29/05/2010

Objeções à Caridade

G.K. Chesterton
The Illustrated London News
8 de dezembro de 1906
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Nota (longa) – Publiquei há alguns anos, no Mídia Sem Máscara, um artigo sobre a caridade que talvez seja um bom intróito brasileiro ao extraordinário artigo de Chesterton, que abaixo traduzo e que na época não conhecia. Se o conhecesse, certamente o teria citado. Vou reproduzi meu artigo abaixo porque o site do MSM não disponibiliza mais os links dos artigos antigos. Reproduzo também, logo a seguir, uma pequena discussão que mantive com um leitor, sobre as questões tratadas no artigo.
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REVOGADA A LEI DA CARIDADE EM BELO HORIZONTE
Leio no Estado de Minas de hoje (12/10/2006) que, muito oportunamente nesta data, a Prefeitura de Belo Horizonte revogou a lei da caridade cristã. Diz o título da reportagem, em letras garrafais: COMPANHA CONTRA A ESMOLA. Os ungidos da Secretaria Municipal de Assistência Social afirmam que os problemas com os menores estão resolvidos. Sobretudo dos menores que trabalham. Isso, na visão dessa gente, é o maior absurdo. O menor vadio, ah!, esse não tem problema. Os problemáticos são os que trabalham, porque esses são os “explorados”.

Os que teimam em dar esmolas são agora os colaboradores dos exploradores de crianças. Sim, porque no dizer de uma assistente social “Ao comprar um chiclete ou coisa semelhante [no semáforo, por exemplo], a pessoa colabora com a manutenção da exploração infantil”.

Fica revogada, a partir de hoje em Belo Horizonte, o capítulo 13 da primeira carta de S. Paulo aos Coríntios. Aquilo tudo foi muito útil enquanto não existia a Prefeitura de Belo Horizonte. Fica ainda, para os estudiosos, o problema de saber se devemos revogar a epístola toda ou se há alguma parte dela que se aproveita, depois desse ato oficial.

A ungida assistente social afirma ainda que “Muitos acreditam que o menor deve trabalhar para ajudar a família, porém a prefeitura tem programas que atendem todos que precisam.” Aqui fica evidente a inutilidade da caridade individual.

Que maravilha! Você é pobre? Você tem filhos? Você acredita que eles precisam aprender a trabalhar o quanto antes, para serem, um dia, alguém na vida? Até pouco tempo atrás você era um pai zeloso, que desejava o melhor para o seu filho, dadas as condições em que ele nasceu. Agora você é explorador de menores. Seu filho não precisa do que você quer dar a ele. Aliás, quem sabe o que ele precisa, não é você que é pai, que o viu nascer, que se esforçou em criá-lo da melhor forma que você pôde. São as assistentes sociais da prefeitura que sabem o que é melhor para seu filho.

Ele deve aprender balé, dança flamenca, teatro, etc. Assim, quando ele crescer, ele vai ser um grande artista. Porque você sabe, né?, todo mundo deve ser artista no Brasil. Não vê o exemplo do Gilberto Gil. Ele é artista. Não sabe se expressar, não fala coisa com coisa, e chegou a ministro. Mire-se nos exemplos de Caetanos, Gils e daquela penca de artistas que se reuniram para nos convencer que ética é aquilo que o PT fez, nos quatro anos de governo.

Como S. Paulo se tornou persona non grata em Belo Horizonte, talvez devamos nos atentar para a advertência de C.S. Lewis: “Há hoje em dia pessoas que pensam que a esmola deveria ser desnecessária e que, em vez de darmos aos pobres, deveríamos criar uma sociedade em que não houvesse pobres. Talvez tenham toda a razão em afirmar que deveríamos esforçar-nos por criar esse tipo de sociedade; mas se alguém pensa que, enquanto não se chegar a esse ponto, pode parar de dar esmolas, com certeza deixou completamente de lado toda a moral cristã.

Depois deste artigo, temo que todos vão querer morar em Belo Horizonte, que será a Cidade de Deus agostiniana. E tudo isso sob os auspícios de sua administração municipal, que, por coincidência, é claro, é petista.
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DISCUSSÃO COM UM LEITOR
Prezado Sr Antônio Emílio de Araújo,
Ao ler seu artigo “Revogada a Lei da Caridade Cristã” fui tomado da curiosidade de conhecer melhor seu pensamento.
Para tanto formulei algumas perguntas às quais gostaria imensamente de ver respondidas:
1) O senhor considera realmente como trabalho, a atividade de vender balas nas ruas?
2) O senhor considera que tal atividade ajudará na formação do caráter dessas crianças?
3) O senhor considera que tal atividade trará alguma lição, ou ensinamento, ou aprendizado relevante para a vida futura dessas crianças?
4) O senhor considera realmente que essas crianças sejam filhas de pais zelosos que estão pensando no melhor dos interesses dos seus filhos?
5) O senhor considera que este tipo de caridade seja imprescindível para a sobrevivência dessas crianças?
6) Em caso positivo, o senhor considera errado que o estado assuma a posição de provedor?
7) Por fim: Já que o ato de vender balas nos sinais é um excelente meio disciplinador e formador de caráter, bem como um excelente meio para as pessoas praticarem a caridade; o senhor colocaria seus filhos para vender balas nos sinais?
Peço por caridade, que o senhor tenha a devida paciência para responder aos meus questionamentos.
Atenciosamente
Wolmar Murgel Filho
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Caro Sr. Wolmar,
O Sr. usa um tom deveras professoral para um debate de idéias. Além disso, não sem certa ironia, o Sr. responde, indiretamente, algumas das perguntas feitas. Não vou comentar sobre isso e acreditarei que o Sr. esteja realmente interessado em minhas idéias e não em me dar uma lição de moral.

