14/08/2006

A fragilidade da civilização

G.K. Chesterton

Nota

Percival Puggina, de maneira muitíssimo oportuna, recoloca em sua página um artigo de Paul Johnson, de 2004, sobre o terrorismo. Afirma o historiador que “A maioria das pessoas, a quem falta um adequado conhecimento da história, tende a subestimar a fragilidade de uma civilização. Elas não percebem que as civilizações declinam, da mesma forma como se desenvolvem. As civilizações podem ser, e têm sido, destruídas por forças malignas.” Temos uma doentia facilidade de esquecer esse alerta, apesar de ele ter sempre nos chegado dos mais sábios dentre nós. Christopher Dawson também nos lembra que “Aprendemos que o barbarismo não é um mito pitoresco ou uma memória quase esquecida de um passado distante, mas uma monstruosa realidade subjacente que pode entrar em erupção com uma inconcebível força destruidora nos momentos em que a autoridade moral de uma civilização perde seu controle

Johnson, no artigo citado, nos descreve três “idades tenebrosas” em que o mundo civilizado se viu escravo das “forças malignas”. Mas, houve também uma ameaça que, pela graça de Deus, fracassou e que, talvez, tivesse sido nosso mergulho definitivo no abismo. Essa ameaça teve um nome: se chamou Moloch. Chesterton descreve, magistralmente, a luta entre Roma e Cartago. São palavras sábias e oportunas. Elas aparecem no livro Everlasting Man (O Homem Eterno). O trecho é transcrito abaixo, adaptado de uma antiga tradução.
[1]

Negritos são todos meus.
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Do outro lado do mar, erguia-se uma cidade que tinha o nome de Vila Nova. Era chamada de nova porque era uma colônia, como Nova York ou Nova Zelândia. Sentinela avançada da expansão fenícia, aprazia-se em afirmações de uma sonoridade metálica e repetia, orgulhosamente, que ninguém poderia lavar as mãos no mar, sem licença de Vila Nova. Herdara de Tiro e Sidon suas prodigiosas aptidões comerciais e uma perfeita ciência na arte da navegação.

Em Vila Nova, que os romanos chamavam de Cartago, o deus que punha os negócios em marcha, chamava-se Moloch, o mesmo, quiçá, que encontramos noutra parte com o nome de Baal, o Senhor. Os adoradores de Moloch não eram nem primitivos nem grosseiros. Sua civilização era, pelo contrário, suntuosa, madura, refinada, e muito superior, nas artes da vida, à dos romanos. E Moloch não era um mito. Sua comida, pelo menos, nada tinha de mítico nem de fabuloso. Aquelas respeitáveis pessoas reuniam-se, efetivamente, para invocar aos céus que abençoasse seus frutíferos negócios, precipitando, na pira ardente, centenas de crianças.

Dito isto, seria fácil prestar demasiada atenção aos começos do conflito que estes honrados cavalheiros começaram com Roma. A fase puramente política ou comercial da querela perde-se, por definição, em uma infinidade de detalhes, e as guerras púnicas, que num momento pareceram que jamais iam terminar, quase não tiveram começos que se pudessem fixar com exatidão. É indiscutível que, em determinada ocasião, tendo Cartago conquistado a Sicília e posto o pé na Espanha, Roma se viu colhida nas mandíbulas de uma tenaz que lhe teria esmagado infalivelmente se, em sua natureza, suportasse ser esmagada. Praticamente, por outra parte, ela o foi, e se ali não estivessem em jogo mais que fatores materiais, o caso teria terminado como contavam os cartagineses. Censura-se, comumente, aos romanos terem-se negado, sempre, a fazer a paz. Um instinto profundo lhes advertia que, com tais adversários, não haveria paz possível. Censura-se seu pertinaz “Delenda est Cartago” mas esquecem que foi Roma a destruída e que a luz sagrada, que a banha através das épocas, provém, em parte, de ter ressuscitado entre os mortos.

No momento decisivo da guerra, Roma soube que a Itália, por um milagre de estratégia, acabava de ser invadida pelo Norte. Aníbal marchava sobre Roma e os romanos, mandados ao seu encontro, convertiam-se em joguetes nas suas mãos de mago. Como sinal supremo do desastre, Roma via seus aliados abandonarem-na, um a um, na sua fortuna expirante, enquanto que, a marchas forçadas, o invulnerável inimigo aproximava-se de seus muros.

