26/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte VII

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte V, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte VI e Opondo-se à heresia austríaca



Dr. Peter Chojnowski



F) Bernardino de Sena e Antonino de Florença: santos mal interpretados


Devemos ficar muito surpreendidos quando vemos um estudioso neoliberal, como Raymond de Roover, focalizando sua atenção em dois grandes santos: São Bernardino de Sena e Santo Antonino de Florença. [1] Primeiramente, é, acima de tudo, surpreendente que eles sejam denominados, “Dois grandes pensadores econômicos da Idade Média”, pois eles viveram no coração da florescente Renascença italiana. Que esses pensadores sejam aclamados como profetas das benesses do capitalismo liberal é também surpreendente, pois suas atitudes frente a assuntos econômicos não poderiam estar mais afastadas da mentalidade de Ludwig von Mises, que sustentaria que as leis da propriedade privada e do “livre mercado” são adversas às alegações morais “heterogêneas” advindas da lei natural e divina. Aqui, seria útil recordar a afirmação de Mises:

“A insistência para que as pessoas ouçam a voz de suas consciências e para que elas substituam as considerações a respeito do lucro privado por aquelas a respeito do interesse público, não cria uma ordem social funcional e satisfatória.” [minha ênfase]

A única coisa que os dois grandes santos sob consideração pretendiam com suas pregações e escritos sobre assuntos econômicos era “insistir para que as pessoas ouvissem a voz de suas consciências e substituíssem as considerações a respeito do lucro privado por aquelas a respeito do interesse público”. Eles também sustentavam que somente se isso fosse feito, se atingiria uma justa e satisfatória ordem civil.

Quando consideramos os ensinamentos morais de São Bernardino (1380-1444), como estes concernentes às questões econômicas, o que estamos analisando são 14 sermões que fazem parte de uma coleção maior de sermões intitulada De Evagelio aeterno (Sobre o Evangelho Eterno). Esses sermões em latim, em oposição aos escritos em italiano, eram para ser lidos mais que para ser pregados. Aqui, podemos ver a continuação de uma longa tradição, cujo eco pode ser percebido, em nossa época, através de homens como Heinrich Pesch, S.J., tradição essa de incluir questões econômicas dentro do horizonte mais amplo da ética. Nesses sermões de São Bernardino (um franciscano e grande apóstolo da devoção ao Sagrado Nome de Jesus), encontramos repetidos, mais uma vez, os ensinamentos gerais da Igreja a respeito da vida econômica. Como o próprio De Roover admite, a condenação da usura era um tema proeminente nos escritos de São Bernardino.[2] Tal como no caso de outros escolásticos, São Bernardino estava “preocupado com um outro conjunto de problemas [bem diferente de questões do tipo ‘como o mercado opera’]: o que é justo ou injusto, licito ou ilícito? Em outras palavras, o foco estava na ética: tudo era subordinado ao tema principal.” [3] Ambos, São Bernardino e Santo Antonino, desaprovavam o consumismo como um caminho para o pecado e a eterna perdição. Santo Antonino trata do tópico das transações de mercado na secção de sua Summa Moralis que trata do pecado da avareza.[4] Além do mais, a Economia era discutida dentro estrutura de contratos, como entendia Direito Romano. As virtudes que regulavam as ações econômicas individuais e coletivas eram as virtudes de justiça distributiva e comutativa (i.e., o Estado dando aos cidadãos “suas partes” e os cidadãos “dando a cada um a sua parte”). Ora, a única “parte” que os libertários admitem é o alegado respeito absoluto tanto por parte do governo quanto do cidadão à já demarcada propriedade privada do outro. Eles esquecem o que os distributivistas lembram muito bem: todos os homens têm o direito a uma certa propriedade privada. Aqueles que apóiam a Doutrina Social da Igreja Católica, melhor que seus antagonistas libertários, entendem o papel da propriedade privada na realização pessoal e familiar.