Eu acredito que a vida é injusta, que nem todos nasçam com as mesmas potencialidades ou mesmo num meio ambiente que as faça florescer devidamente. Eu acredito que o homem pode, dentro de suas limitações e dificuldades, se elevar acima de suas circunstâncias, mas com muito trabalho e esforço.

O nascido pobre, no sentido econômico, tem de trabalhar desde cedo se quiser se elevar acima da pobreza original. Quanto mais ele atrasar, mais difícil fica seu caminho. Quanto mais convencermos o pobre de que ele deve dançar balé e não tentar ajudar, com alguma atividade remunerada, sua família, mais estamos atravancando seu caminho.

O caminho do trabalho precoce foi o caso, no século XIX, de uma criança órfã que trabalhava, desde os nove anos de idade, nos armazéns de um comerciante inglês muito rico, e que se tornou o Barão de Mauá. Foi também a história de um menino negro, filho de lavadeira, que se tornou Machado de Assis. No século XX, foi o caminho de uma criança de nome Abravanel, que trabalhava como camelô e se tornou Sílvio Santos. Fora do Brasil, podemos citar aquele menino que trabalhava com um encadernador de livros, que de tanto ler os livros que encadernava, se tornou Michael Faraday, um dos maiores físicos que o mundo conheceu. Vou poupar o Sr. e os demais leitores do exemplo daquele lenhador que se tornou presidente dos EUA.

Qual o trabalho cada pobre deve escolher eu não sei. Parece, pelas perguntas feitas, que o Sr. sabe. Digo apenas que considero que lavar privada, carregar compras, vender chicletes, etc. são todos trabalhos relevantes. Não acho, porém, que traficar drogas, se prostituir e roubar sejam trabalhos relevantes.

O Sr. me faz uma pergunta pessoal, pensando talvez em me atemorizar ou em me pegar em contradição. Pergunta se eu deixaria meus filhos venderem chiclete no semáforo. Sr. Wolmar, eu não nasci pobre (nem rico) e não precisei, pela graça de Deus, trabalhar até me formar na universidade. Mas minha esposa trabalha desde os 11 anos de idade (vendia bijuteria em feira de artesanato) e meu filho, às vezes, vende bombom na porta do restaurante de sua escola, na hora do almoço. Se nossa família precisasse (ou precisar), o Sr. fique certo de que meus filhos estariam(estarão) vendendo chicletes nos semáforos da vida.
Quanto ao estado provedor, eu conheço, relativamente bem, a história do século XX, em que a implantação deste tipo de estado levou para a cova 200 milhões de pessoas. Dispenso esse tipo de estado!

Um comentário final sobre a caridade. Ela é para ser praticada com o próximo e não com o distante. Segundo Lewis, uma das estratégias do demônio é nos fazer amar o distante (por exemplo, nos fazer ter a maior compaixão pelas criancinhas famintas da África) e odiar ou desprezar o próximo (por exemplo, nos fazer recusar dar esmolas às crianças em nossos semáforos). Outro exemplo é achar que colaborar com o "Criança Esperança" é meritório ao mesmo tempo em que sentimos o maior desprezo por aquele menino feio e catarrento que se aproxima de nós para vender chicletes.

Sr. Wolmar, espero que o tenha esclarecido melhor sobre as minhas idéias.

Obrigado pelo interesse.

Antônio Emílio Angueth de Araújo

P.S. Talvez seja de seu interesse consultar este artigo de Olavo de Carvalho sobre a temática da pobreza em geral.
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A seguir, o artigo de Chesterton.
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Lamento ver que há um tipo de suposição universal na maioria dos jornais de que o cavalheiro que deu dinheiro às crianças e homens nas ruas fez algo inteiramente indefensável e absurdo. Quando interpretou a caridade como a obrigação de distribuir dinheiro pelas ruas, ele fez algo pelo que eu, por exemplo, esperava há muito tempo. Não vou tão longe a ponto de afirmar que ele estava certo; mas certamente penso que estava muito mais certo que todos os filantropos e organizadores de caridade que o desaprovam. Está tudo muito bem em dizer que os economistas alertam que a caridade casual faz mal. Os economistas são muito capazes de afirmar que comer e beber faz mal – e, de fato, pensando bem, comer e beber faz certamente mal. Fala-se em jogar dinheiro no mar. Fala-se em atira riquezas num poço sem fundo. Fala-se em derramar um bom vinho no esgoto. Mas pelo menos, em todos esses casos de jogar algo no abismo, a coisa, uma vez no abismo, não pode fazer mal. O dinheiro não pode subornar o mar; nem o vinho pode embebedar a tubulação. Fazemos, contudo, algo mais obscuro e mais imprudente quando atiramos vinho ou comida num abismo mais tenebroso que é dentro de nós mesmos.

