29/05/2011

O AFASTAMENTO DA DOMESTICIDADE

Do livro A Coisa, 1929
G.K. Chesterton

Nota: Chesterton foi um grande defensor da instituição da família, contra os intelectuais seus contemporâneos que a desprezavam e ajudaram a construir o estado de coisas que vivemos hoje. Este texto é um dos muitos que ele escreveu sobre o assunto. O capítulo XIV de Hereges (Alguns escritores modernos e a instituição da família) e A EMANCIPAÇÃO DA DOMESTICIDADE são exemplos de tais textos. Em 1920, ele escreveu todo um livro sobre o tema:  A Supertição do Divórcio. Foi certamente uma grande provação o fato de o casal Chesterton não ter podido ter tido filhos.

Acerca da reforma das coisas, em vez de deformá-las, há um princípio claro e simples; um princípio que será provavelmente considerado um paradoxo. Existe em tal caso certa instituição ou lei; consideremos, por simplicidade, uma cerca ou portão que obstrui um caminho. O tipo mais moderno de reformador dele alegremente se aproxima e diz: “Não vejo objetivo nisto; vamos derrubá-lo.” A que um tipo mais inteligente de reformador fará bem em responder: “Se você não vê objetivo nele, eu certamente não o deixarei derrubá-lo. Vá embora e pense. Então, quando você voltar e me disser que vê nele um objetivo, posso permitir que o destrua.”

O paradoxo assenta-se no mais elementar senso comum. O portão ou a cerca não cresceu ali. Não foi construído por sonâmbulos que o fizeram enquanto dormiam. É altamente improvável que ele tenha sido posto lá por loucos fugidos que por alguma razão vagueavam pelas ruas. Alguém teve alguma razão para pensar que ele seria uma boa coisa. E até que saibamos qual foi a razão, nós realmente não devemos julgar se a razão foi razoável. É muito provável que tenhamos deixado de levar em conta todo um aspecto da questão, se algo construído por seres humanos como nós parece ser inteiramente absurdo e misterioso. Há reformadores que superam esta dificuldade supondo que todos os nossos pais tenham sido tolos; mas se for assim, podemos apenas dizer que a tolice parece ser uma doença hereditária. Mas a verdade é que ninguém tem razão em destruir uma instituição social até que a tenha realmente visto como uma instituição histórica. Se sabe como ela surgiu, e a que propósitos ela supostamente serviria, ele pode realmente ser capaz de dizer que aqueles foram propósitos maus, ou que eles se tornaram, desde então, propósitos maus, ou que são propósitos que já não são mais servidos. Mas se ele simplesmente fita a coisa como uma monstruosidade inconseqüente que de alguma forma tenha subitamente surgido em seu caminho, é ele e não o tradicionalista que está sofrendo de uma ilusão. Podemos mesmo dizer que ele está vendo coisas, como num pesadelo. Este princípio aplica-se a mil coisas, a instituições insignificantes, assim como a verdadeiras, à convenção assim como à convicção. São pessoas como Joana D’arc, que sabia por que as mulheres usavam saia, que mais tinha justificativa para não usá-las; são pessoas como São Francisco, que simpatizava com festas e com o aconchego do lar, que mais tinha direito de se tornar um mendigo nas ruas. E quando, na ampla emancipação da moderna sociedade, a Duquesa diz que não vê razão para que ela não brinque de pular carniça, ou o Deão declara que não vê nenhuma válida razão canônica para que ele não fique de cabeça para baixo, devemos dizer a essas pessoas, com uma paciente benevolência: “Adia, portanto, a operação que contemplas até que tenhas percebido, por meio de reflexão madura, que princípio ou preconceito violas. Então, brinca de pular carniça e ponha-se de ponta cabeça e que o Senhor esteja convosco.”

Dentre as instituições que estão sendo assim atacadas, não inteligentemente mas muito estupidamente, está a fundamental criação humana chamada Núcleo Familiar ou Lar. Esta é uma coisa típica que os homens atacam, não porque vêem seu significado, mas porque não a vêem em absoluto. Eles a golpeiam cegamente, de um modo inteiramente fortuito e oportunista; e muitos deles a poriam abaixo sem nem mesmo deterem-se para perguntar por que ela foi um dia posta de pé. É verdade que apenas poucos deles teriam confessado seu objetivo com tantas palavras. Isso apenas prova quão cegos e descuidados eles são. Mas eles caíram no hábito do mero distanciamento e gradual desapego da vida familiar; algo que é amiúde meramente acidental e desprovido de qualquer teoria definida. Mas embora seja acidental, ela é, não obstante, anárquica. E ela é ainda mais anárquica por não ser anarquista. Parece ser em grande medida instituída sobre a irritação individual; uma irritação que varia com o indivíduo. Conta-se meramente que neste ou naquele caso um temperamento particular foi atormentado por um ambiente particular; mas ninguém explica sequer como o mal surgiu, muito menos se pode-se evitar o mal. Conta-se que nesta o naquela família a vovó fala muita tolice – que, Deus sabe, é verdade –; ou que é muito difícil ter um relacionamento intelectual íntimo com Tio Gregório sem dizer-lhe que ele é um tolo, que é realmente o caso. Mas ninguém considera seriamente o remédio, ou mesmo a doença; ou se a dissolução individualista existente é realmente um remédio. Grande parte desse negócio começou com a influência de Ibsen, um poderosíssimo dramaturgo e um debilíssimo filósofo. Suponho que Nora, da Casa de Bonecas, estava destinada a ser uma pessoa inconseqüente; mas certamente sua ação mais inconseqüente foi sua última. Ela reclamava de não estar ainda preparada para cuidar de crianças, e então passou a apreender o máximo das crianças, de modo a estudá-las mais de perto.

Há um único e simples teste dessa negligência do pensamento científico e do senso de uma ordem social; a negligência que nos deixa agora sem nada, exceto uma confusão de exceções. Li milhares de vezes, em todos os romances e jornais de nossa época, certas frases sobre o justo direito do jovem à liberdade, sobre a injusta alegação dos mais velhos em controlar, sobre a concepção de que todas as almas devem ser livres ou todos os cidadãos iguais, sobre a absurdidade da autoridade ou a degradação da obediência. Não estou discutindo essas questões diretamente, no momento. Mas o que me estarrece, num sentido lógico, é que ninguém nesta miríade de romancistas e jornalistas parece sequer pensar em formular a próxima e mais óbvia questão. Parece nunca ocorrer-lhes indagar o que acontece com a obrigação oposta. Se a criança é livre de início para desconsiderar os pais, por que os pais não são livres para desconsiderar a criança? Se o Sr. Jones, pai, e o Sr. Jones, filho, são apenas dois cidadãos livres e iguais, por que deve um cidadão viver às custas de outro cidadão pelos primeiros quinze anos de sua vida? Por que o Sr. Jones mais velho deve alimentar, vestir e abrigar, de seu próprio bolso, outra pessoa que é inteiramente livre de qualquer obrigação para com ele? Se a brilhante e jovem coisa não pode ser solicitada a tolerar sua avó, que se tornou algo aborrecida, por que deveria a avó ou a mãe ter tolerado a brilhante e jovem coisa num período de sua vida em que ela não era, em absoluto, brilhante? Por que eles laboriosamente cuidaram dela num período em que suas contribuições à conversação eram raras vezes epigramáticas e nem sempre inteligíveis? Por que Jones, o pai, banca comida e bebida de graça a alguém tão desagradável quanto Jones, o filho, especialmente nas fases imaturas de sua existência? Por que ele não pode jogar o bebê pela janela; ou, de qualquer modo, expulsar o garoto de casa? É óbvio que estamos tratando de uma relação real, que pode ser igualdade, mas que não é certamente similaridade. 