Quando estudamos o livro de De Roover sobre esses dois santos supostamente inovadores, temos dificuldade em encontrar um só ensinamento significativo que não esteja firmemente ancorado na sabedoria do passado católico ou que não tenha sido elucidado, de uma forma puramente tradicional, pela posterior e escolástica Escola de Salamanca. Como o próprio De Roover reconhece, São Bernardino, como os escolásticos medievais antes dele, entendia a determinação do preço como um processo social. O preço não é determinado por um conjunto de decisões arbitrárias de indivíduos, mas ele é determinado coletivamente pela comunidade como um todo.[5] São Bernardino diz isso explicitamente quando afirma, “o preço dos bens e serviços é determinado para o bem comum com a devida consideração à valoração e estimação comum feita coletivamente pela comunidade de cidadãos [minha ênfase].” [6] De acordo com De Roover, nos escritos de São Bernardino há apenas “uma análise mínima das conseqüências, no preço, das alterações da oferta e da procura.” [7]

Com relação à questão do preço discutida acima, como já tínhamos percebido anteriormente quando da análise do pensamento de Santo Tomás de Aquino, a descrição de De Roover sobre as “inovações” de São Bernardino é muito forçada e freqüentemente envolve o uso de afirmações que não provam, em absoluto, seu argumento. De fato, elas provam exatamente o contrário. Um exemplo é sua citação de uma única sentença dos “sermões” de São Bernardino que parece indicar que o santo considerava a idéia de “preço justo” semelhante àquela de “avaliação do mercado”. Para apoiar essa afirmativa, ele cita São Bernardino definindo o “preço justo” como “aquele que prevalece num dado momento segundo a estimação do mercado, isto é, aquele que as mercadorias atingem num certo local.” [8]

Como temos visto, contudo, a respeito dessa determinação do preço baseada na “oferta e demanda” e nas “condições do mercado”, havia uma sólida tradição moral, que passava pelos tempos da escolástica tardia, na qual era considerada perfeitamente razoável que preços de certos itens não-essenciais flutuassem livremente, sendo seus valores determinados pelo que alguém, que não tinha a menor necessidade do item em questão, estivesse disposto a pagar. O próprio De Roover parece reconhecer que a expressão “o ‘preço justo’ é o ‘preço alcançado no mercado’ ” se refere apenas a essa situação e àqueles tipos de bens. Mesmo assim, é claro que De Roover quer insinuar que São Bernardino igualava, em todos os casos, o “preço justo” àquele “que prevalece, num dado momento, segundo a estimação do mercado”. Com sua usual forma de expressão dúbia, ele diz, “Essa afirmação [sobre o preço justo e o preço de mercado], parece-me, é tão clara que não admite qualquer outro entendimento.”

Se, como ele parecer dizer, São Bernardino igualava o preço justo ao preço de mercado, todos os preços deveriam, por uma questão de justiça, ser submetidos ao livre fluxo das forças de mercado – qualquer interferência seria, em conformidade com essa perspectiva, uma interferência no mecanismo de determinação do “preço justo” do mercado. Que essa não é a posição de São Bernardino fica claro, pelos dizeres do próprio De Roover, quando ele admite que o franciscano ensinava que “os preços podem ser fixados em nome do bem comum.” A sociedade, então, é responsável pela determinação do preço. Quem não ouve os ecos de todo o etos econômico da cristandade na afirmação de São Bernardino de que os preços podem ser fixados em nome do bem comum, “porque nada é mais iníquo do que promover os interesses privados[9] às custas do bem-estar geral”?


[1] Raymond de Roover, San Bernadino of Siena and Sant'Antonino of Flor­ence: The Two Great Economic Thinkers of the Middle Ages.
[2] Ibid., p. 1.
[3] Ibid., pp.7-8.
[4] Ibid., p. 1.
[5] Ibid., p.20.
[6] St. Bernadine of Siena, De Evangelic aeterno, sermão 35, art. 2, cap.2 and 3 in Opera omnia, IV, 197-198. Esse texto é citado em de Roover, San Bernadino, p.20.
[7] De Roover, San Bernadino, p.21.
[8] Ibid., p.20.
[9] Ibid., pp.20-21.