Por que devo me preocupar se não sei se faço bem ou mal quando dou uma refeição a um mendigo? Não se faço bem ou mal se dou uma refeição a mim mesmo. A comida tal como a comemos nestas épocas civilizadas e com digestões civilizadas, a comida, neste sentido, contém as sementes tanto da morte quando da vida. Não me diga que não sei o que acontece com a moeda que dou àquele reconhecido mendigo, Esgotado da Silva. Não sei o que acontece com o sanduíche de presunto que dou àquele pária faminto: G.K. Chesterton. Não quero saber. Sei que, em certo sento, estamos derramando dons num universo sem fundo, num universo que usa os dons de seu próprio modo e com uma complexidade além de nosso controle ou mesmo de nossa imaginação.

Sem dúvida, em matéria de mendigos e caridade, eu sei o que não sei – não sei que uso será feito afinal do presente em dinheiro que dou a um homem pobre. Mas tampouco sei do uso que será feito do presente que dou a qualquer outro homem. Dar qualquer presente digno do nome é dar poder; dar poder é dar liberdade; dar liberdade é dar pecado em potencial. Se dou o presente mais decoroso e pio, ele se coloca além de meu poder por eu meramente tê-lo dado. Se dou uma Bíblia a um homem, ele pode lê-la de forma a justificar a poligamia. Muitos homens têm lido a Bíblia (os Mórmons, por exemplo) para justificar a poligamia. Se dou a um homem um copo de chocolate (o que seguramente nunca deveria fazer) ele pode obter desse copo de chocolate a quantidade exata de nutrientes e vigo que precisava para cometer um assassinato. Muitos homens, tenho certeza (embora não tenha estatísticas à mão) têm cometido assassinato sob o imediato revigoramento do chocolate. Se dou a um homem uma igreja, ele pode nela celebrar uma Missa Negra. Se dou a um homem um altar (o que parece improvável) ele pode usá-lo para sacrifício humano. E se isso é a lógica até desses casos em que o presente em si é algo comumente considerado inofensivo ou correto, a questão é extraordinariamente séria em relação aos presentes que as pessoas do mundo dão umas às outras. Se é possível que dinheiro ou bebida sejam mal-usados por indivíduos socialmente nossos inferiores, é quase certo que livros, roupas, móveis e obras de arte possam ser mal-usados e sejam mal-usados por nossos iguais.

Eis a peculiar torpeza da objeção à caridade casual. Não nos permitem supor que dinheiro seja uma boa coisa para aqueles que não o têm no mesmo sentido aproximado e geral que supomos que altos salários, quadros ou convites são coisas boas para aqueles que não os têm. Dizem-nos que é nossa responsabilidade considerar se a pequena esmola fará o mendigo mais bêbado ou mais ocioso. Mas nunca nos disseram ser nossa responsabilidade considerar se a ajuda a tal cavalheiro para conseguir-lhe um bom salário o fará mais bêbado ou mais ocioso. Não é nossa responsabilidade perguntar-nos se dar pérolas a uma senhora a fará mais vã. Não é nossa responsabilidade perguntar-nos se dar-lhe livros pedantes a fará mais pedante. Não se supõe que calculemos por meio de uma elaborada psicologia se dar um deslumbrante presente de casamento a um elegante casal de noivos os fará eticamente melhores ou piores do que são. Em todos esses casos nós, sendo pessoas de senso comum, exigimos o direito de dizer: “A forma de usar a coisa é problema deles; tenho razão em supor que, de acordo com os propósitos ordinários, livros são coisas boas, lindas jóias são coisas boas e um bom salário é uma coisa boa.” Mas o único caso em que não nos permitem argumentar assim é exatamente o caso de dar dinheiro aos muito pobres. Ou seja, o único caso em que não nos permitem tratar o dinheiro como algo bom em si mesmo é aquele em que realmente sabemos que ele é necessário.

Não sabemos nem mesmo se uma senhora decente deseja realmente uma pérola. Sabemos contudo que, em noventa e nove de cem casos, mesmo um falso mendigo deseja realmente dinheiro. Nossa ignorância sobre o que acontecerá com o dinheiro é simplesmente parte de nossa ignorância do que acontecerá com qualquer outra coisa, nossa ignorância do mundo em que vivemos. O que é realmente vil é o seguinte: que nossa ignorância, que nunca é invocada quando satisfazemos as frívolas necessidades dos frívolos, seja sempre imediata e violentamente invocada quando estamos, pelo menos uma vez, satisfazendo as palpáveis necessidades dos necessitados. Não desejo explorar mais profundamente este aspecto da questão; ele é muito sério para ser tratado neste lugar. Mas uma vez, quando o grande crime humano da história do homem foi cometido, o crime que obscureceu o sol no firmamento, o espírito que tinha a maior razão em reclamar, disse dos criminosos: “Eles não sabem o que fazem.” É, de fato, verdade que não sabemos o que fazemos. É-nos permitido apresentar essa desculpa quando cometemos um crime. Será que não nos é permitido apresentá-la quando fazemos uma gentileza?