Alguns reformadores sociais tentam esquivar-se dessa dificuldade, eu sei, por meio de vagas noções acerca do Estado ou de uma abstração chamada Educação, que eliminaria a função parental. Mas isto, como muitas noções de pessoas firmemente científicas, é uma louca ilusão, da natureza de um mero luar. Ela se fundamenta nessa estranha e nova superstição, a idéia de infinitos recursos de uma organização. É como se funcionários públicos crescessem como grama ou se reproduzissem como coelhos. Há, por suposto, um interminável suprimento de pessoas assalariadas, e de salários para elas; e elas responsabilizar-se-iam por tudo o que os seres humanos fazem por si mesmos; incluindo o cuidado com as crianças. Mas os homens não podem ter como meio de vida a criação dos filhos dos outros. Eles não podem proporcionar um tutor para cada cidadão; quem seria o tutor dos tutores? Os homens não podem ser educados por máquinas; e embora possa haver um robô pedreiro ou varredor, nunca haverá um robô diretor de escola ou professora. O efeito real dessa teoria é que uma pessoa assediada tem de cuidar de cem crianças, em vez de uma pessoa normal cuidar de um número razoável delas. Normalmente, aquela pessoa normal é impelida por uma força natural, que não custa nada e não exige salário; a força da afeição natural pela sua prole, que existe mesmo entre os animais. Se você suprime essa força natural, e a substitui por uma burocracia paga, você é como um idiota que tem de pagar para que girem a roda de seu moinho porque se recusa a usar o vento ou a água que ele pode conseguir de graça. Você é como o louco que rega cuidadosamente seu jardim com um regador, ao mesmo tempo em que segura um guarda-chuva para se proteger da chuva.

Tornou-se, agora, necessário recitar estes truísmos; pois somente fazendo isto, começamos a ter um vislumbre daquela razão da existência da família, pela qual comecei este ensaio a demandar. Eles eram todos familiares aos nossos pais, que acreditavam nos elos de parentesco e também nos elos da lógica. Hoje, nossa lógica consiste principalmente de elos perdidos; e nossa família predominantemente de membros ausentes. Mas, de qualquer modo, este é o fim correto no qual começar qualquer investigação deste tipo; e não no final ou nos restos de alguma trapalhada pessoal, pela qual Dick se tornou descontente ou Susan foi-se embora. Se Dick ou Susan desejam destruir a família porque não vêem utilidade nela, digo o que disse no início; se eles não vêem a utilidade dela, é melhor que eles a preservem. Eles não têm nada que, nem mesmo, pensar em destruí-la até que tenham visto a sua utilidade.

Mas ela tem outras utilidades, além o fato óbvio de significar um trabalho social necessário sendo feito por amor, quando não pode ser feito por dinheiro; e (é preciso quase ousar insinuar) presumivelmente ser retribuído com amor, na medida em que nunca pode ser retribuído com dinheiro. Deste simples lado da questão, a situação geral é fácil registrar. O existente e geral sistema da sociedade – sujeito, em nossa própria época e cultura industrial, a muitos abusos grosseiros e a problemas dolorosos – é, contudo, um sistema normal. É a idéia de que a comunidade é composta de diversos pequenos reinos, dos quais um homem e uma mulher se tornam o rei e a rainha e nos quais eles exercem uma razoável autoridade, sujeita ao senso comum da comunidade, até que aqueles sob seus cuidados cresçam e fundem reinos similares e exerçam autoridade similar. Esta é a estrutura social da humanidade, muito mais antiga do que todos os seus registros e mais universal do que quaisquer de suas religiões; e todas as tentativas de alterá-la são palavras ao vento e pura estupidez.

Mas a outra vantagem do grupo pequeno está não tanto negligenciada, mas não é simplesmente percebida. Temos aqui, novamente, alguns extraordinários delírios espalhados pela literatura e jornalismo de nosso tempo. Esses delírios existem agora em tal grau que podemos dizer, para todos os propósitos práticos, que quando uma coisa é afirmada mil vezes como uma verdade óbvia, ela é quase certamente uma falsidade. Tal tipo de afirmação pode ser especialmente percebida aqui. Há inegavelmente algo a ser dito contra a domesticidade e a favor do afastamento geral na direção da vida em hotéis, clubes, escolas, assentamentos comunitários, etc.; ou a favor da vida social organizada aos moldes do grande sistema comercial de nossa época. Mas a sugestão verdadeiramente extraordinária é amiúde feita de que essa fuga do lar é uma fuga para uma maior liberdade. A mudança é realmente apresentada como favorável à liberdade.

A qualquer um capaz de pensar, ela é, claro, o exato oposto. A divisão doméstica da sociedade humana não é perfeita, sendo humana. Ela não alcança uma completa liberdade; uma coisa algo difícil de ser feita ou mesmo definida. Mas é uma simples questão de aritmética que ela coloca um maior número de pessoas no controle supremo de algo, e capaz de moldá-lo segundo seu gosto pessoal, do que o fazem as vastas organizações que controlam externamente a sociedade; sejam estas sistemas legais, comerciais ou mesmo meramente sociais. Mesmo se considerarmos apenas os pais, é evidente que há mais pais que policiais, ou políticos, ou dirigentes de grandes companhias, ou proprietários de hotéis. Como sugerirei a seguir, o argumento realmente se aplica diretamente aos filhos assim como diretamente aos pais. Mas o principal é que o mundo exterior ao lar está agora sob uma rígida disciplina e rotina e é somente no lar que há lugar para a individualidade e liberdade. Qualquer um que ponha o pé para fora de casa é obrigado a entrar numa procissão, todos indo no mesmo caminho e, em grande parte, obrigados a usar o mesmo uniforme. Os negócios, especialmente os grandes, são agora organizados como um exército. É, como diria alguém, um tipo de militarismo moderado sem derramamento de sangue; como diria eu, um militarismo sem as virtudes militares. Mas, de qualquer forma, é óbvio que cem funcionários de um banco ou cem garçonetes de uma casa de chá estão mais organizados e sob controle do que os mesmos indivíduos quando voltam para suas moradias ou habitações, que portam seus quadros favoritos e as fragrâncias de seus cigarros vulgares favoritos. Mas isto, que é tão óbvio no caso comercial, não é menos verdade no caso social. Na prática, a busca do prazer é simplesmente a busca da moda. A busca da moda é simplesmente a busca da convenção; que é, neste caso, uma nova convenção. A dança de jazz, os passeios de carro, as grandes festas e entretenimentos em hotéis, não proporcionam nenhum prazer maior, para alguém de gosto realmente independente, do que o fizeram as modas do passado. Se uma rica jovem senhora deseja fazer o que todas as outras ricas jovens senhoras fazem, ela se divertirá muito, simplesmente porque a juventude é divertida e a sociedade é divertida. Ela deleitar-se-á em ser moderna exatamente como sua avó vitoriana se deleitou em ser vitoriana. E também pelo mesmo motivo; mas é o deleite da convenção, não o deleite da liberdade. É perfeitamente saudável para todos os jovens, de todos os períodos históricos, agruparem-se até certo ponto, e imitarem entusiasticamente uns aos outros. Mas nada há nisso de particularmente recente e, certamente, de particularmente livre. A garota que gosta de raspar a cabeça, maquiar seu nariz e usar saias curtas encontrará o mundo organizado para ela e marchará alegremente com a procissão. Mas a garota que acaso goste de ter seus cabelos batendo em seus calcanhares, ou de usar adornos bárbaros e vestidos que se arrastam pelo chão, ou (mais terrível de tudo) de deixar seu nariz no estado natural – ela será, não obstante, bem aconselhada a fazer tais coisas em sua própria casa. Se a duquesa deseja brincar de pular carniça, ela não deve começar de repente a pular como um sapo no salão do Hotel Babylon, quando ele estiver lotado de casais praticando profissionalmente o mais recente tipo de dança, para a instrução da sociedade. Será mais fácil a duquesa brincar de pular carniça, para a admiração de suas amigas íntimas, no velho hall recoberto de lambris de carvalho do Castelo Fitzdragon. Se o deão ficar de ponta cabeça, ele fará isso com maior facilidade e graça na calma atmosfera do Decanato, do que tentando interromper algum compromisso social já organizado com propósitos filantrópicos.