Os augúrios romanos e os arúspices, que viram, nesta hora, cheia de prodígios desumanos, nascer um menino com cabeça de elefante e cair as estrelas do céu como granizo, penetravam mais dentro da realidade profunda dos acontecimentos do que o historiador moderno, que não viu neles mais que o desenlace guerreiro de uma competição comercial. Os que vivam, então, sentiram outra coisa, e o ar mesmo que respiravam foi escurecido por nuvens e penetrado por um hálito envenenado. Não foi uma derrota militar, uma rivalidade mercantil que encheu a imaginação romana com os presságios horrorosos de um transtorno da ordem natural do universo: foi Moloch, o deus Moloch, levantando por cima das colinas do Lácio a sua face espantosa; foi Baal, pisoteando as vinhas italianas com seus tacões; foi Tanit, a invisível, murmurando através de seus véus o chamamento de seu amor, mais espantoso que o ódio. Houve destruição de tudo que é doméstico e fecundo, de tudo o que é humano, sob o alento de uma desumanidade, comparada com a qual, a crueldade é humana. Os deuses do lar, silenciosos e trêmulos, se escondiam obscuramente sob o telhado de suas humildes moradas.

Os deuses estavam mortos e Roma, com suas águias prisioneiras e suas legiões despedaçadas, tinha perdido tudo, menos a honra e a coragem gelada de seu desespero. Nada no mundo ameaçava mais Cartago do que a própria Cartago. Os homens de negócios de Cartago, com o golpe de vista infalível que distingue os verdadeiros realizadores, viam claro na situação. Chegara a hora, pois, de por um freio aos generais e aos gastos gerais, isto é, às contínuas exigências de homens e de dinheiro daquele Aníbal.

Assim aconteceu com os príncipes comerciantes de Cartago e com o seu culto do desespero, justamente na hora em que todas as esperanças pareciam ser-lhes favoráveis. Quem lhes teria dito que os romanos esperavam contra toda a esperança? Onde poderiam eles aprender a conhecer o coração do homem, eles que só reverenciavam o ouro, a força bruta, os deuses com coração de besta feroz? E um belo dia souberam, esfregando os olhos, que, das cinzas que desdenharam dispersar com o pé, acabava de renascer um incêndio novo, devorando tudo o que tinha ante si. E Cartago caiu como um relâmpago, como só antes dela caíra Satã. Da Vila Nova existe apenas um nome sobre a areia e, nem sequer, resta uma pedra que assinale o sítio de seu esplendor. Séculos após a última guerra que acabou de consumar sua perda, uns trabalhadores que escavavam nos escombros de suas construções sepultas tiraram, na ponta das picaretas, as relíquias de sua religião: um punhado de esqueletos minúsculos.

Cartago caiu por ser fiel à sua própria filosofia. Moloch devorou a seus próprios filhos. Os deuses tinham se levantado e os demônios, fugido. Ninguém compreenderá plenamente o gesto de Roma, nem o destino que devia levá-la ao posto supremo, se não conservar toda a memória das horas de vergonha e de agonia, em que perseverou firme, no seu alto testemunho de possuir a alma sensata da Europa. Aos olhos dos homens, doravante, ela personificará a Humanidade, e já a ilumina o reflexo de uma luz, ainda invisível, encoberta pelos véus do futuro. Os desígnios da misericórdia divina são insondáveis para nós, mas um fato certo é que as lutas em que se empenhou a Cristandade teriam sido muito diferentes, se o império fosse vencido por Cartago. Graças ao triunfo de Roma, a claridade divina, na hora por ela escolhida, elevou-se sobre uma humanidade humana, a-pesar-de-tudo. Qualquer que fosse a sua corrupção e a sua miséria, a Europa se livraria de piores destinos. Pois há grande diferença entre o ídolo de madeira, ao qual as crianças oferecem as migalhas de sua comida, e o ídolo gigante que, para saciar sua fome, devora crianças.

O que Roma esmagou não foi um concorrente, mas um inimigo realmente mortal. E quando se ergueu para o golpe de graça, seu braço implacável não pensava mais em seu coração, nem em tratados de comércio, nem em protetorados, mas em um riso execrável e sinistro. O que o romano odiava era a alma odienta de Cartago. Ódio magnífico! Porque soube ser duro, nos é permitido rememorar, sem dureza, o nosso passado humano, e nós não tivemos jamais de abater os bosques de Vênus, como foram, outrora, derrubados os de Baal. Passaram os tempos e hoje estamos de bem com os nossos avós, os pagãos. Antes de virarmos a página sobre eles, ponhamos na frente do que eles foram o que eles teriam podido ser. Honras lhes sejam feitas. A antiguidade é, para nós, um fardo leve e não temos que estremecer diante da ninfa de uma fonte ou do cupido de uma consola. Pela doce cadeia dos sorrisos e das lágrimas estamos vinculados a épocas que já não são, e cuja lembrança não nos faz baixar a cabeça. E não é sem um movimento íntimo de ternura que vemos cair o crepúsculo da tarde sobre a herdade sabina, e os deuses familiares conversarem, alegremente, em voz baixa, quando Catulo volta a Sirmio.

Delenda est Cartago”.


[1] Da qual, infelizmente, não possuo o nome nem do tradutor nem da editora.

Um comentário:

Jair Jr. disse...

Este é o melhor livro que li em toda a minha vida. E este capítulo, em especial, uma aula de vigilância contra as forças do mal.