Portanto, tenho uma simpatia pelo filantropo louco. Sei que quando ele jogou dinheiro pelas ruas, todas as instituições do mundo moderno lhe disseram que ele fazia mais mal do que bem. Todavia, sei também que cada uma dessas instituições lhe teria dito que ele fazia mais mal do que bem se ele tivesse dado dinheiro a qualquer das outras instituições. Há um ataque cabível a ser feito à caridade promíscua. Mas há exatamente o mesmo ataque a ser feito à caridade institucional. Sei do caso de um confuso milionário que perguntou a dois homens públicos de nosso tempo como ele poderia fazer o bem com seu dinheiro. O primeiro, depois de uma longa consideração de todos os aspectos, não tenho dúvida de que imbuído do mais elevado espírito filantrópico, aconselhou-o a ficar com seu dinheiro. O outro, depois de levar um mês para considerar a questão, escreveu-lhe para dizer que concebera uma maneira por meio da qual ele não faria mal com seu ouro, que era cobrir com ele o domo da Catedral de São Paulo.

Quando há tal desesperança e desamparo mesmo da caridade sistemática, é absurdo alertar para a desesperança e desamparo da caridade individual. Tenho alguma simpatia para com o home que quer emplastar com ouro o domo da Catedral de São Paulo. Mas tenho muito mais simpatia com o Sr. Yates, o filantropo louco de nossos dias, que quer consumar a antiga lenda e pavimentar com ouro as ruas de Londres. Que seus presentes causaram inveja, desordem e mesmo decepção é possivelmente verdade. Da mesma forma, a ausência de tais presentes causa inveja, desordem e decepção. Não defendo seriamente esse método no seu todo. Mas digo, contudo, que é dessa forma individual que a caridade será reformada. Nada será feito até que tenhamos percebido que caridade não é dar recompensa aos merecedores, mas felicidade aos infelizes.

Nos estado atual das coisas, temos apenas a escolha entre dar dinheiro a homens de quem nada sabemos e dar dinheiro a instituições das quais nada sabemos. Evidentemente, podemos saber que certa instituição é, no sentido formal e fútil, respeitável, que é solvente, que não é presidida por um vigarista com seus caminhões carregados e etiquetados “Venezuela”; mas isso não é o que queremos saber sobre uma instituição beneficente. Não queremos saber meramente se uma instituição beneficente é cautelosa ou sólida como um banco. Queremos saber se a instituição beneficente pode contar com a confiança, não somente do corpo, mas da alma dos homens. Queremos conhecer uma instituição beneficente que seja humana, abrangente, solidária com os homens livres, magnânima. Em resumo, queremos, por estranho que pareça, conhecer uma instituição de caridade que seja caridosa. E isso, em regra, nós não conhecemos. Essas são as coisas que levam o homem razoável a sentir um pouco de simpatia pelo cavalheiro que foi descrito pelos jornais como o “milionário louco”. Pesquisa subseqüente revelou, eu acho, que ele não era milionário. Uma pesquisa adicional e mais profunda revelará, eu acho, que ele não era assim tão louco.

Há uma observação que pode ser adicionada a essa divagação. Não sei se há métodos que possam testar se o recipiente da esmola é genuíno. Mas estou seguro de que o método ordinariamente adotado, especialmente por caridosas senhoras, é uma grande bobagem. Ouve-se constantemente que um homem faminto é uma fraude porque tão logo ele recebe o dinheiro ele “vai para um bar”. Esse precioso teste é constantemente adotado para provar que um homem com fome é um enganador. Ninguém parece ter o ordinário discernimento para lembrar que ir a um bar é exatamente o que alguém faria se fosse, não um enganador, mas um homem com fome. Ele vai lá, em primeiro lugar, porque lá é o único lugar em que se vende um pão com queijo por alguns reais. E se ele vai também para tomar algo estimulante, ele faz exatamente o que qualquer sadio bispo ou juiz faria se ficasse enfraquecido pela fome. Qualquer que seja o teste para mendigos que você empregar, não empregue este teste imbecil, que é universal entre os filantropos modernos.

26/05/2010

Igreja Santa e Pecadora

Leitor escreve:

Na missa deste domingo o padre disse: A Igreja é Santa e Pecadora.Santa pelo Espírito Santo e pecadora por nós cristãos. Comente a respeito destas palavras do padre e sobre essa coisa de Igreja Santa e Pecadora.

Este padre está propagando uma heresia que veio diretamente de Lutero. Karl Rahnner, teólogo modernista, trouxe de volta a antiga heresia para o seio da Igreja. Leia o texto do professor Orlando Fedeli sobre isso: Igreja Santa e Pecadora?

24/05/2010

Filosofia e impostura

 

O texto que escrevi sobre Dawkins e o Milagre de Fátima, recebeu um comentário que merece ser discutido em um post separado. O comentário completo foi publicado no post original. Publico abaixo partes dele (em itálico), que comento a seguir.

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Acho que existe uma diferença entre contar uma história e defender uma opinião, é por isso que acredito que um filósofo não precisa de “testemunhos”.

... devemos ter independência diante de um filósofo. Eu tenho diante de David Hume e tenho diante de Tomás de Aquino. Mas isso em nenhum momento os torna “impostores” diante de mim. Isso seria violento e arrogante de minha parte.

Eu lembrei que Hume é um filósofo e que, portanto, escrever que uma opinião dele seria verdadeira porque assim ele quer é uma objeção infantil.

