10/08/2008

Nelson Rodrigues é mais católico que a CNBB

Nota prévia - Num dos meus comentários sobre o folheto das missas dominicais, comentei sobre o que dizia o padre Nilo Luza (redator do folheto) sobre o milagre da multiplicação dos pães. O padre fazia, usando o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, apologia do “fome zero”. O padre esquecia da dimensão eucarística do pão, de sua função de alimento da alma.

É obvio que o pão sempre tem uma dimensão material, de matar a fome do corpo, apesar de não ser essa a dimensão a ser explorada numa homilia sobre a multiplicação dos pães. Mesmo assim, falar do “fome zero” quando se quer falar da dimensão material do pão é de uma impropriedade extraordinária.

Para falar da miséria, da fome e do pão, convoco um autor (e uma crônica). Não, não é Santo Atanásio, não é Santo Agostinho, não é nem mesmo Santo Tomás de Aquino. Esqueçam Chesterton e Belloc. Esqueçam papas e cardeais. Convoco Nelson Rodrigues, o reacionário. Sua crônica?
Marxismo e asma. Que São José proteja a Igreja de Cristo que hoje se encontra invadida por apóstatas.


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Já lhes falei do meu amigo marxista. Sempre o encontro com a bombinha da asma. Ele próprio declara, com tenebroso humor, que se não fosse a bombinha estaria morto e enterrado desde a Primeira Batalha do Marne. Dizem seus amigos que seu marxismo e todo o seu horror à ordem capitalista são de fundo asmático.

Anteontem procurou-me, irritadíssimo. Chama-me para um canto: – “Preciso falar contigo.” Arquejava, e teve que usar a bomba. Fez tanto “suspense” que pergunto, interessado: – “Mas o que é que há?” Olhou para os lados e então, ainda ofegante, disse: – “Aquele teu artigo está de um reacionarismo!” – pausa, e repetiu, de olho rútilo e lábio trêmulo: – “De um reacionarismo, rapaz!”

Até hoje não sei se a sua irritação era mesmo irritação ou deslumbramento. Ainda perguntei: – “Meu artigo?” Ah, sou um autor sujeito a lapsos fatais. Quantas vezes me esqueço do que escrevi há meia hora? Foi ele quem me alumiou a memória: – “O artigo da fome!” Era verdade. Eu escrevera recentemente artigo sobre a fome de 1917, 18 e 19.

É de caso pensado que ponho as datas. E, com efeito, a fome muda o seu comportamento de época para época. Nos anos citados ela não tinha o apelo, o patético, a promoção dos nossos dias. Bem me lembro dos meus seis, sete anos. De vez em quando vinha gente bater na nossa porta: – “Um pedaço de pão! Um pedaço de pão!” Eis a palavra e a imagem: – pão. Há uns quarenta anos não vejo ninguém pedir pão a ninguém.

Outro dia ocorreu um episódio que me parece singularmente ilustrativo. Uma santa senhora deu pão a um mendigo. O sujeito apanhou o pão e o olhou, esbugalhado, como se não entendesse a esmola. E súbito deu-lhe uma ira, um ódio. Agrediu a senhora, deu-lhe uma surra de pão. A vítima pôs a boca no mundo. Com um rapa fulminante o mendigo a derrubou: e, por cima da senhora, queria enfiar-lhe o pão pela goela abaixo.

Assim se comporta a fome da nossa época. Vive do ódio. Outrora, não. Na Confissão que provocou o divertido horror do marxista asmático eu escrevia, justamente, sobre os famintos da minha infância. Ah, naquele tempo tínhamos por aqui uma fome sem raiva, sem agressividade, dócil, mansa e como que consentida.

Um dia houve um enterro em Aldeia Campista. Salvo engano, o morto era “Seu” Ferreira, português rico, dono de um armazém. Quatro cavalos de crepe e penacho puxavam o carro fúnebre. Na hora certa o enterro vai partir. E então acontece o seguinte: o cocheiro desmaia, simplesmente desmaia (caiu-lhe a cartola).

Corre-corre no portão. Dois ou três agarram o homem; dão-lhe tapinhas na cara. Finalmente, abre os olhos; arquejante, geme: – “Quero comer, quero comer.” E fazia o apelo por entre lágrimas. Foi carregado para o interior da casa enlutada. Lá dentro alguém improvisa um prato fundo de feijão com arroz. O cocheiro começa a comer. Súbito pára e, de boca cheia, pergunta: – “Tem uma pimentinha?”

Aquele homem não comia há dois dias. E não faltou à funerária. Lá estava, de cartola, fazendo o enterro de luxo. E, não fosse derrubado pela inanição, chegaria ao cemitério. Eis o que eu queria dizer: era uma fome sem Ministério do Trabalho, sem greve, sem reivindicações salariais. Ainda garoto, tivemos uma cozinheira que tinha um filho por ano, matematicamente. Chamava-se Hortência. Era uma fecundidade radiante. Dizia, na cozinha, esplêndida de vaidade: – “Tenho os meus filhos em pé.”

E assim chegou aos nove, dez, onze filhos. A fome levou nove. Exatamente nove filhos. Os mais resistentes morriam aos cinco, seis anos. Pois a mãe os enterrava sem pena, nem ressentimentos. Ter os filhos e perdê-los era a sua rotina. Ela própria não odiava a fome, e repito: não havia desespero, nem tristeza, na sua fome.