19/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte VI

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte V e Opondo-se à heresia austríaca


Dr. Peter Chojnowski


E) A complexidade do preço justo reafirmada

De Soto era, como todo escolástico, um herdeiro de uma tradição acadêmica secular. Suas idéias sobre a conveniência de se “fixar” preços tinham antecedentes profundamente enraizados na Idade Média. Aquele “não-gigante”, o estudioso vienense Heinrich von Langenstein, era um defensor de um rígido sistema de controle de preços. Ele sugere ao príncipe, contudo, fixar preços de acordo com o preço habitual que é determinado pelo “grau do desejo humano”. Além do mais, Langenstein demonstra um ponto de vista completamente equilibrado com respeito à questão do preço justo. Ele reconhece que há no preço um fator objetivo, no sentido de que ele deveria ser fixado por alguma autoridade desde fora do mercado mas, ainda assim, que ele é produto de fatores subjetivos. Alguns desses fatores subjetivos mencionados por Langenstein são: oferta e demanda, utilidade, custo da produção, remuneração do trabalho, custo do transporte e risco. Todos esses devem ser levados em conta quando se determina o valor de um bem.[1] Tal como Santo Tomás de Aquino, Langenstein entendia que a “oferta e demanda” desempenha um papel na determinação do preço. A própria Grice-Hutchinson reconhece esta como sendo a posição mantida pela tradição escolástica quando escreve, “vimos que os conceitos de utilidade e raridade tinham um lugar eminente na lista tradicional de fatores determinantes do valor que fundamentava as discussões escolásticas a respeito do ‘preço justo’.” Ela também admitia, “vimos que nossos escritores escolásticos consideravam a utilidade e a raridade como os determinantes principais do valor, apesar de não serem os únicos [ênfase minha].” [2]

Se fossemos procurar um outro membro da Escola de Salamanca que concordasse como o ensinamento de De Soto sobre a desejável fixação de preços, especialmente de “certas” mercadorias, encontraríamos um certo Pedro de Valencia. Em seu Discurso sobre el precio del trigo, ele afirma

“Aqueles que alegam que uma coisa vale o preço que ela alcança devem ser interpretados como se referindo somente a coisas que não são essenciais à vida, tais como diamantes, falcões, cavalos, espadas, e também a outras coisas mais comuns, desde que não haja fraude, compulsão ou monopólio, e quando vendedor e comprador desfrutarem de igual liberdade ou estiverem submetidos a igual necessidade [ênfase minha]”.

Reconhecendo, contudo, que em matérias de real necessidade a população está em clara desvantagem em qualquer operação de troca, ele afirma, “no caso do pão, nos anos em que ele é caro, o vendedor sempre desfruta de liberdade e fartura, e o comprador é sempre submetido a necessidade urgente.” Chegamos agora à questão do preço justo:

“O preço justo não é aquele que é determinado pela necessidade do mercenário, nem pode tal preço, em sã consciência, ser exigido. Nenhum preço é justo ou pode ser considerado corrente se está contra o interesse público, que é a primeira e principal consideração que justifica o preço das coisas.”[3]

_______________
[1] Ibid., p.28.
[2] Ibid., p.64.
[3] Pedro de Valencia, Discurso sobre el precio del trigo (reimpresso in Pedro de Valencia, Escritos sociales, in Biblioteca de clasicos sociales espanoles [Madrid, 1945]); o texto é citado em Hutchinson, pp.118-119.

18/08/2007

Introdução ao LIVRO DE JÓ - Parte II

Ver Introdução ao LIVRO DE JÓ - Parte I

G.K. Chesterton

A importância atual do livro de Jó não pode ser expressa adequadamente mesmo se se disser que ele é o mais interessante dentre os livros antigos. Podemos quase dizer que ele é o mais importante dos livros modernos. Na verdade, nenhuma das duas frases cobre a matéria, pois a religião humana fundamental e a irreligião humana fundamental são ambas, ao mesmo tempo, antigas e modernas; a filosofia ou é eterna ou não é filosofia. O hábito moderno de dizer “Isso é minha opinião, mas posso estar enganado” é inteiramente irracional. Se digo que posso estar enganado, digo que isso não é minha opinião. O hábito moderno de dizer “Todo homem tem uma filosofia diferente; esta é minha filosofia e estou satisfeito com ela” – o hábito de dizer isso é meramente uma fraqueza mental. Uma filosofia cósmica não é construída para satisfazer um homem; uma filosofia cósmica é construída para satisfazer o cosmos. Um homem pode tanto possuir uma religião privada quanto pode possuir um sol ou uma lua privados.