Hawkins em seu artigo parece dizer que o Vaticano tinha a obrigação de demonstrar que o Milagre de Fátima realmente aconteceu. Responsabilidade que viria junto com os “lucros” por assim dizer, que o uso daquela história trouxe à Igreja Católica. Mas provar como? O Milagre de Fátima é objeto de fé, não acho que deve ser alvo da ciência.

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Caro leitor,

Um filósofo, se estiver desempenhando sua função de filósofo, muitas vezes não precisa mesmo de “testemunhos”. Estamos frente a frente com um ser humano que está testemunhando sua luta para desvendar, clarear, penetrar na espessa bruma do desconhecido, da realidade. Sua obra é, muitas vezes, o relato dessa luta. Ela vale pelos insights que ofereceu, pelas idéias claras que deixou para a posteridade, não pelo que provou ou deixou de provar. Mesmo quando não deixa grande coisa, é sempre um testemunho do esforço humano na direção do compreender, um testemunho do cumprimento do que é anunciado na primeira frase da Metafísica de Aristóteles.

Você parece dar muita importância ao título de filósofo; parece respeitar demasiadamente os filósofos, mesmo quando eles falam besteiras. Outra coisa é a seguinte: eu não leio os filósofos procurando por suas opiniões. Quando leio filosofia estou procurando a Verdade.

Vou te dar um exemplo do que é falar besteira. Em seu livro “Investigações sobre o Entendimento Humano” ele diz: “Se tomamos em nossas mãos qualquer tratado, sobre a divindade ou sobre metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Ele contém algum raciocínio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém algum resultado experimental com relação à matéria? Não. Jogue-o na fogueira, pois ele não contém nada além de sofisma e ilusão.

Eu pergunto: Hume está sendo filósofo quando escreve isso? Claro que não! Está sendo impostor! Está sendo irracional! Está sendo manipulador! Está dando provas de suas mais recônditas más intenções! Ademais, pode ser desmascarado muito facilmente. Basta-nos apenas que apliquemos sua regra ao próprio livro que a anuncia. Ou seja, perguntemos: O tratado de Hume contém algum raciocínio abstrato sobre a quantidade ou número? Respondamos: Não! Perguntemos de novo: Contém algum resultado experimental com relação à matéria? Respondamos: Não! Apliquemos aqui a sugestão do filósofo: Joguemos o tratado na fogueira, pois ele não contém nada além de sofisma e ilusão.

Quer outro exemplo de impostura, irracionalismo, manipulação? Alfred Jules Ayer criou o festejado Princípio da Verificabilidade: “Uma proposição só pode ser significativa se for verdade por definição ou for empiricamente verificável.” Perguntemos: O Princípio da Verificabilidade é uma proposição verdadeira por definição? Respondamos: Não! Perguntemos de novo: É uma proposição verdadeira por verificação empírica? Respondamos: Não! Então, apliquemos aqui o Princípio da Verificabilidade: O Princípio da Verificabilidade não é uma proposição verdadeira!

A filosofia, caro leitor, está repleta desse tipo de impostura. Recomendo a leitura de uma obra de Mário Ferreira: “A Origem dos Grandes Erros Filosóficos”. Você verá uma galeria de ditos “filósofos” cometendo os mais grosseiros erros, que não podem ser considerados apenas enganos bem intencionados. Portanto, acautelemo-nos com os filósofos!

Dawkins não cobra nenhuma prova do Vaticano, como você diz. Mas chama a atenção sua menção a lucros do Vaticano. Este é um argumento sempre levantado pelos inimigos da Igreja. Que lucros? Lucro de ser difamada por impostores como Dawkins? Ou você quer dizer que a Igreja aufere grandes lucros com a peregrinação à Fátima? Ou pior: que o Vaticano só reconheceu o milagre do sol para auferir lucros?

Se o lucro de fato ocorrer, o que você propõe? Que os peregrinos devotos de Nossa Senhora de Fátima não devam ir a Fátima? Que o Vaticano financie a viagem dos milhares de peregrinos? Você tem a mesma preocupação com a peregrinação a Meca?

O milagre de Fátima não é matéria de fé; é um fato e fato não é matéria de fé e nem matéria de demonstração. Por exemplo, a Crucificação de Nosso Senhor não é matéria de fé; é fato. O que é matéria de fé é a Redenção, ou seja, a crença de que pela Sua Crucificação estamos redimidos de nossos pecados, se fizermos parte de seu Corpo Místico. As curas que Jesus abundantemente fez são fatos, não são matéria de fé.

Para terminar, quero sugerir dois textos sobre milagres. Um é um ensaio de Olavo de Carvalho: What is a miracle? O outro é o livro de C.S. Lewis: Miracles.

20/05/2010

A EMANCIPAÇÃO DA DOMESTICIDADE

G.K. Chesterton

Nota: Este é o Capítulo III do livro “O que está errado com o mundo” que Chesterton publicou em 1910. Expressa a sua visão da importância da mulher no esquema geral da sociedade humana, numa época em que ela estava se emancipando de suas funções naturais para assumir as funções que a modernidade estava exigindo. Este tema será retomado em outro livro de Chesterton publicado em 1929, “A Coisa”.

