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Dr. Peter Chojnowski
D) A Escola de Salamanca e o preço justo
Ao considerar o que a supostamente inovadora Escola de Salamanca dizia a respeito da importante questão do “preço justo”, a questão econômica mais importante do medievo, me defrontei com um texto, contido em The School of Salamanca de Grice-Hutchinson, que me levou a refletir por um momento. Ali, numa citação do livro de Domingo de Soto, De Justitia et jure, publicado em 1553, encontramos a seguinte resposta para a questão, “Devem os preços ser determinados de acordo com a avaliação dos próprios comerciantes?”:
“Primeiramente ... excluindo a fraude e a malícia, devemos deixar os comerciantes fixarem o preço de suas mercadorias. Em segundo lugar ... cada homem é o melhor juiz de sua própria mercadoria. Ora, o ofício do comerciante é entender de mercadoria. Então, devemos conceder a eles a determinação dos preços. Em terceiro lugar, um homem por fazer o que bem entender com sua propriedade. Conseqüentemente, ele pode cobrar e receber qualquer quantia por suas mercadorias.”
“Agora”, disse a mim mesmo, “temos um grande problema. Domingo de Soto é uma grande figura na história da Escola de Salamanca. Ele era um dominicano, um contemporâneo de Vitória, fundador da Escola, e considerado um dos melhores escritores sobre assuntos econômicos. Em 1532, De Soto foi nomeado para a cadeira de Teologia em Salamanca. Sua fama era tal que, em 1545, o Imperador do Sacro Império Romano e Rei da Espanha, Carlos V, nomeou De Soto, agora considerado o mais eminente dos teólogos espanhóis depois de Vitória, como seu representante pessoal no Concílio de Trento. Ele se tornou o confessor de Carlos V dois anos mais tarde. Com certeza, se este homem sustenta a opinião de que é o ‘livre mercado’ que determina o preço das mercadorias, tal deve ser o ensinamento genuíno emanado de Salamanca”
Depois de alguma desconfortável consternação, ficou claro para mim o que eu estava lendo. Ao invés de ser a própria opinião e ensinamento de De Soto sobre a questão, estas eram objeções à posição mantida por De Soto, que sempre, claro, aparecem em primeiro lugar em qualquer artigo escolástico propriamente organizado. O ensinamento de De Soto sobre a matéria do preço justo e apropriado está perfeitamente em concordância com o que se esperaria de um teólogo católico de uma civilização ainda florescente e fiel.
A primeira “conclusão” de De Soto a respeito dessa questão faz uma distinção que é o fundamento natural (de senso comum) para qualquer discussão sobre preços: o preço de um bem (ou mercadoria) não é determinado por sua essência (como a coisa se encaixa em toda a hierarquia da Criação), mas ao contrário, “na medida em que ele (bem ou mercadoria) serve às necessidades da humanidade.”[1] Aqui ele afirma o que era ensinado, durante o mesmo período (1554) por outro estudioso de Salamanca, Diego de Covarrubias: “O valor de um artigo não depende de sua natureza essencial, mas da avaliação dos homens, mesmo se essa avaliação for tola.”[2] Os “bens” que citamos aqui são “bens” que são bons na medida em que servem às necessidades humanas. Essas coisas, portanto, têm um preço na medida em que são valorosas aos olhos dos cidadãos; esses bens ou mercadorias que permitem aos cidadãos satisfazerem suas necessidades. De Soto conclui sua alegação fundamental sobre preços dizendo, “Temos de admitir, então, que o desejo é a base do preço.” As coisas são, então, mais desejáveis, e assim terão um preço maior, na medida em que elas mais perfeitamente satisfizerem o desejo humano de realização e subsistência, qualquer que seja o lugar que elas ocupem na hierarquia da Criação. Como diz Santo Agostinho (Cidade de Deus, Livro II, cap. 16), “um homem prefere ter milho do que rato em sua casa”; a despeito de o rato ser ontologicamente mais perfeito que os grãos de milho.