Se há essa rotina impessoal nas coisas comerciais e mesmo sociais, é ocioso dizer que ela deve existir nas coisas políticas e legais. Por exemplo, as punições do Estado devem ser generalizações abrangentes. São somente as punições da família que podem ser adaptadas ao caso individual. Se Joãozinho pega um dedal de uma caixa de costura, sua mãe pode agir muito diferentemente segundo ela saiba que ele fez isso de brincadeira, por maldade, para vender para alguém ou para causar problemas a alguém. Mas se Joãozinho pega um dedal numa loja, a lei não somente pode, mas deve puni-lo segundo a regra feita para todos os ladrões de loja ou de prata. É somente a disciplina doméstica que pode mostrar qualquer simpatia ou especialmente qualquer humor. Não digo que a família sempre faz isso: mas digo que o Estado nunca deve tentá-lo. Assim, mesmo se considerarmos somente os pais como príncipes independentes, e os filhos apenas como súditos, a liberdade relativa da família pode e amiúde trabalha a favor destes súditos. Mas desde que os filhos sejam crianças, eles serão sempre súditos de alguém. A questão é se eles deverão ser distribuídos naturalmente pelos seus príncipes naturais, como diz o velho ditado, que normalmente sentem por eles o que ninguém mais sente, uma afeição natural. Parece-me claro que essa distribuição normal proporciona a maior quantidade de liberdade a um maior número de pessoas.

Meu protesto contra o afastamento anti-doméstico é que ele é estúpido. As pessoas não sabem o que estão fazendo; porque não sabem o que estão desfazendo. Há uma multitude de manifestações modernas, das maiores às menores, que vão do divórcio a um piquenique. Mas cada uma é uma fuga ou evasão; e especialmente uma evasão da questão em tela. As pessoas têm de decidir de modo filosófico se desejam a ordem social tradicional ou não; ou se há qualquer particular alternativa a ser desejada. Nas atuais circunstâncias, elas tratam a questão pública meramente como uma mistura ou mescla de questões pessoais. Mesmo em sendo anti-domésticas, elas são demasiadamente domésticas em seu teste da domesticidade. Cada família considera apenas seu próprio caso e o resultado é meramente estreito e negativo. Cada caso é uma exceção a uma regra que não existe. A família, especialmente no estado moderno, necessita de considerável correção e reconstrução; muitas coisas necessitam, no estado moderno. Mas o palácio da família deve ser preservado, destruído ou reconstruído; não se deve deixá-lo cair aos pedaços, tijolo por tijolo, porque ninguém tem qualquer sentido histórico do objeto da alvenaria. Por exemplo, os arquitetos da reconstrução devem reconstruir a casa com portas amplas e fáceis de abrir, para a prática da antiga virtude da hospitalidade. Em outras palavras, a propriedade privada deve ser distribuída com suficiente e decente igualdade para permitir uma margem a relações festivas. Mas a hospitalidade de uma casa será sempre diferente da hospitalidade de um hotel. É perfeitamente correto que os jovens da família Brown e os da família Robinson se encontrem, se misturem, dancem, se exponham ao ridículo, segundo o plano de seu Criador. Mas haverá sempre alguma diferença entre a família Brown entretendo a família Robinson e a família Robinson entretendo a família Brown. E será uma diferença a favor da variedade, da pessoalidade, das potencialidades da mente do homem; ou, em outras palavras, da vida, da liberdade, e da busca da felicidade.

20/05/2011

Pensamentos esparsos de um católico perplexo

(*)
A beatificação de João Paulo II lança todos os católicos numa discussão teológica das mais complexas e numa dúvida atroz: tais atos do Santo Padre são infalíveis ou não? Tal é a confusão da Igreja. Agora os pobres católicos, nós todos, estamos tendo de enfrentar discussões que só os medievais davam conta de manter. Sim, além disso, somos bombardeados pela mídia, que parece ter gostado muito do Sumo Pontífice anterior. Esta foi uma beatificação que contou com o apoio de ateus, anti-católicos, comunistas, panteístas e gnósticos de todo o mundo.

(*)
Enquanto a CNBB avança sua crença new-age-eco-panteísta, Dom Tomás de Aquino, prior do Mosteiro da Santa Cruz, ligado à Tradição, consagra Nova Friburgo ao Coração Imaculado de Maria. Enquanto a FSSPX realiza ato de Reparação diante do Santíssimo, pela decisão do Supremo (STF) acerca da “homoafetividade”, um padre de Belo Horizonte elogia a decisão do tribunal, nada acontecendo com ele, até agora. 

(*)
Sempre foi opinião geral, é recomendação constante de santos e doutores da Igreja, é matéria assentada da Teologia Ascética e Mística, que todo fiel deve ter um diretor espiritual para mais bem caminhar na senda da perfeição cristã. A pergunta que me faço, e que não raras vezes me fazem, é: como na atual situação da Igreja, encontra um diretor espiritual? Se alguém souber a resposta, por favor, conte-nos. 

(*)
Uma pergunta pertinente que virou título de livro: como ir à Missa[Nova] sem perder a fé? O autor é simplesmente Dom Nicola Bux, consultor das Congregações para a Doutrina da Fé, do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos e do Ofício de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice. Bem, se ele faz a pergunta, que dizer de nós?

17/05/2011

Religião no mundo moderno

Um ex-seminarista dos anos 1970 nos explica o que é religião. Divirtam-se! Veja também este.


Blog recomenda: Vortex em português

Recomendamos aos leitores do blog uma visita ao blog Vortex em Português. Quem já conhece o trabalho da Real Catholic TV, vai poder agora assistir seus vídeos de maior audiência, legendados em português. Quem ainda não conhece, será uma grande oportunidade para conhecer. É um autêntico ministério católico leigo do século XXI.

13/05/2011

50 anos de Vaticano II: contribuições de um católico perplexo

Nota do blog: Tenho mostrado, neste blog, minha perplexidade com a situação da Igreja pós-conciliar. Com ela a tira-colo, escrevi um pequeno livro. Com ela, novamente, tomo conhecimento da comemoração dos 50 anos do Concílio Vaticano II (isto é, do início dos trabalhos conciliares, em 11 de outubro de 1962) que está sendo preparada para o ano que vem (os milenaristas de sempre bem podem ter razão agora; em 2012, talvez o mundo acabe!). Decido, também com ela, participar, não da comemoração, mas da lembrança, terrível lembrança, dos 50 anos pós-conciliares. Vez ou outra, vou escrever algo sobre estes anos aqui no blog. Começo hoje, dia 13 de maio (A 13 de maio, na Cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria!), data expressiva e irremediavelmente ligada ao Vaticano II, pois, segundo as mais abalizadas opiniões, Nossa Senhora teria ordenado não convocar o Concílio e nem alterar a Missa de Sempre. Começo com as impressões de Nelson Rodrigues que, já disse aqui, é mais católico que a CNBB. O trecho que vai abaixo é da crônica de 5/4/1968 (o Concílio tinha pouco mais de 2 aninhos, pois promulgado em 8 de dezembro de 1965, e já mostrava todo o seu “potencial”), intitulada “Os Dráculas”. Os negritos são todos meus.