E deve ser observado, de passagem, que esta exigência para que o homem desenvolva apenas uma habilidade não tem nada a ver com o que é comumente chamado nosso sistema competitivo, mas existiria igualmente sob qualquer tipo racionalmente concebido de coletivismo. A menos que os socialistas estejam totalmente preparados para uma queda no padrão de seus violinos, telescópios e lâmpadas elétricas, eles devem de alguma forma criar uma demanda moral sobre os indivíduos de maneira que eles mantenham a atual concentração em tais coisas. Foi apenas porque os homens se tornaram, em algum grau, especialistas é que surgiram os telescópios; eles devem ser, em algum grau, especialistas para continuarem a construí-los. Não é fazendo um homem ser um assalariado estatal que se possa impedi-lo de pensar principalmente sobre como é difícil ganhar seu salário. Há apenas uma maneira de preservar no mundo aquela superior leveza e aquela serena perspectiva contidas na antiga visão de universalismo. E esta é permitir a existência de uma metade da humanidade parcialmente protegida; uma metade a que o assédio da demanda industrial inquieta, mas inquieta apenas indiretamente. Em outras palavras, há de haver em cada centro da humanidade um ser humano preocupado com um plano mais amplo; um ser humano que não “dê o seu melhor”, mas que se dê integralmente.

Nossa antiga analogia do fogo continua sendo a mais viável. O fogo não precisa resplandecer como a eletricidade nem se agitar como a água fervente; a questão é que ele resplandece mais que a água e aquece mais que a luz. A esposa é como o fogo, ou para colocar as coisas na perspectiva adequada, o fogo é como a esposa. Como o fogo, espera-se que a mulher cozinhe; não de forma excelente, mas cozinhe; que cozinhe melhor que seu marido, que está conseguindo a lenha lecionando botânica ou quebrando pedras. Como o fogo, espera-se que a mulher conte histórias para seus filhos, não histórias originais e artísticas, mas histórias – histórias melhores do que as possivelmente contadas pelos cozinheiros de primeira classe. Como o fogo, espera-se que a mulher ilumine e esclareça, não pelas mais espantosas revelações ou as mais selvagens agitações do pensamento, mas melhor que um homem pode fazer depois de quebrar pedras ou lecionar. Mas não se pode esperar que ela suporte tal responsabilidade universal se for suportar também a crueldade do trabalho competitivo e burocrático. A mulher deve ser uma cozinheira, mas não uma cozinheira competitiva; uma decoradora, mas não uma decoradora competitiva, uma costureira, mas não uma costureira competitiva. Ela não deve ter nenhum negócio, mas vinte hobbies; ela, ao contrário do homem, deve desenvolver tudo que faz sem se preocupar em atingir a perfeição. Isto é o que foi sempre buscado a princípio no que é chamado reclusão, ou mesmo opressão, da mulher. As mulheres não foram mantidas em casa para que fossem limitadas, foram mantidas em casa para que fossem amplas. O mundo do lado de fora é uma massa de limitações, um labirinto de caminhos estreitos, um hospício de monomaníacos. Foi por esta parcial limitação e proteção da mulher que ela era capaz de desempenhar-se em cinco ou seis profissões e assim se aproximar tanto de Deus quanto a criança que brinca de ter cem profissões. Mas as profissões da mulher, ao contrário das da criança, eram todas verdadeira e, quase, terrivelmente frutíferas; tão tragicamente reais que nada exceto sua universalidade e equilíbrio impediam que elas se tornassem meramente mórbidas. Esta é a substância da alegação que ofereço sobre o papel histórico da mulher. Não nego que as mulheres foram ofendidas ou mesmo torturadas; mas duvido que elas tenham sido torturadas tanto quanto o são agora pela moderna tentativa absurda de fazê-las ao mesmo tempo rainhas do lar e funcionárias competitivas. Não nego que mesmo sob a antiga tradição, as mulheres tivessem vidas mais difíceis que a dos homens; esta é a razão porque tiramos nossos chapéus. Não nego que todas essas várias funções femininas fossem exasperantes; mas digo que havia algum objetivo e significado em mantê-las variadas. Não tento nem mesmo negar que a mulher fosse uma criada; mas pelo menos era a criada principal.

A forma mais breve de resumir a questão é dizer que a mulher é a responsável pela idéia da Sanidade; aquele lar intelectual para o qual a mente retorna depois de cada excursão pela extravagância. A mente que se dirige a lugares extravagantes é a do poeta; mas a mente que não retorna é a do lunático. Deve haver em cada máquina uma parte que move e uma parte imóvel; deve haver em tudo que muda uma parte imutável. E muitos dos fenômenos que os modernos apressadamente condenam são realmente partes dessa posição da mulher como centro e pilar da saúde. Muito do que é chamada sua subserviência, e mesmo sua docilidade, é meramente a subserviência e docilidade de um remédio universal; ela varia como um remédio varia, conforme a doença. Ela tem de ser uma otimista para um marido mórbido, uma pessimista salutar para um marido excessivamente otimista. Ele tem de impedir que o Quixote seja abusado pelos outros, e que o valentão abuse dos outros. O Rei da França escreveu

“Toujours femme varie Bien fol qui s'y fie”

mas a verdade é que a mulher sempre varia, e esta é a razão de sempre confiarmos nela. Corrigir cada aventura e extravagância com seu antídoto, usando o senso comum, não é (como os modernos parecem pensar) estar na posição de um espião ou de um escravo. É estar na posição de Aristóteles ou (no nível mais baixo) de Herbert Spencer, ser uma moral universal, um completo sistema de pensamento. O escravo lisonjeia; o moralista repreende. É ser, em resumo, um trimmer[1] no verdadeiro sentido deste honroso termo, que por alguma razão, é sempre usado no sentido oposto. Parece realmente que consideram um trimmer uma pessoa covarde que sempre escolhe o lado mais forte. Mas este termo significa realmente uma pessoa altamente cavalheiresca que sempre escolhe o lado mais fraco; como aquele que equilibra a carga de um barco sentando-se onde há poucas pessoas sentadas. A mulher é um trimmer, e isso é uma função generosa, perigosa e romântica.