Muitos anos depois, vou a Caxias e a encontro lá. Já se tinham incorporado à vida brasileira os direitos trabalhistas. Falava-se, na época, que o novo salário-mínimo seria de seis mil cruzeiros antigos. A minha ex-cozinheira, já alquebrada, já avó, ralhava com o genro: – “Sei contos é demais. Onde já se viu? Seis contos é abuso.”

Claro que o marxista queria que eu apresentasse uma cozinheira retórica como “La Passionaria”. E, como não a descrevi derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas, o leninista me chamava de reacionário[1]. Curioso é que ele escreve bem. Se deixasse de fazer concessões às esquerdas, seria capaz de obra-prima. Também a asma o prejudica literariamente.

O Brasil de minha infância não tinha assalto por isso mesmo: porque a fome não assaltava e digo mais, a fome ainda não assaltava. O assaltante não quer comer. Mata e fere para ter o supérfluo. Dirá alguém que estou falsificando a verdade. Mas insisto em que só a fome literária do Zola arromba padarias, e só ela pendura o padeiro num pedaço de pau.[2]

Hoje há uma fúria. Quantos vivem da fome? Por exemplo: D. Hélder. Sempre teve gênio promocional e nunca foi um obscuro. Mas faltava ao D. Hélder anterior o dramatismo, a potência, a fama do D. Hélder da fome. A fome tem-no feito. Podíamos apresentar a fome como a autora de D. Hélder. Ele precisava ter, por fundo, a mortalidade infantil. Mas coisa curiosa! Os grandes indignados da fome não são as suas vítimas, mas os que não a tem. Sim, são os bem alimentados que vociferam e dão patadas.

Ainda ontem, uma grã-fina batia o telefone para mim. Reclamava de uma Confissão que tratava, justamente, da fome da Índia. E a excelente senhora agrediu-me como se eu fosse o culpado, da fome do Nordeste, da Índia, Paquistão, Biafra, e de todos as misérias passadas, presentes, e futuras.

Perguntou-me: – “Você acha que a Índia gosta de passar fome? Acha que a Índia gosta de ver as cinzas do próprio cadáver no rio? Sua literatura sobre a fome é desumana.” Eu poderia responder-lhe: – “Meu anjo, por que é que você não asfalta uma favela com seu colar de quinhentos milhões antigos?” Mas sou um tímido e um delicado. E conversei longamente no telefone.

Disse-lhe eu o óbvio total: – a fome é o mais antigo hábito dos hábitos humanos. Ora, um hábito não dói, não faz sofrer. Por exemplo: a Índia. Há seis mil anos que o cadáver é atirado no rio. E o cadáver já não se espanta mais. Lá, milhões de sujeitos não moram. E bebem, a mãos ambas, a água da sarjeta. Do outro lado da linha, a grã-fina esperneava: – “Isso é blague. Não brinque com coisas sérias.” Por fim, como ela tomava a verdade por piada, disse-lhe: – “As vítimas da fome sofrem menos. Quem se descabela, e soluça, e quer chupar a carótida das classes dominantes, são a senhora, D. Hélder e o Dr. Alceu.”[3] Ao ouvir falar no Tristão, pulou: – “Você quer negar a bondade do Alceu?” Com a humildade de um torpe que fala de um santo, desejei que o Mestre tivesse milhares de boas ações, inclusive do Banco do Brasil, da Vale do Rio Doce, Petrobrás e outras. A grã-fina perdeu a paciência. Bateu o telefone.

[1] Nelson vê aqui o óbvio ululante, como ele mesmo gostava de dizer: o marxismo é filho dileto da Revolução Francesa, aquele episódio que, assim se diz, criou o mundo moderno. E a Igreja pós-conciliar optou pela Revolução Francesa, como nos diz candidamente João Paulo II: "Nos documentos do Concílio Vaticano II pode-se encontrar uma sugestiva síntese da relação entre o cristianismo e o iluminismo" (João Paulo II, Memória e Identidade, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2005, pg 126). (Nota do blogueiro)

[2] Quem quiser saber quais são as raízes da violência no Brasil, o texto fundamental, para mim, é o de Olavo de Carvalho: Bandidos e letrados. Olavo e Nelson diagnosticam certeiramente o problema. (Nota do blogueiro)

[3] E a CNBB. (Nota do blogueiro)

2 comentários:

Leandro disse...

Excelente artigo

Parabéns por seus artigos, que fazem muitos Católicos começarem a pensar e não ser apenas aquele Católico passivo, morno aceitando a Paz e Amor Hippie no lugar do verdadeiro catolicismo.

Pax et bonum

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Leandro,

Salve Maria!

Os católicos atuais precisamos nos converter ao catolicismo verdadeiro que quase desapareceu da realidade da Igreja.

Lembremos de São Tiago (Tg. 5,19): "Saiba que aquele que reconduzir um pecador do erro do seu caminho, salvará uma alma da morte e cobrirá uma multidão de pecados."

Como eu tenho muitas multidões de pecados, preciso, pelo menos, tentar reconduzir algum pecador do erro. Que Deus me ajude!

Um abraço e obrigado pela visita e pelo comentário.

Antônio Emílio.