Que Nossa Senhora de Fátima nos proteja neste furacão conciliar!
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Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: – a nossa. Ainda anteontem, falei da idéia inusitada de D. Hélder. O nosso querido arcebispo propõe uma missa cômica (se duvidarem, leiam a última edição dominical de O Jornal). Por trás de suas palavras, sentimos o tédio cruel de uma missa que se repete, com uma monotonia já irrespirável, há 2 mil anos. E ele sugere que se substitua o órgão, o violino, a harpa, o címbalo, pelo reco-reco, o tamborim e a cuíca. 

Por aí se vê que ele, como o dr. Alceu,[1] é um progressista. Não sei se o leitor entendeu todo o alcance da sugestão.[2] D. Hélder propõe, se bem o entendi, que se enfie o sobrenatural na gafieira ou por outra: – que se faça da catedral uma gafieira gótica. Parece ao arcebispo de Olinda que se pode louvar a Deus, igualmente ou até com vantagem, com a cuíca, o pandeiro, o reco-reco e o tamborim

A missa, como a conhecemos, nos últimos vinte séculos, é triste, é depressiva, é neurótica. E quem sabe se a Virgem, se Jesus, se os santos não hão de preferir, por fundo musical, o samba? Seria uma boa maneira de espanar o pó que 2 mil anos depositaram em certas representações católicas. 

Mas falei de épocas que parecem doentes mentais. Só em nossos dias um arcebispo poderia irromper num jornal, na televisão ou rádio e lançar a idéia da missa cômica. Estamos pertinho da Semana Santa. É o caso de, na Sexta-Feira da Paixão, cada um levar seu reco-reco, sua cuíca, seu tamborim e seu pandeiro. Nada de lúgubres e mórbidas procissões. E chorar por que, se tristezas não pagam dívidas? Mas, como eu ia dizendo: – se em qualquer outra época, de razoável sanidade, alguém sugerisse tal coisa, seria um escândalo inominável. Em sua indignação, os fiéis dariam arrancos triunfais de cachorro atropelado. Hoje, não. 

Hoje, achamos perfeitamente normal que se instale a vida eterna numa gafieira. Daqui a pouco, um outro há de propor que, dentro das igrejas, garçons passem bandejas de salgadinhos, mães-bentas, caldo de cana, grapete e chica-bon.[3] Mas volto à minha observação anterior: – d. Hélder não espantou ninguém. Não houve escândalo, ninguém arrancou os cabelos etc. etc. 

Essa impotência para o espanto dá que pensar. Eis o que me pergunto: – e por que, meu Deus, por quê? Vejo católicos justificando a guerrilha, achando a guerrilha uma atividade nobilíssima. E o dr. Alceu só não a recomenda para o Brasil, porque, diz ele, os nossos camponeses não são politizados. Eu me lembro de que, antes da esquerda católica, não tínhamos dráculas neste país. 

E já os temos. Amaldiçoados? Não. Abençoados. Sim, abençoados, absolvidos por respeitáveis homens de fé. (...) 

Não quero ser enfático. Mas me parece estar havendo, no Brasil, uma degringolada de valores. Vimos d. Hélder propor a missa cômica; e ninguém se espantou. Vimos o dr. Alceu declarar que, por causa de um passarinho, pode-se matar um homem. Uma coisa está ligada à outra e ambas se explicam. Se d. Hélder pode propor a gafieira gótica, e se o dr. Alceu absolve um monstruosíssimo assassinato (se bem que hipotético), tudo é permitido e vale tudo.[4]    


[1] Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Atayde. (Nota do blog.)
[2] Nós, depois de 50 anos, não só entendemos o que D. Hélder estava propondo, como sabemos no que deu sua proposta! (Nota do blog.)
[4] Esta é a versão rodriguiana do Lex orandi, lex credendi. (Nota do blog.)

11/05/2011

Pedro, tu me amas?


Aproxima-se o chamado “Encontro de Assis”, no qual o Santo Padre Bento XVI se reunirá com vários líderes religiosos do mundo para juntos rezarem pela paz. 

O primeiro encontro de Assis aconteceu em 27 de outubro de 1988, convocado pelo Papa João Paulo II. Lembro-me bem deste dia. Em minha diocese de origem, por determinação do bispo (mas acredito que a mesma coisa ocorreu em todo Brasil), todos os sinos, ao meio-dia, repicaram pelo entusiasmo e alegria desta iniciativa. Entusiasmo que foi-se diluindo ao se perceber, na verdade, o que acontecia em Assis: a consagração ecumênica e  inter-religiosa elevada a um grau sem precedentes. Este novo encontro quer comemorar os 25 anos daquele I Encontro. 

Se muitos aplaudiram o gesto de João Paulo II, vendo nisso um ato de “fraternidade” universal, muitos outros, inclusive cardeais, se opuseram desde o início ao evento. Sabe-se que o próprio cardeal Ratzinger, prefeito do Santo Ofício, foi um dos que desaprovou, mas que depois, teve a dura tarefa de “teologizar” o que parecia estranho e ao mesmo tempo inédito: um Papa está rezando junto com cristãos, não cristãos, esotéricos e bruxos..., acontecimento sem precedentes na história. 

O Santo Padre Pio XI, em 1928, já percebia o perigo desse humanismo crescente, que de fato não era de todo desconhecido. O Papa Pio X já o observara e já o condenara dando-lhe nome: Modernismo. Coube então a Pio XI, seguindo seu predecessor, condenar esses erros e essas tentativas, mais tarde defendidos por um grupo cada vez mais crescente, e escreveu a famosa Carta Encíclica “Mortalium Animos”, que vai verter justamente sobre o desejo do homem moderno por uma paz, uma fraternidade e um diálogo universal, que desemboca em reuniões ecumênicas entre pagãos e crentes. Ouçamo-lo: 

Ânsia Universal de Paz e Fraternidade 

Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos. (...) 

A Fraternidade na Religião. Congressos Ecumênicos 

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dessemelhante quanto à ordenação da Lei Nova trazida por Cristo, Nosso Senhor. 

Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento religioso, por isto, parece, passaram a ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual

Por isto costumam realizar, por si mesmos, convenções, assembléias e pregações, com não medíocre frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão. (...).” E ainda, continua o papa: 

“...Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.” (M. A. I, II e III)” 

Uma das vozes que se levantou contra o Encontro de Assis, na época, foi a de Mons. Marcel Lefébvre: “a Igreja nunca antes tinha sido humilhado de tal forma no curso de sua história... O escândalo dado às almas dos católicos não pode ser medido. A Igreja está abalada até os alicerces”, disse o prelado. 

A questão é que o Encontro de Assis pôs a Religião Verdadeira em pé de igualdade com as falsas religiões, o erro ao lado da Verdade; Pedro ao lado de Lutero; Deus ao lado do demônio. E isso, sem dúvida alguma, constituiu um “Escândalo sem precedência”. 