Um fato final que determina isso é de natureza muito simples. Supondo que a humanidade agiu de forma não artificial dividindo-se em duas metades, respectivamente tipificando os ideais de talento especial e sanidade geral (uma vez que eles são genuinamente difíceis de combinar completamente em uma única mente), não é difícil ver porque a linha de clivagem seguiu a linha do sexo, ou porque a fêmea tornou-se o emblema do universal e o macho do especial e superior. Dois fatos gigantes da natureza demonstraram isso: primeiro, que a mulher que freqüentemente cumprisse literalmente suas funções não poderia ser especialmente proeminente no experimento e na aventura; e segundo, que a mesma operação natural a rodeava de crianças muito jovens, que exigiam não o ensino de alguma coisa, mas o ensino de todas as coisas. Bebês não precisam aprender uma profissão, mas precisam que se lhe apresentem um mundo. Para resumir, a mulher é geralmente encerrada numa casa com um ser humano numa época em que ele pergunta todas as questões que existem e algumas que não existem. Seria estranho que ela retivesse qualquer traço da estreiteza de um especialista. Ora, se alguém diz que essa tarefa de esclarecimento geral (mesmo quando livre dos horários e das regras modernas, e exercido espontaneamente por uma pessoa mais protegida) é em si excessivamente exigente e opressiva, consigo entender esse ponto de vista. Posso apenas responder que nossa raça considerou que vale a pena colocar este peso sobre a mulher a fim de manter o senso comum no mundo. Mas quando as pessoas começam a falar sobre esse trabalho doméstico como não simplesmente difícil, mas trivial e monótono, eu simplesmente desisto da discussão. Pois, eu não consigo, com o máximo poder de imaginação, entender a respeito do que estão falando. Quando a domesticidade, por exemplo, é chamada de lida penosa, toda a dificuldade surge do duplo sentido da expressão. Se penosa significar trabalho duro, admito que a mulher labute em casa, como o homem pode labutar na Catedral de Amiens ou atrás de um canhão em Trafalgar. Mas se penosa significar que o trabalho duro é mais pesado porque é insignificante, sem graça e sem importância para a alma, então, como disse, eu desisto; não sei o que as palavras significam. Ser a Rainha Elizabete dentro de uma área definida, decidindo salários, banquetes, tarefas e feriados; ser Whiteley[2] dentro de certa área, suprindo brinquedos, sapatos, bolos e livros; ser um Aristóteles dentro de certa área, ensinando moral, boas maneiras, teologia e higiene; posso entender como isso pode exaurir uma mente, mas não posso imaginar como pode estreitá-la. Como pode ser uma larga carreira ensinar a Regra de Três a crianças dos outros, e uma estreita carreira ensinar à sua própria criança sobre o universo? Como pode ser amplo ensinar a mesma coisa a todo mundo, e estreito ensinar tudo a alguém? Não; a função de uma mulher é trabalhosa, mas porque é gigantesca, não porque é minúscula. Tenho pena da Sra. Jones pela enormidade da sua tarefa, não pela sua pequenez.

Mas embora a tarefa essencial da mulher seja a universalidade, isso não a impede, claro, de ter um ou dois fortes, mas grandemente saudáveis, preconceitos. Ela tem sido, em geral, mais consciente do que o homem de que ela é apenas uma das metades da humanidade; mas ela tem expressado isso (se alguém pode dizer isso de uma senhora) agarrando com unhas e dentes duas ou três coisas que considera ser suas responsabilidades. Eu observaria aqui, entre parêntesis, que muito do recente problema oficial sobre a mulher surgiu do fato de que elas transferem para as coisas da razão e da dúvida aquela sagrada obstinação apenas apropriada às coisas primárias que foram confiadas à guarda da mulher. O próprio filho, o próprio altar, deve ser uma questão de princípio – ou se se preferir, uma questão de preconceito. Por outro lado, a dúvida sobre quem escreveu as Cartas de Junius[3] não deve ser uma questão de princípio ou preconceito, deve ser uma questão de investigação livre e quase indiferença. Mas tome uma garota moderna e cheia de vida, secretária de uma associação e dê-lha a função de mostrar que George III escreveu tais cartas, e em três meses ela acreditará nisso também, por mera lealdade a seus empregadores. As mulheres modernas defendem seu escritório com toda a ferocidade da domesticidade. Elas lutam pela mesa e pela máquina de escrever como pelo lar, e desenvolvem um tipo de selvagem atitude doméstica para com o chefe invisível da empresa. Esta é a razão de elas fazerem o trabalho de escritório tão bem feito; e esta é a razão porque elas não devem fazê-lo.


[1] Trimmer tem dois significados principais: estivador (aquele que equilibra a carga das embarcações) e oportunista. Chesterton brinca com estes dois significados. (N. do T.)