Este ensaio de Chesterton será publicado proximamente pela revista Guia Prático de Teologia. Futuramente, ele será republicado no blog, corrigido e acrescentado das partes faltantes na primeira publicação. Aguardem. (Nota acrescentada em 30 de julho de 2012.)

15/08/2007

Introdução ao LIVRO DE JÓ - Parte I

"O homem é confortado, sobretudo, por paradoxos"


G.K. Chesterton


O livro de Jó é, dentre os livros do Antigo Testamento, tanto um enigma filosófico quanto um enigma histórico. É o enigma filosófico que nos interessa numa introdução como esta; assim, dispensemos umas poucas palavras numa explicação geral ou num alerta a respeito do aspecto histórico. Há muito sobrevivem controvérsias sobre que partes desse épico pertencem ao esquema original e quais partes são interpolações de datas muito posteriores. Os doutores discordam, como é do ofício dos doutores; mas, no geral, a tendência da investigação tem sido sempre na direção de sustentar que as partes interpoladas, caso o sejam, são o prólogo e o epílogo, que estão em prosa, e possivelmente o discurso do jovem que faz uma apologia ao final. Não sou competente para decidir tais questões.

Este ensaio de Chesterton será publicado pela revista Guia Prático de Teologia. Futuramente, ele será republicado no blog, corrigido e acrescentado das partes faltantes na primeira publicação. Aguardem. (Nota acrescentada em 30 de julho de 2012.)

12/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte V

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV e Opondo-se à heresia austríaca

Dr. Peter Chojnowski


D) A Escola de Salamanca e o preço justo

Ao considerar o que a supostamente inovadora Escola de Salamanca dizia a respeito da importante questão do “preço justo”, a questão econômica mais importante do medievo, me defrontei com um texto, contido em The School of Salamanca de Grice-Hutchinson, que me levou a refletir por um momento. Ali, numa citação do livro de Domingo de Soto, De Justitia et jure, publicado em 1553, encontramos a seguinte resposta para a questão, “Devem os preços ser determinados de acordo com a avaliação dos próprios comerciantes?”:

“Primeiramente ... excluindo a fraude e a malícia, devemos deixar os comerciantes fixarem o preço de suas mercadorias. Em segundo lugar ... cada homem é o melhor juiz de sua própria mercadoria. Ora, o ofício do comerciante é entender de mercadoria. Então, devemos conceder a eles a determinação dos preços. Em terceiro lugar, um homem por fazer o que bem entender com sua propriedade. Conseqüentemente, ele pode cobrar e receber qualquer quantia por suas mercadorias.”

“Agora”, disse a mim mesmo, “temos um grande problema. Domingo de Soto é uma grande figura na história da Escola de Salamanca. Ele era um dominicano, um contemporâneo de Vitória, fundador da Escola, e considerado um dos melhores escritores sobre assuntos econômicos. Em 1532, De Soto foi nomeado para a cadeira de Teologia em Salamanca. Sua fama era tal que, em 1545, o Imperador do Sacro Império Romano e Rei da Espanha, Carlos V, nomeou De Soto, agora considerado o mais eminente dos teólogos espanhóis depois de Vitória, como seu representante pessoal no Concílio de Trento. Ele se tornou o confessor de Carlos V dois anos mais tarde. Com certeza, se este homem sustenta a opinião de que é o ‘livre mercado’ que determina o preço das mercadorias, tal deve ser o ensinamento genuíno emanado de Salamanca”

Depois de alguma desconfortável consternação, ficou claro para mim o que eu estava lendo. Ao invés de ser a própria opinião e ensinamento de De Soto sobre a questão, estas eram objeções à posição mantida por De Soto, que sempre, claro, aparecem em primeiro lugar em qualquer artigo escolástico propriamente organizado. O ensinamento de De Soto sobre a matéria do preço justo e apropriado está perfeitamente em concordância com o que se esperaria de um teólogo católico de uma civilização ainda florescente e fiel.