Na leitura da paixão, que acabamos de refletir quando dos exercícios quaresmais, sobretudo na semana santa, deparamo-nos com a pergunta de Pilatos a Jesus: “O que é a Verdade?” – Pergunta que ficou sem a resposta do Salvador. Nada lhe disse, pois sabia Ele que Pilatos não buscava sinceramente a Verdade e por isso não fazia parte de seu rebanho: “Todo aquele que é da Verdade, ouve a minha voz.” (Jo.18, 37) 

Mas o que é a Verdade? Ele mesmo nos responde: “Eu SOU!” 

Na Santa Missa, antes do Pater Noster, o sacerdote reza, traçando três cruzes com o Santíssimo Corpo sob o precioso Sangue o “Per Ipsum, Et Cum Ipso, Et in Ipso...”; é a doxologia perfeita: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo”. De forma que, tudo deve levar à Verdade sem a qual ninguém poderá se salvar: a Verdade Católica! 

E o Encontro de Assis o que trouxe de bom? Nada! Pelo contrário, consagrou a idéia difundida, até em meios eclesiásticos, de que toda religião é boa... Não importa o que se professa, desde que faça o homem mais justo, humano e fraterno. Ora, isso é o puro humanismo do qual falava Pio XI, acima. 

Teilhard de Chardin, arauto de teorias humanísticas e de uma cosmovisão inaudita, em 1948, ao Pe. Assistente do Superior Geral dos Jesuítas, escreve: 

Necessidade urgente para a fé cristã naquEle que está Lá-em-Cima  de incorporar a Neo-Fé humana em  um Lá-Adiante nascido (já nasceu, e para sempre...) da aparição  objetiva diante de nós de um Ultra-Humano (desencadeamento de um neo-Humanismo, que arrasta automaticamente um neo- Cristianismo).” (Claude Cuénot, op, cit. pp. 327-328). 

Percebe-se aqui, já nos tempos de Pio XII, que a corrente do humanismo, em seu grande expoente, o Pe. Teilhard de Chardin, movimentava-se na urgência de incorporar a Fé Cristã ao neo-humanismo, para assim desembocar numa religião do amor e da fraternidade cósmica, na qual o homem não seria mais submetido ao rigor da fé ou de uma moral rígida, insustentável, e incompreensível aos tempos modernos. 

E ainda em carta a Leontine Zante, em 1936, Chardin escreve: 

Aquilo que domina crescentemente o meu interesse é o esforço para estabelecer dentro de mim mesmo e para difundir em torno de mim uma nova religião (chamemo-la, se você quiser, uma cristandade desenvolvida) na qual o Deus pessoal não seria mais o neolítico grande proprietário de terras dos tempos ultrapassados, mas a alma do mundo.” (Apud Padre G.H. Duggan, S. M., The Collapse of the Church in the West - 1960-2000). 

Em 19 de junho de 1960, o cardeal Montini, arcebispo de Milão, escrevendo sobre o Trabalho e o Cristianismo, falou sobre o advento de uma nova religião que em breve despontaria. A religião do amanhã seria, talvez, a Religião do Homem: 

O homem moderno não chegará, um dia, à medida que seus estudos científicos progredirem e descobrirem realidades escondidas atrás do rosto mudo da matéria, a prestar atenção à voz maravilhosa do Espírito que palpita nela? Não será a religião do amanhã? O próprio Einstein entreviu a espontaneidade de uma religião de hoje?...” (Discurso em 27 de Março 1960, apud Documentation Catholique, nº 133, 19 de junho de1960). 

Já como Papa Paulo VI, o ex-cardeal Montini, pronuncia este discurso famoso, no encerramento do Concílio Vaticano II: 

... A Igreja do Concílio [Vaticano II] se ocupou bastante do homem, do homem tal qual ele se apresenta em nossa época, o homem vivo, o homem todo ocupado consigo mesmo, o homem que se faz centro de tudo aquilo que o interessa, mas que ousa ser o princípio e a razão última de toda a realidade... O humanismo laico e profano, enfim, apareceu na sua terrível estatura, e, em certo sentido, desafiou o Concílio. A religião de Deus que se fez homem encontrou-se com a religião do homem que se fez Deus. Que aconteceu? Um choque, uma luta, um anátema? Isso poderia ter acontecido, mas isso não aconteceu. A antiga história do samaritano foi o modelo da espiritualidade do Concílio. Uma imensa simpatia o [o Concílio] investiu inteiramente. A descoberta das necessidades humanas absorveu a atenção deste Concílio. Reconhecei-lhe ao menos este mérito, ó vós humanistas modernos, que haveis renunciado à transcendência das coisas supremas, que saibais reconhecer o nosso novo humanismo: também nós, Nós, mais que qualquer outro, nós temos o culto do homem.” (Paulo VI, Discurso de Encerramento do Vaticano II, 7 de Dezembro de 1965). 

E ainda:

Que o mundo saiba que a Igreja o olha com uma profunda compreensão, com uma admiração verdadeira, sinceramente disposta, não a subjugá-lo, mas a servi-lo.” (29 Set 1963, após a 2ª sessão do Concílio). 

A Igreja aceita, reconhece, e serve ao mundo tal como ele se apresenta a ela atualmente.” 

Certamente, ouvimos falar da severidade dos Santos quanto aos males do mundo. Muitos ainda estão familiarizados com os livros de ascese, que contêm um julgamento globalmente negativo sobre a corrupção terrestre. Mas, também é certo que vivemos num clima espiritual diferente, e estamos sendo convidados, especialmente pelo presente Concílio, a lançar um olhar otimista sobre o mundo moderno, seus valores, conquistas... A célebre Constituição Gaudium Et Spes é, toda ela, encorajamento a essa nova atitude espiritual” (Doc.Cath. 21 Jul 1974, n.° 1658, pp. 60 e 61).[1] 

A partir de então, o clima era de fraternidade. Não mais anátema, não mais condenações, mas uma certa “simpatia” pelo homem que com sua religião própria se faz Deus. 

Este é o verdadeiro espírito de Assis. A Igreja não é mais vista como a que detêm a Verdade plena, mas apenas e no mínimo uma entre tantas outras. De “Mãe e Mestra da Verdade”, de “Corpo Místico de Cristo”, passa a ser “servidora do homem”. 

Em Assis o Papa ficará ao meio, visto que é o dono da casa, mas nada impede que, pelo espírito de comunhão universal, algum outro “guia” espiritual o convide para encontro semelhante. Lá ele não ficará no centro, não presidirá, será apenas um entre outros... 

Pedro, tu me amas?” 

Esta pergunta de Nosso Senhor a Pedro feita por três vezes quer ressaltar a grandiosa importância do Vigário de Cristo na terra. Do amor, que não é mero sentimento, mas querer. Pedro deve passar ao exercício de sua missão que é a confirmação na Fé de seus irmãos. 

No original grego, esse texto nos apresenta algo muito particular e interessante. Dois verbos se contrapõem: o falado por Nosso Senhor em sua pergunta a Pedro e o usado por Pedro em sua resposta a Nosso Senhor. 

Pedro, tu me amas?” – Jesus usa o verbo αγάπη, ágape, que significa um amor maior, um amor sacrifical, um amor que dá a vida. 

“... Tu sabes que eu te amo” – Na resposta de Pedro não se percebe o mesmo verbo de Jesus, mas um verbo inferior, correspondente a um simples “gostar”: γεύση. 

