26/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte VII

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Dr. Peter Chojnowski



F) Bernardino de Sena e Antonino de Florença: santos mal interpretados


Devemos ficar muito surpreendidos quando vemos um estudioso neoliberal, como Raymond de Roover, focalizando sua atenção em dois grandes santos: São Bernardino de Sena e Santo Antonino de Florença. [1] Primeiramente, é, acima de tudo, surpreendente que eles sejam denominados, “Dois grandes pensadores econômicos da Idade Média”, pois eles viveram no coração da florescente Renascença italiana. Que esses pensadores sejam aclamados como profetas das benesses do capitalismo liberal é também surpreendente, pois suas atitudes frente a assuntos econômicos não poderiam estar mais afastadas da mentalidade de Ludwig von Mises, que sustentaria que as leis da propriedade privada e do “livre mercado” são adversas às alegações morais “heterogêneas” advindas da lei natural e divina. Aqui, seria útil recordar a afirmação de Mises:

“A insistência para que as pessoas ouçam a voz de suas consciências e para que elas substituam as considerações a respeito do lucro privado por aquelas a respeito do interesse público, não cria uma ordem social funcional e satisfatória.” [minha ênfase]

A única coisa que os dois grandes santos sob consideração pretendiam com suas pregações e escritos sobre assuntos econômicos era “insistir para que as pessoas ouvissem a voz de suas consciências e substituíssem as considerações a respeito do lucro privado por aquelas a respeito do interesse público”. Eles também sustentavam que somente se isso fosse feito, se atingiria uma justa e satisfatória ordem civil.

Quando consideramos os ensinamentos morais de São Bernardino (1380-1444), como estes concernentes às questões econômicas, o que estamos analisando são 14 sermões que fazem parte de uma coleção maior de sermões intitulada De Evagelio aeterno (Sobre o Evangelho Eterno). Esses sermões em latim, em oposição aos escritos em italiano, eram para ser lidos mais que para ser pregados. Aqui, podemos ver a continuação de uma longa tradição, cujo eco pode ser percebido, em nossa época, através de homens como Heinrich Pesch, S.J., tradição essa de incluir questões econômicas dentro do horizonte mais amplo da ética. Nesses sermões de São Bernardino (um franciscano e grande apóstolo da devoção ao Sagrado Nome de Jesus), encontramos repetidos, mais uma vez, os ensinamentos gerais da Igreja a respeito da vida econômica. Como o próprio De Roover admite, a condenação da usura era um tema proeminente nos escritos de São Bernardino.[2] Tal como no caso de outros escolásticos, São Bernardino estava “preocupado com um outro conjunto de problemas [bem diferente de questões do tipo ‘como o mercado opera’]: o que é justo ou injusto, licito ou ilícito? Em outras palavras, o foco estava na ética: tudo era subordinado ao tema principal.” [3] Ambos, São Bernardino e Santo Antonino, desaprovavam o consumismo como um caminho para o pecado e a eterna perdição. Santo Antonino trata do tópico das transações de mercado na secção de sua Summa Moralis que trata do pecado da avareza.[4] Além do mais, a Economia era discutida dentro estrutura de contratos, como entendia Direito Romano. As virtudes que regulavam as ações econômicas individuais e coletivas eram as virtudes de justiça distributiva e comutativa (i.e., o Estado dando aos cidadãos “suas partes” e os cidadãos “dando a cada um a sua parte”). Ora, a única “parte” que os libertários admitem é o alegado respeito absoluto tanto por parte do governo quanto do cidadão à já demarcada propriedade privada do outro. Eles esquecem o que os distributivistas lembram muito bem: todos os homens têm o direito a uma certa propriedade privada. Aqueles que apóiam a Doutrina Social da Igreja Católica, melhor que seus antagonistas libertários, entendem o papel da propriedade privada na realização pessoal e familiar.