A primeira “conclusão” de De Soto a respeito dessa questão faz uma distinção que é o fundamento natural (de senso comum) para qualquer discussão sobre preços: o preço de um bem (ou mercadoria) não é determinado por sua essência (como a coisa se encaixa em toda a hierarquia da Criação), mas ao contrário, “na medida em que ele (bem ou mercadoria) serve às necessidades da humanidade.”[1] Aqui ele afirma o que era ensinado, durante o mesmo período (1554) por outro estudioso de Salamanca, Diego de Covarrubias: “O valor de um artigo não depende de sua natureza essencial, mas da avaliação dos homens, mesmo se essa avaliação for tola.”[2] Os “bens” que citamos aqui são “bens” que são bons na medida em que servem às necessidades humanas. Essas coisas, portanto, têm um preço na medida em que são valorosas aos olhos dos cidadãos; esses bens ou mercadorias que permitem aos cidadãos satisfazerem suas necessidades. De Soto conclui sua alegação fundamental sobre preços dizendo, “Temos de admitir, então, que o desejo é a base do preço.” As coisas são, então, mais desejáveis, e assim terão um preço maior, na medida em que elas mais perfeitamente satisfizerem o desejo humano de realização e subsistência, qualquer que seja o lugar que elas ocupem na hierarquia da Criação. Como diz Santo Agostinho (Cidade de Deus, Livro II, cap. 16), “um homem prefere ter milho do que rato em sua casa”; a despeito de o rato ser ontologicamente mais perfeito que os grãos de milho.

De Soto, quando fala do “necessidade” ser a base de toda a vida econômica, reconhece, de uma forma muito equilibrada, que quando falamos de “necessidade”, não devemos excluir o fato de que a cidade precisa de “adorno”; mesmo não sendo tais coisas necessárias à vida humana, elas tornam a vida “prazerosa e esplêndida.”

Na segunda “conclusão” de De Soto, encontramos uma afirmação que contradiz diretamente as alegações libertárias de que os escolásticos tardios de Salamanca pensavam que nada deveria ser considerado no cálculo do preço, exceto a “oferta e demanda”. De Soto lista a “oferta e demanda” como um dos elementos que entram na determinação do preço justo de um item.

Além disso, temos de considerar o trabalho, os problemas e o risco que a transação envolve. Finalmente, devemos considerar se a troca é, para melhor ou pior, vantajosa ou desvantajosa ao vendedor, se os compradores são escassos ou numerosos, e todas as outras coisas que um homem prudente deve levar propriamente em conta.

Em outras palavras, para consternação dos que insistem que a Escola de Salamanca não reconhecia nada além das necessidades da “oferta e demanda”, encontramos um dos seus mais proeminentes estudiosos asseverando que todo o processo de produção e venda deve ser considerado quando o justo preço é calculado. Prudência social e econômica é o que manda aqui.

Descobrimos no próximo parágrafo quem, exatamente, deve emitir o consistente julgamento, utilizando-se essa prudência social e econômica. A resposta a essa questão depende de outra distinção escolástica. Essa distinção é entre o preço “legal” e o preço “natural”. Há, como diz De Soto, um aspecto “duplo” no “preço justo”. Neste ponto descobrimos que o “preço justo legal” é aquele que é fixado pelo príncipe. O preço “discricionário” ou “natural” é aquele que é praticado quando os preços não são controlados. De Soto afirma que essa distinção é deduzida da Ética a Nicômaco, de Aristóteles (V, cap. 7). Note, nesse particular, que De Soto não está fazendo “juízo de valor”, dizendo que o “preço legal” é mau e o “preço natural” é bom. Como veremos, a aplicação desses dois diferentes tipos de preços depende de que tipo de bem ou mercadoria estamos falando.