Mesmo vacilante, é Simão o escolhido: “Apascenta as minhas ovelhas!”. Sabemos o significado da imposição do nome para um judeu. Nosso Senhor chama de Rocha, aquele que de nome e de fato era apenas um “caniço”: Tu és Pedro! – Eis o mistério que envolve a pedra sobre a qual a Igreja é edificada. 

Mesmo vacilante, Pedro é a Pedra. Sabemos que todos os atos, gestos, colocações de um Papa não estão revestidos do caráter da Infalibilidade. Tornar infalível tudo o que ele faz e diz é não compreender a doutrina católica proferida solenemente no Concílio Vaticano I, quando da proclamação do dogma da infalibilidade papal. Deve-se entender bem quando o Vigário de Cristo, pelo uso de seu Múnus pleno, supremo e universal, define de forma infalível uma doutrina. Na história da Igreja temos muitos exemplos disso. O papa Libério não se fez “rocha”, mas “caniço”, quando favoreceu à heresia Ariana. O grande Pio IX, no início de seu reinado favoreceu aos liberais, chegando a nomear um primeiro ministro para a Itália nada católico, sendo aplaudido pela maçonaria em todo mundo, entretanto proclamou ele o Dogma da Imaculada Conceição o da Infalibilidade papal, além de escrever o Syllabus. S. Pio X, por sua vez, deixou-se enganar pelo movimento de Sillon, de Marc Sangnier; recomendou que os bispos da França abrissem-lhes as portas, mas depois, percebendo os erros, o condenou severamente (Carta Apostólica Notre Charge Apostolique, Pio X). 

Mas tudo isso não tira do papa o que ele é: A rocha. 

No mundo inteiro, católicos têm suplicado ao Santo Padre que não vá a Assis. Com filial devoção, esperam que Bento XVI tome um caminho diferente. Que nos confirme na fé. Um filho pode colocar-se diante do pai até para discordar de suas atitudes. São Bento ensina na Sta. Regra que o Abade deve está atento aos mais novos, porque às vezes Deus serve-se deles para exortar. Santa Catarina de Sena, humildemente, suplica ao papa que retorne a Roma, onde é o seu lugar. 

Desprovido da santidade de Catarina de Sena e de sua grandíssima humildade, uno-me a todos os fiéis e sacerdotes que, compreendendo, o perigo do Encontro de Assis, roga ao Papa: “Santo Padre, não vá a Assis, confirma-nos na Fé!” 

E que Fé é esta? A mesma que nos foi dada por Nosso Senhor e transmitida até nós pelos apóstolos. A Fé pela qual os mártires derramaram seu sangue, os doutores ensinaram, os missionários anunciaram... A Fé de sempre que brilha na Igreja de todos os tempos como luz que não conhece ocaso. A Fé como ensina o Credo dos Apóstolos; a Fé como proclamada por Santo Atanásio no Quocunque: 

Quem quiser salvar-se deve antes de tudo professar a fé católica. Porque aquele que não a professar, integral e inviolavelmente, perecerá sem dúvida por toda a eternidade...” 

Não se pode julgar as intenções de João Paulo II, como não nos atrevemos a julgar as intenções de Bento XVI com esse novo encontro de Assis. O fato é que o Encontro de Assis criou problemas graves à unidade da Fé, bem como à unidade litúrgica e disciplina eclesiástica, todavia, mais grave são os maus frutos que vão do escândalo à blasfêmia, como ocorreu e foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação. Chegou-se ao cúmulo de se colocar uma imagem de Buda em cima do altar onde repousam as relíquias de S. Vitorino, morto 400 anos depois de Cristo por testemunhar a Fé, para ser reverenciada pelos budistas ali presentes... Soube ainda, e de fontes seguras, que, após o encontro, conscientes da profanação que ali acontecera, devido ao uso dos altares por cada seita, a basílica teria sido, às portas fechadas, re-consagrada durante a noite. 

O que se busca nesse encontro? A Paz. No primeiro encontro de Assis, realizado na frente da porciúncula, via-se a palavra paz em todas as línguas. Todos se reuniram para pedir aos seus “deuses” a Paz. Digo “a seus deuses”, porque o conceito, a idéia de Deus é bem diferente nas religiões e seitas existentes. O que seria, então, Deus para os hinduístas, brahmistas, hare krishna e todos os outros nomes estranhos e difíceis de se pronunciar? Certamente não é o mesmo Deus Uno e Trino, do cristianismo católico. 

Na Dominus Iesus, da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, escrita pelo próprio cardeal Ratzinger, acolhida com entusiasmo por uns e desprezo por outros, lemos coisas “bem católicas”, e que por muito tempo já não se dizia nem se defendia mais. Não que se negasse, de frente, o dogma “Fora da Igreja não há Salvação”, mas ou se esquecia de ensinar, em nome de uma fraternidade sem fronteiras, ou se dava uma nova interpretação mais moderna e menos católica. 

Pude escutar muitos “famosos” teólogos doutores, aqui no Brasil, desdenhando a Dominus Iesus. Estive presente num encontro para padres e seminaristas onde o teólogo-doutor, além de menosprezar o documento, orientava que se jogasse na gaveta. 

... Assim, e em relação com a unicidade e universalidade da mediação salvífica de Jesus Cristo, deve crer-se firmemente como verdade de fé católica a unicidade da Igreja por Ele fundada. Como existe um só Cristo, também existe um só seu Corpo e uma só sua Esposa: uma só Igreja católica e apostólica.” (Declaração Dominus Iesus). 

Percebe-se, claramente, uma dissonância entre o que se ler aqui e a prática do encontro de Assis que iguala todas as religiões e, se as religiões são igualadas, deve-se crer, a partir daí, que já não há uma objetividade na Verdade, mas um relativismo que deve permear o crer (a Fé), o celebrar (o culto), o agir (a Moralidade dos atos). 

Em 25 de janeiro de 2002, entusiasmado com o sucesso do II encontro de Assis, Pe. Vicenzo Coli, superior do convento de S. Francisco, fez a seguinte proposta: “que Assis possa promover um encontro anual para celebrar o sagrado ser humano” (Folha de S. Paulo, Cad.A, pg A-11, de 25/01/02). 

Claro, a expressão usada pelo Pe. Coli é o resumo de tudo para onde caminha Assis: ao pantheon, onde o culto do homem possui também o seu altar. 

Pergunta-se: por que um papa como Bento XVI, que sabe-se não ter desejado o I encontro de Assis, e de ter feito o que pôde para que o II encontro, realizado em 24 de janeiro de 2002, não parecesse tão escandaloso como o primeiro, resolveu convocar o III Encontro de Assis? Possuidor de uma invejável inteligência, reconhecida até por seus inimigos, como cardeal constatou tudo o que aconteceu nos arredores de Assis e na Igreja inteira, depois disso. 

O professor Dr. Peter Beverhaus, emérito em missiologia e teologia ecumênica na Faculdade de Tubinger, na Alemanha, a mesma onde o Card. Ratzinger ensinava, recebeu uma mensagem pessoal do Santo Padre, na qual o Pontífice tratava de Assis. Nela há uma insinuação de que ele, Bento XVI, não foi o promotor deste III evento. Vejamos: 

Pode-se deduzir da carta que a iniciativa deste evento de aniversário, que, de fato, ele considerou necessário, aparentemente não partiu dele. Ele, no entanto, comparecerá e, como escreve literalmente, ‘tentará determinar a direção como um todo e fazer tudo [que estiver a seu alcance] para impossibilitar uma explicação sincretista ou relativista do acontecimento’. Ele explicitamente me autorizou a tornar pública esta sua opinião, mas pediu para deixar claro que eu confio que o Papa permanece firme naquilo que ele é chamado por conta de sua função — isto é, fortalecer seus irmãos na fé em Jesus Cristo como único Filho de Deus e Redentor e confessá-Lo inequivocamente” (Em Kirchliche Umschau, abril 2011, fonte: Rorate Caeli). 