Quando estudamos o livro de De Roover sobre esses dois santos supostamente inovadores, temos dificuldade em encontrar um só ensinamento significativo que não esteja firmemente ancorado na sabedoria do passado católico ou que não tenha sido elucidado, de uma forma puramente tradicional, pela posterior e escolástica Escola de Salamanca. Como o próprio De Roover reconhece, São Bernardino, como os escolásticos medievais antes dele, entendia a determinação do preço como um processo social. O preço não é determinado por um conjunto de decisões arbitrárias de indivíduos, mas ele é determinado coletivamente pela comunidade como um todo.[5] São Bernardino diz isso explicitamente quando afirma, “o preço dos bens e serviços é determinado para o bem comum com a devida consideração à valoração e estimação comum feita coletivamente pela comunidade de cidadãos [minha ênfase].” [6] De acordo com De Roover, nos escritos de São Bernardino há apenas “uma análise mínima das conseqüências, no preço, das alterações da oferta e da procura.” [7]

Com relação à questão do preço discutida acima, como já tínhamos percebido anteriormente quando da análise do pensamento de Santo Tomás de Aquino, a descrição de De Roover sobre as “inovações” de São Bernardino é muito forçada e freqüentemente envolve o uso de afirmações que não provam, em absoluto, seu argumento. De fato, elas provam exatamente o contrário. Um exemplo é sua citação de uma única sentença dos “sermões” de São Bernardino que parece indicar que o santo considerava a idéia de “preço justo” semelhante àquela de “avaliação do mercado”. Para apoiar essa afirmativa, ele cita São Bernardino definindo o “preço justo” como “aquele que prevalece num dado momento segundo a estimação do mercado, isto é, aquele que as mercadorias atingem num certo local.” [8]

Como temos visto, contudo, a respeito dessa determinação do preço baseada na “oferta e demanda” e nas “condições do mercado”, havia uma sólida tradição moral, que passava pelos tempos da escolástica tardia, na qual era considerada perfeitamente razoável que preços de certos itens não-essenciais flutuassem livremente, sendo seus valores determinados pelo que alguém, que não tinha a menor necessidade do item em questão, estivesse disposto a pagar. O próprio De Roover parece reconhecer que a expressão “o ‘preço justo’ é o ‘preço alcançado no mercado’ ” se refere apenas a essa situação e àqueles tipos de bens. Mesmo assim, é claro que De Roover quer insinuar que São Bernardino igualava, em todos os casos, o “preço justo” àquele “que prevalece, num dado momento, segundo a estimação do mercado”. Com sua usual forma de expressão dúbia, ele diz, “Essa afirmação [sobre o preço justo e o preço de mercado], parece-me, é tão clara que não admite qualquer outro entendimento.”

Se, como ele parecer dizer, São Bernardino igualava o preço justo ao preço de mercado, todos os preços deveriam, por uma questão de justiça, ser submetidos ao livre fluxo das forças de mercado – qualquer interferência seria, em conformidade com essa perspectiva, uma interferência no mecanismo de determinação do “preço justo” do mercado. Que essa não é a posição de São Bernardino fica claro, pelos dizeres do próprio De Roover, quando ele admite que o franciscano ensinava que “os preços podem ser fixados em nome do bem comum.” A sociedade, então, é responsável pela determinação do preço. Quem não ouve os ecos de todo o etos econômico da cristandade na afirmação de São Bernardino de que os preços podem ser fixados em nome do bem comum, “porque nada é mais iníquo do que promover os interesses privados[9] às custas do bem-estar geral”?


[1] Raymond de Roover, San Bernadino of Siena and Sant'Antonino of Flor­ence: The Two Great Economic Thinkers of the Middle Ages.
[2] Ibid., p. 1.
[3] Ibid., pp.7-8.
[4] Ibid., p. 1.
[5] Ibid., p.20.
[6] St. Bernadine of Siena, De Evangelic aeterno, sermão 35, art. 2, cap.2 and 3 in Opera omnia, IV, 197-198. Esse texto é citado em de Roover, San Bernadino, p.20.
[7] De Roover, San Bernadino, p.21.
[8] Ibid., p.20.
[9] Ibid., pp.20-21.

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