Os próximos parágrafos da passagem que estamos citando são muito significativos e tiveram eco em outros estudiosos da Escola de Salamanca. De Soto afirma:

“Para entender a conclusão [acima] e julgar sua validade, e ver porque é necessário controlar os preços, devemos perceber que a matéria é de importância capital para a república [no sentido de res publica ou de comunidade] e o governador, que, a despeito dos argumentos acima [i.e, aqueles argumentos favoráveis ao ‘livre mercado’ nas Objeções], deve realmente fixar o preço de todo artigo. Mas como ele não pode fazer isso em todos os casos, a tarefa [de ‘fixação’ do preço daquelas mercadorias que o príncipe não fixou] é deixada para a discrição de compradores e vendedores. O preço que resulta é chamado o preço natural porque reflete a natureza dos bens e a utilidade e conveniência que eles carregam [ênfase minha].”[3]

Como prova de que o termo “preço legal” não contém nenhum valor negativo, podemos citar De Soto dizendo, “Quando um preço é fixado por lei (por exemplo, quando uma medida de trigo, vinho ou tecido é vendida por certa soma) é ilegal aumentar esse preço mesmo que seja de um centavo. Se o excesso for grande, então é pecado mortal e uma situação que exige restituição.” Aqueles preços que não são regulados, especialmente de mercadorias que não compõem as necessidades básicas do cidadão, “podem desfrutar de certa liberdade dentro dos limites da justiça.” Aqui vemos que mesmo os preços livres devem ser mantidos dentro dos limites da justiça; “justiça” que, neste caso, significa as exigências do bem comum.


[1] Domingo de Soto, De Justitia et Jure, Livro VI, Q. 2, Art. 3, pp.546-549 (Salamanca, 1553). Este texto é citado por Hutchinson, pp.83-88.
[2] Diego de Covarrubias, Variarum ex pontificio, regio et caesareo jure resolutionum, Book 4, 1554, vol. li, lib.2, chap.3 como apresentada por Hutchinson, p.48.
[3] Ver Hutchinson, School of Salamanca, pp.84-85.

08/08/2007

Missa Tridentina em Belo Horizonte: próximas datas

Dia 18 de agosto: capela Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
Endereço: rua João de Matos, 214, quase esquina com a rua Jacuí, no bairro Ipiranga.
Horário: 17h


Dia 26 de agosto: Capela do Colégio Sagrado Coração de Jesus (não confundir com a Igreja do Coração de Jesus)
Endereço: Rua Professor Morais (esquina com Getúlio Vargas), 363 -Funcionários
Horário: 10 horas da Manhã
OBS: O Padre estará 1 horas mais cedo (9 horas) para atender confissões

05/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV

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Dr. Peter Chojnowski



C) A função do dinheiro e a questão da conversão de moedas


As idéias medievais a respeito da origem e das funções do dinheiro são principalmente fundamentadas numas poucas passagens de Aristóteles, na Política e em Ética a Nicômaco. Nestas obras, Aristóteles insiste que a função do dinheiro é seu uso como meio de troca de bens. A moeda foi primeiramente inventada para resolver as dificuldades e necessidade de transporte, que surgem inevitavelmente numa economia de escambo.[1] A moeda, portanto, serviu como um denominador comum entre bens de natureza diversa: “Fazendo todas as coisas comensuráveis, equalizando-as.”[2] Além de tornar comensurável ao vendedor e ao comprador o que, por natureza, é qualitativamente diferente, a moeda podia servir como “capital”, ou como estoque de valor a ser usado no futuro. Aristóteles enfatiza a função da moeda como um instrumento humano, indicando que seu valor se origina no costume e que “depende de nós mudar seu valor ou torná-lo completamente nulo.”[3] Averroes (1126-98), cujos comentários sobre a Ética foi traduzido para o Latim no início do século XIII, segue de perto Aristóteles a respeito da origem e funções do dinheiro.[4]

Desde que Santo Tomás de Aquino formulou sua visão tradicional de que a moeda foi inventada para facilitar a troca, ele sustentou que era ilegal cobrar uma taxa por um empréstimo de dinheiro, que tinha o nome de usura. Temos aqui uma reafirmação da condenação aristotélica da usura. O próprio Santo Tomás aplica essa idéia na questão em discussão, – ou seja, a cobrança de uma taxa pela troca internacional de moeda – condenando-a completamente. Comerciantes que tentam ganhar dinheiro por meio de empréstimo financeiro – emprestando uma quantia num lugar e coletando-a em outro – enfrenta a seguinte afirmação de Santo Tomás em seus Comentários sobre a Política de Aristóteles, I, 1vii:

“É natural ao homem adquirir dinheiro com o propósito de conseguir alimento a partir de coisas naturais com frutas ou animais. Mas quanto o dinheiro é adquirido não por meio de coisas naturais, mas a partir do próprio dinheiro, isso é contra a natureza.”