De Soto, quando fala do “necessidade” ser a base de toda a vida econômica, reconhece, de uma forma muito equilibrada, que quando falamos de “necessidade”, não devemos excluir o fato de que a cidade precisa de “adorno”; mesmo não sendo tais coisas necessárias à vida humana, elas tornam a vida “prazerosa e esplêndida.”
Na segunda “conclusão” de De Soto, encontramos uma afirmação que contradiz diretamente as alegações libertárias de que os escolásticos tardios de Salamanca pensavam que nada deveria ser considerado no cálculo do preço, exceto a “oferta e demanda”. De Soto lista a “oferta e demanda” como um dos elementos que entram na determinação do preço justo de um item.
Além disso, temos de considerar o trabalho, os problemas e o risco que a transação envolve. Finalmente, devemos considerar se a troca é, para melhor ou pior, vantajosa ou desvantajosa ao vendedor, se os compradores são escassos ou numerosos, e todas as outras coisas que um homem prudente deve levar propriamente em conta.
Em outras palavras, para consternação dos que insistem que a Escola de Salamanca não reconhecia nada além das necessidades da “oferta e demanda”, encontramos um dos seus mais proeminentes estudiosos asseverando que todo o processo de produção e venda deve ser considerado quando o justo preço é calculado. Prudência social e econômica é o que manda aqui.
Descobrimos no próximo parágrafo quem, exatamente, deve emitir o consistente julgamento, utilizando-se essa prudência social e econômica. A resposta a essa questão depende de outra distinção escolástica. Essa distinção é entre o preço “legal” e o preço “natural”. Há, como diz De Soto, um aspecto “duplo” no “preço justo”. Neste ponto descobrimos que o “preço justo legal” é aquele que é fixado pelo príncipe. O preço “discricionário” ou “natural” é aquele que é praticado quando os preços não são controlados. De Soto afirma que essa distinção é deduzida da Ética a Nicômaco, de Aristóteles (V, cap. 7). Note, nesse particular, que De Soto não está fazendo “juízo de valor”, dizendo que o “preço legal” é mau e o “preço natural” é bom. Como veremos, a aplicação desses dois diferentes tipos de preços depende de que tipo de bem ou mercadoria estamos falando.
Os próximos parágrafos da passagem que estamos citando são muito significativos e tiveram eco em outros estudiosos da Escola de Salamanca. De Soto afirma:
“Para entender a conclusão [acima] e julgar sua validade, e ver porque é necessário controlar os preços, devemos perceber que a matéria é de importância capital para a república [no sentido de res publica ou de comunidade] e o governador, que, a despeito dos argumentos acima [i.e, aqueles argumentos favoráveis ao ‘livre mercado’ nas Objeções], deve realmente fixar o preço de todo artigo. Mas como ele não pode fazer isso em todos os casos, a tarefa [de ‘fixação’ do preço daquelas mercadorias que o príncipe não fixou] é deixada para a discrição de compradores e vendedores. O preço que resulta é chamado o preço natural porque reflete a natureza dos bens e a utilidade e conveniência que eles carregam [ênfase minha].”[3]
Como prova de que o termo “preço legal” não contém nenhum valor negativo, podemos citar De Soto dizendo, “Quando um preço é fixado por lei (por exemplo, quando uma medida de trigo, vinho ou tecido é vendida por certa soma) é ilegal aumentar esse preço mesmo que seja de um centavo. Se o excesso for grande, então é pecado mortal e uma situação que exige restituição.” Aqueles preços que não são regulados, especialmente de mercadorias que não compõem as necessidades básicas do cidadão, “podem desfrutar de certa liberdade dentro dos limites da justiça.” Aqui vemos que mesmo os preços livres devem ser mantidos dentro dos limites da justiça; “justiça” que, neste caso, significa as exigências do bem comum.
[1] Domingo de Soto, De Justitia et Jure, Livro VI, Q. 2, Art. 3, pp.546-549 (Salamanca, 1553). Este texto é citado por Hutchinson, pp.83-88.
[2] Diego de Covarrubias, Variarum ex pontificio, regio et caesareo jure resolutionum, Book 4, 1554, vol. li, lib.2, chap.3 como apresentada por Hutchinson, p.48.
[3] Ver Hutchinson, School of Salamanca, pp.84-85.
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