Rezemos pelo Santo Padre mais ainda, para que cumprindo sua missão possa, sem hesitar,  golpear o liberalismo em seu âmago e assim responder – até com o martírio, se for preciso – intrepidamente, sem vacilar, mas com heróica firmeza:

Senhor, tu sabes tudo de mim. Tu sabes que eu te amo!



[1] Esta afirmação de Paulo VI é, desculpem-me os mais sensíveis, demoníaca. Ela desconhece a Queda, ou talvez a interprete como uma metáfora; desconhece vários Livros Sagrados, dentre eles o Eclesiastes, o de Jó, e o famoso tema da Campanha da Fraternidade de 2010, Rm. 8, 22. Desconhece ainda o valor da Redenção, desconhecendo assim todos os Evangelhos. Se uma única afirmação tivesse de ser escolhida para representação a situação atual da Igreja, eu escolheria exatamente esta. Ah! Sim. Ela desconhece também todo a Teologia Ascética e Mística. (Nota do blog)

07/05/2011

Novo projeto do blog

O blog lança agora, sob a responsabilidade de meus filhos Henrique e Thiago (Sim! O blog agora é uma questão familiar!), um modesto projeto: o de legendar os vídeos acerca de Chesterton, do pessoal do Theater of the Word Incorporated. As legendas em português foram autorizadas pelos produtores dos vídeos. Postaremos, presumivelmente, um vídeo por semana, para os quais abrirei uma nova "tab" no blog. Vamos, então, ao primeiro vídeo. Divirtam-se.


06/05/2011

Machado de Assis e o Eclesiastes – Parte II: exegese machadiana


Em O Desconcerto do Mundo
Gustavo Corção


Recomendamos a leitura de Machado de Assis a quem desejasse apurar o ouvido para o áspero e aflitivo timbre do Eclesiastes. Agora sugerimos a leitura do livro atribuído a Salomão a quem desejar compreender um pouco melhor o tão caluniado pessimismo de Machado de Assis. “No Eclesiastes há tudo para todos” dizia já em 1895 o cronista da A Semana. Haverá, pois, para os críticos, uma chave que permita abrir os cofres secretos desse mesmo autor que em outra crônica, de 1893, escrevia: “Onde há muitos bens, há muitos que os comam, diz o Eclesiastes, e eu não quero outro manual de sabedoria.” São numerosas as passagens em que Machado se refere a esse manual de sabedoria tão adequado ao seu estilo, mas o que nos autoriza a dizer que o livro sagrado exerceu poderosa influência sobre o autor de Brás Cubas não é a freqüência da citação. É antes a profunda, a misteriosa perspicácia com que Machado penetrou o espírito do angustiado Qohelet. 

Nas páginas anteriores, seguimos a hermenêutica traçada pelos sábios comentadores, pela qual o Eclesiastes será um livro existencial, uma espécie de filosofia do absurdo, um manual de contra-senso escrito na pauta da limitação marcada pelos horizontes terrestres. Se a sorte do homem é o que se vê sob o sol, então a vida é um disparate. A forte estimulação desse livro consiste na confiança incondicionalmente posta na fé dos mandamentos. Esses, aconteça o que acontecer, não podem ser absurdos. Serão incompreensíveis como os sofrimentos de Jó e como o sacrifício de Abraão. No dinamismo das propulsões negativas, ou melhor, do vácuo produzido por essa bomba pneumática, tira-se a conclusão: a sorte do homem não pode limitar-se ao que se vê. Ou ainda, do que se vê tira-se todo um prenúncio do que está escondido. 

Os autores das modernas filosofias existencialistas optaram pelo absurdo. O que vale dizer que não optaram, e que ficaram detidos, imobilizados, sem ímpeto para atravessar o espelho e entrar no mundo das maravilhas. Dessa paralisação da inteligência resulta um pessimismo real, profundo, desconsolado e degradante, que não era, de modo algum, o pessimismo de Machado de Assis. Melhor do que a maioria dos nossos críticos, o inglês que comentou a tradução de Brás Cubas chamava a atenção para o que denominou pessimismo estimulante. 

Até seus últimos dias, na desolação da velhice e da viuvez, Machado de Assis conserva intato o senso moral. Se nos romances parece ter atingido um cansaço de vida e um desconsolo supremo, aí está sua correspondência para nos mostrar o outro lado do homem que persiste em crer no homem e na realidade moral. E a explicação desse dualismo está no Eclesiastes, que é por assim dizer um livro onde o principal é justamente o que falta: a notícia de nossa transcendência, e de nossa ressurreição. O princípio da complementaridade, que tem tanta importância nas teorias interpretativas da física moderna, e que também dá uma das regras capitais para a interpretação do Livro Santo, mostra-nos o desolado discurso do Qohelet como um sequioso apelo à outra metade da história que só muito mais tarde será revelada. O sábio-louco diz “tenho sede”, como Cristo na cruz, momentos antes da ressurreição. Sede de complemento, de completação, de consumação. Sede de solução. 

Ora, há uma passagem de sua obra onde se vê que Machado de Assis compreendeu muito bem essa complementaridade dos mistérios de Cristo: é aquela em que, ao Eclesiastes, contrapõe o Sermão da Montanha. Em 25 de março de 1894, o cronista da A Semana, disfarçando com guizos de frivolidade a sua sabedoria, entra a descrever um ofício da Paixão a que assistira. E termina assim a crônica como aquele seu ar de quem não sabe que está dizendo coisas enormes: 

“Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

– Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
– Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados.
– Vêde a injustiça do mundo. Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.
– Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
– Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males ...
– Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da  justiça, porque deles é o reino do céu. 

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de Esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo como o povo. E o sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos ...” 

Como se explica, pergunto eu, sem apelos ao caso, essa aproximação que tem finuras de sutil hermenêutica? Nós outros, depois de lermos muito sábios exegetas, chegamos a essa mesma conclusão. Depois de vivermos longos anos no convívio dos doutores em teologia, conseguimos entrever as escondidas intenções do antigo escritor inspirado. Machado achou aquilo sozinho, talvez na Rua do Ouvidor, porventura na mesma esquina onde teve a notícia do 15 de Novembro: “Disseram-me na Rua do Ouvidor que os militares proclamaram a república ...”    

03/05/2011

Machado de Assis e o Eclesiastes – Parte I: o Eclesiastes

Em O Desconcerto do Mundo
Gustavo Corção

Nota do blog: Compartilho com os leitores um trecho extraordinário de O Desconcerto do Mundo, livro que arrancou de Manuel Bandeira a seguinte frase, em bilhete enviado a Corção: o livro “precisa ser traduzido para todas as linguas, a fim de mostrar lá fora que nós também somos dignos do Prêmio Nobel.” Neste trecho, que dividi em dois posts, há, primeiro, uma exegese de Corção do Livro do Eclesiastes, e depois uma exegese do próprio Machado sobre o estranho livro bíblico.