Esse ensinamento sobre ganhar dinheiro com base no “preço” relativo do dinheiro em dois lugares diferentes, aparece em 1532, quando os comerciantes espanhóis de Antuérpia enviam seu confessor a Paris para conseguir, dos doutores da Universidade, um parecer sobre a legitimidade das transações financeiras internacionais. Eles condenaram, de forma clara, todo o negócio de transações.[5] A conclusão que os neo-liberais, representados por Marjorie Grice –Hutchinson, gostariam de extrair desse incidente é que a taxa de conversão financeira flutua de acordo com a situação da oferta e da demanda e não é calculada a partir do trabalho ou dos custos do credor. A suposição aqui é que o processo de determinação do “preço” do dinheiro é o mesmo que o processo de determinação do preço dos bens. Essa é uma suposição arbitrária. Além do mais, os doutores da Universidade de Paris estão, aparentemente, apenas tratando de uma matéria de fato. Em si mesmo, o parecer não determina o que os doutores escolásticos diriam sobre o “preço justo” de coisas que devem ser vendidas, ou seja os bens. O que podemos extrair dessa resposta é uma reafirmação do ensinamento perene da Era Cristã; o dinheiro não deve se originar do dinheiro. Como afirma Santo Tomás, tal atividade merece justa reprovação, pois, considerada em si mesma, “ela satisfaz a ambição por dinheiro, que não conhece limite e tende ao infinito.”[6]


[1] The Politics of Aristotle, editada e traduzida por Ernest Barker (New York: Oxford University Press, 1945), I, 1257a and 1133b.
[2] Aristotle, Nicomachean Ethics, trans. Terence Irwin (Indianapolis, Indiana: Hackett Publishing, 1985), V, 1133a.
[3] Ibid. Cf. Hutchinson, School of Salamanca, pp.20-21.
[4] Hutchinson, School of Salamanca, p. 22.
[5] Ibid., p. 38.
[6] Ibid., p.35. Cf. ST, II-II, Q. 77, Art. 4.

03/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II e Opondo-se à heresia austríaca


Dr. Peter Chojnowski


B) Os freis espanhóis e o sistema bancário renascentista

Para provar que os escolásticos, tardios ou não, não aderiram aos princípios libertários da vida econômica, é melhor citar os trabalhos históricos dos próprios neo-liberais. Os dois que nos chamam a atenção são A Escola de Salamanca: a Teoria Monetária Espanhola 1544-1605, de Marjorie Grice-Huntchinson [1] e São Bernardino de Siena e Santo Antonino de Florença: Os dois Grandes Pensadores Econômicos Medievais, de Raymond de Roover.[2] Nossa tarefa pode ser simplificada se pudermos demonstrar, usando a pesquisa dos próprios estudiosos neo-liberais, que os escolásticos tardios espanhóis de Salamanca, assim como os santos mencionados acima, estavam totalmente imersos dentro da grande tradição intelectual, social e econômica da cristandade católica, mais particularmente no que diz respeito à questão do “preço justo”. Se o “preço justo” for formulado de uma forma que inclua vários fatores além das exigências da “oferta e procura” (i.e., se houver um aspecto moral e social na determinação do preço), e, especialmente, se houver um papel para o “príncipe” na determinação dos “preços de mercado”, então podemos seguramente rejeitar a noção de que aqueles estudiosos católicos do passado aceitaram uma concepção peleo-capitalista de determinação do preço e, portanto, da vida econômica da sociedade como um todo.

