos mais saturados de magia, só não ultrapassando o Iluminismo nos séculos XVIII e XIX. Ver, sobre a Renascença, Giordano Bruno e a Tradição Hermética, Francis A. Yates, Cultix, 1995. Ver, sobre o Iluminismo nos séculos XVII e XIX, Hope of the Wicked, Ted Flynn, Maxkol Communications, 2000, e the Theosophical Enlightenment, Joscelyn Godwin, State University of New York, 1994. (N. do B.)

[9] Lewis Mumford, The Megamachine, em "The New Yorker", 10-17 outubro de 1970.

[10] Oliver Brachfeld, Los Sentimentos de Inferioridade, Luiz Mirade, Barcelona, 1959, pág. 24 e seg.

[11] Ver, sobre o assunto, extenso estudo de Pietro Redondi: Galileu Herético, Companhia das Letras, 1991. (N. do B.)

[12] Jacques Maritain, op. cit.

[13] Ibid.