Era o predileto de Machado de Assis esse livro estranho, desconcertante, que permitiu aos comentadores e exegetas a extensa gama de perplexidades que vai de um Pertersen, que denuncia o ceticismo e pessimismo do sábio Qohelet até o R. Pe. Buzy, que concebe a tese central do livro como uma filosofia otimista moderada do honesto meio-termo! E continua a ser o livro provocante, que assusta o leitor quando o citamos, ou quando afinamos nosso falar por seu diapasão. Aliás, apesar do movimento bíblico que corre paralelo ao movimento litúrgico, e apesar da encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII, não somente o Eclesiastes, mas toda a Bíblia permanece um livro fechado para a maioria dos católicos.[1] Em página famosa do Génie du Christianisme, Chateaubriand descreve o embaraço, o susto do católico mediando que pela primeira vez corre os olhos pelas páginas da Bíblia. É este então o Livro Santo?! Como discernir a palavra de Deus nesse amontoado de textos que parecem reunidos por acaso? Como ajustar a boa e sólida doutrina de bom comportamento e idéias medianas, a doutrina que a gente ouviu nos sermões ou leu nos livros edificantes, com essa torrente de fatos e personagens nem sempre louváveis, ou com essa erupção de imprecações e gemidos de desamparo?

É fácil imaginar o espanto desse leitor se a loteria das páginas folheadas o conduz àquele ponto onde alternativamente se exprimem o descrédito e o louvor da sabedoria, onde se diz que a vida é detestável e logo após se canta uma alegria de viver num tom que deixa divididos os exegetas, onde, em suma, a tese e a antítese se acotovelam. Como também é fácil imaginar o choque desse leitor na passagem do livro de Jó (clique também aqui) onde a voz de Deus, dentro da tempestade, repreende os amigos de Jó, cujos discursos, pelo tom razoável e piedoso, tanto se assemelham ao que se ouve nos bons sermões paroquiais. 

No Eclesiastes a dificuldade começa pelo pluralismo de tons. Há diversas vozes. Haverá diversos autores? O Pe. Buzy, comentador do livro na Bíblia dirigida por Louis Pirot, pronuncia-se a favor da pluralidade de autores, que seriam os seguintes: Qohelet, autor dos discursos principais sobre as decepções e vaidades da vida; um piedoso judeu, hasid em hebraico, incumbido de retocar e mitigar as asperezas da primeira voz; um sábio, hakham, autor de numerosas sentenças disseminadas pelo livro sem ordem aparente; e finalmente o epiloguista, que fala de Qohelet na terceira pessoa e que encerra o livro inopinadamente em termos de fidelidade aos mandamentos. Mas R. Pautrel S.J., comentador do opúsculo publicado pela Escola Bíblica de Jerusalém, acha perfeitamente admissível a unidade de autor desde que se tome o pluralismo de vozes como uma discussão interior, como uma espécie de assembléia dos personagens tirados por clivagem de uma agonia íntima, de uma perplexidade vivida. Nesse sentido, Qohelet, o personagem mais eloqüente e mais embaraçador, seria uma espécie de eu antitético, um antieu, ou um contraditor que resolve exprimir brutalmente suas dificuldades. Para o Pe. Pautrel, que me parece muito mais fino do que o Pe. Buzy, o nome de Qohelet já por si só sugere uma assembléia interior, esse ecclesia dos debates platônicos. (...) 

Fala então Qohelet, e diz o que se vê sob o sol, isto é, diz o que é a vida limitada aos horizontes terrestres. Tudo é vão, e de nada lhe vale a sua sabedoria, porque é a mesma a sorte do louco e do sábio. Chega a maldizer a vida e o dia em que nasceu. Chega a dar parabéns ao aborto. Pois tudo é decepção, tempo perdido, vazio, vaidade, perseguição do vento. E conclui que devemos comer e beber alegremente, assim como hoje se diria que é isto o que se leva desta vida.  É a nossa parte.

Diante de tão subversiva doutrina, o Pe. Buzy se assusta e procura nos convencer que Qohelet apenas verbera os excessos da sabedoria, a estudiosidade curiosa e não a própria sabedoria. Sua filosofia seria assim a do honesto meio-termo. (...)

Mais corajosa e muito mais fina parece ser a interpretação de R. Pautrel, que se situa na mesma linha adotada por Setillange (...).

No debate interior a que se refere o comentador da Escola Bíblica de Jerusalém, Qohelet aparece como um sábio-louco, ou como um sábio que desatou por instantes a mordaça de um doido. E até o deixou usar, na antítese das decepções, palavras que cantam as alegrias da vida como as do insensato do Livro da Sabedoria (Sab. II, 8-9): “Coroemo-nos de rosas antes que elas murchem! Não faltemos aos lugares de prazer, e atrás de nós deixemos o sulcos de nossos gozos, porque essa é a nossa parte.”

Os outros personagens respondem ao apaixonado libelo, à filosofia do absurdo de Qohelet, com palavras de sabedoria positiva e obediente à fé; respondem com paciente obstinação; respondem como Abraão respondeu ao Senhor quando preparou obedientemente a imolação de Isaac. Mas o hasid piedoso e o judicioso hakham não conseguem neutralizar o machadiano observador que observa o que se passa sob o sol. E não conseguem porque não possuem ainda as bem-aventuranças, e a chave da ressurreição, a única que pode responder adequadamente aos absurdos da vida. E o epiloguista encerra essa estranha mesa-redonda de uma alma ardente dividida com palavras inopinadas, que deixam o debate mais aberto do que nunca: “Além disso, meu filho, fica prevenido de uma coisa: escrever livros é um trabalho sem fim que cansa o corpo. Dou por terminado o discurso. Se bem entendeste, teme a Deus e guarda os mandamentos ...” Como assim? Se bem entendi o quê? Terminado como? A tentativa de exegese racionalista se ressente de uma falta de finura que o erudito, suposta a possibilidade de tal conversão, poderia adquirir na leitura de Machado de Assis, de Sterne, de Camões. Essa leitura profana não traz autoridade para orientar a interpretação dos textos sagrados, mas tem a virtude de aguçar a alma e permitir melhor sincronismo como as intenções e subintenções de um autor difícil. O que então se depreende é que o ácido tom do Eclesiastes revela uma lúcida e penetrante ciência das coisas vistas sob o sol. Essa ciência, que tem ares de loucura, é verdadeira, pungentemente verdadeira, desde que se observe bem o condicionamento estabelecido pela clave fundamental do discurso: sub sole. É um pessimismo – não um brutal e degradante pessimismo como o dos modernos que academicamente se instalam e vivem da filosofia do absurdo – é um pessimismo estimulante, como o dom de Ciência que desabrocha nas lágrimas. É também uma pedagogia de provocação, contra o torpor criado pelo naturalismo e contra a secura do racionalismo cientificista, que nos leva a procurar mais alto a chave de nossa sorte. Embora em pauta diferente, O Livro do Eclesiastes tem a mesma intenção do Livro de Jó, e inscreve-se dentro do depósito sagrado como uma espécie de demonstração por absurdo da transcendência de nossa vocação, pois de outro modo, se tudo se limita ao que se vê sob o sol, ao castigo dos bons, à impunidade dos maus, à glória dos impostores, e ao massacre dos inocentes que se tornou uma rotina das civilizações, então a vida é realmente absurda e só nos resta comer e beber, como dirá o Apóstolo, ou só nos resta a coroa de rosas, enquanto não murcham, ou então o riso, a mofa, a figa aos prestígios do mundo e a língua de fora aos astros indiferentes. “Eia! Chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te. É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.”

Leiam também Machado de Assis e o Eclesiastes - Parte II: exegese machadiana.


[1] Se isto era verdade em 1965, imagine agora, depois de 50 anos de CVII! (N. do Blog)