Mesmo sendo a Universidade de Salamanca o lugar mais proeminente de ensino superior da Europa naquele tempo, foi a posição da Espanha de líder do Novo Mundo que preparou o ambiente para uma concentração de problemas de Economia estudados pelos escolásticos de Salamanca. O ouro e a prata vindos das Américas fez de Sevilha, o porto das embarcações cheias de tesouro, o centro econômico e o principal mercado financeiro da Europa Continental, em meados do século XVI.[3] Temos aqui um lugar onde havia uma grande circulação de dinheiro e um alto nível de preços. Tomas de Mercado (d. 1585), um dominicano mexicano que morou em Sevilha e pregava sobre a moralidade comercial, descreve a situação financeira e mercantil que lá se estabeleceu. Segundo Mercado, quando a frota chegava, cada mercador depositava no banco todo o tesouro que era trazido, para ele, das Índias e os banqueiros davam garantia às autoridades da cidade sobre o que estava depositado em seus estabelecimentos.[4] Os banqueiros prestavam esse serviço de graça e usavam os bens depositados para financiar suas próprias operações. A maior parte do ouro e da prata aportada pela frota passava, desta forma, pelas mãos dos banqueiros e servia como base do crédito. Essas transações ocasionavam a oportunidade para a usura. Como Mercado, então, reclamava, “os trocadores de dinheiro sugavam todo o dinheiro para suas instituições e quando, um mês depois, os mercadores precisavam de recursos, eles lhes emprestavam seu próprio dinheiro a uma taxa exorbitante.” Na Espanha, conclui Mercado, “um banqueiro abarca o mundo todo e abraça mais do que o Oceano, apesar de, algumas vezes, ele não conseguir manter estável todo o sistema e tudo cai por terra.” [5]

Essa crítica de Mercado (que morreu num navio em 1585 no caminho de volta ao México) contra as transações comerciais de banqueiros e comerciantes era a articulação de uma idéia que tinha uma origem antiga. O pagamento de juros pelo simples uso do dinheiro por um certo período de tempo era considerado usura e universalmente condenado. Muito do pensamento moral espanhol sobre Economia neste período era, especialmente, uma tentativa de atacar considerações morais surgidas para evitar a condenação da usura pelo Estado e pela Igreja.

A tentativa de lograr as leis da usura ocorreu de uma forma muito sutil. Ela se originou de uma tentativa aparentemente legítima de tratar de duas dificuldades encontradas pelos comerciantes de então. Primeiramente, havia, de modo geral, falta de moeda na época, o que exigia que os comerciantes contraíssem dívidas uns com os outros nas “feiras” comerciais, que ocorriam em vários lugares, em várias datas ao longo do ano. Em segundo lugar, os comerciantes do período, nas várias feiras, tinham de agir como trocadores de dinheiro, pois, freqüentemente, um débito era contraído num lugar, digamos Sevilha, e quitado em outro, digamos Flanders. A esse respeito, era geralmente aceito, que um comerciante que emprestava o dinheiro num lugar e o recebia em outro, tinha direito a um pagamento por seus serviços. Mesmo em relação a esse tipo de “serviço financeiro,” cobrar uma taxa similar para transferências de dinheiro de uma feira espanhola para outra era proibido por um decreto real de 1551.[6] A Coroa Católica Espanhola estava até mesmo disposta a “desarranjar todo o negócio das feiras” a permitir que os comerciantes se envolvessem com o desnecessário “serviço financeiro.” Havia também situações nas quais o dinheiro emprestado não seria devolvido na próxima feira, mas um ano depois. Devido às “taxas” de tais “serviços financeiros,” estes se tornaram empréstimos camuflados de taxas de serviço e envolviam altos juros. Segundo Grice-Hutchinson, isso gerou “vários decretos tanto da Igreja quanto do Estado.”[7]

É no momento de tratar da questão de transferência de fundos de uma feira a outra, que Grice-Hutchinson, como representante da escola econômica neo-liberal, se atém à questão do “preço” e nos fatores determinantes dos “preços”, tanto do dinheiro quanto dos bens.
[1] Marjorie Grice-Hutchinson, The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary Theory 1544-1605 (Oxford: Clarendon Press, 1952).
[2] Raymond de Roover, San Bernadino of Siena and Sant' Antonino of Florence: The Two Great Economic Thinkers of the Middle Ages (Boston: Harvard University Printing Office, 1967).
[3] Hutchinson, School of Salamanca, pp. 1-6.
[4] Ibid., p8.
[5] De Tomas de Mercado, Tratos y contratos de mecaderes publicado em Salamanca en 1569 citado em Hutchinson, pp.4-8.
[6] Ibid., pp.9-11.
[7] Ibid., p. l&.