[2][2] Grande loja de departamentos da Londres de Chesterton. (N. do T.)

[3] Junius era o pseudônimo de um indivíduo, cuja a identidade é desconhecido, que escreveu uma série de cartas para um jornal londrino, Public Advertiser, entre 21 de janeiro de 1769 e 21 de janeiro de 1772. De eminentemente político, tiveram grande repercussão no reinado de George III. (N. do T.)

18/05/2010

O Convertido

G.K. Chesterton
Nota: Esta é minha primeira tentativa de traduzir a poesia de Chesterton. É uma completa ousadia, pois nunca traduzi poesia antes. Escolhi, para começar, os versos que ele escreveu logo após sua Primeira Comunhão, em 1922. Ele tinha então 48 anos.

Quando minha cabeça inclinei,
O mundo girou e ereto ficou,
Na antiga estrada luzente entrei,
Pelos caminhos andei e o que todos diziam ouvi,
Florestas de línguas, tal folhas outonais por cair,
Desagradáveis não eram, mas estranhas e leves;
Antigos mistérios e novos credos, não enganosos,
Mas suaves, como homens rindo dos mortos.

Os sábios têm centenas de mapas a dar
Que traçam como uma árvore seu cosmos a rastejar,
Passam a razão por peneiras que a fazem debilitar
Pois retêm a areia e o ouro deixam passar:
Tudo isso é para mim como poeira no ar;
Meu nome é Lázaro e a viver vou recomeçar.
After one moment when I bowed my head
And the whole world turned over and came upright,
And I came out where the old road shone white,
I walked the ways and heard what all men said,
Forests of tongues, like autumn leaves unshed,
Being not unlovable but strange and light;
Old riddles and new creeds, not in despite
But softly, as men smile about the dead.

The sages have a hundred maps to give
That trace their crawling cosmos like a tree,
They rattle reason out through many a sieve
That stores the sand and lets the gold go free:
And all these things are less than dust to me
Because my name is Lazarus and I live.

12/05/2010

A Carta do Além

Impressionante relato de uma alma condenada ao Inferno
Imprimatur do original alemão;
Brief aus dem Jenseits: Treves, 9/11/1953. N. 4/53.
Aprovação Eclesiástica deste opúsculo:
Taubaté - S. Paulo - 2/11/1955.
Theol. Bernhardin Krempel, C.P.
À Guisa de Prefácio
Com os homens, Deus se comunica por muitos modos. Além de ser a própria Sagrada Escritura a Carta Magna de Deus aos homens, escrita e transmitida por homens autorizados, narra ela muitas comunicações divinas feitas por visões, inclusive sonhos. Deus continua a prevenir, ainda, por sonhos. É que sonhos não são sempre meros sonhos sem base.
A Carta do Além transcrita abaixo conta a história da condenação eterna de uma jovem. À primeira vista parece uma história bastante romanceada. Bem consideradas, porém, as circunstâncias, chega-se à conclusão de que ela não deixa de ter o seu fundo histórico, como base do seu sentido moral e do seu alcance transcendental.
A carta em apreço foi encontrada tal qual entre os papéis de uma freira falecida, amiga da jovem condenada. Relata a freira os acontecimentos da existência da companheira como fatos históricos sabidos e verificados, e sua sorte eterna comunicada em sonho. A Cúria diocesana de Treves (Alemanha) autorizou sua publicação como sumamente instrutiva.
A Carta do Além apareceu primeiramente em livro de revelações e profecias, juntamente com outras narrações. Foi o R. Pe. Bernhardin Krempel C. P., doutor em teologia, quem a publicou em separado e quem lhe emprestou mais autoridade, provando-lhe, nas Anotações, a absoluta concordância com a doutrina da Igreja Católica sobre o assunto.
No Apêndice seguem alguns esclarecimentos complementares sobre o Inferno. O primeiro ponto assinala dois trabalhos literários que por caminhos diferentes chegam à mesma conclusão que o Inferno deve existir e que de fato existe. Nos seguintes pontos expõe-se sumariamente quais são os que trilham o caminho do Inferno e quais os meios que temos à mão para nos salvar do maior perigo da vida, de cair no Inferno.
Informações preliminares
Entre os papéis deixados por uma jovem que morreu num convento como freira, foi encontrado o seguinte depoimento:
"Tinha eu uma amiga. Quer dizer, éramos mutuamente achegadas como companheiras e vizinhas de trabalho no mesmo escritório M.
Quando mais tarde Âni se casou, nunca mais a vi. Desde que nos conhecêramos, reinava entre nós, no fundo, mais amabilidade que amizade.
Por isso eu sentia dela pouca falta, quando, após seu casamento, ela foi morar no bairro elegante das vilas, bem longe do meu casebre.
Quando no outono de 1937 passei minhas férias no lago Garda, minha mãe escreveu-me, em meados de setembro: "Imagine, Âni N. morreu. Num desastre de automóvel perdeu a vida. Ontem foi enterrada no cemitério do Mato".
Essa notícia espantou-me. Sabia eu que Âni nunca fora propriamente religiosa. Estava ela preparada, quando Deus a chamou de repente?
Na outra manhã assisti na capela da casa do pensionato das irmãs, onde eu morava, à santa missa em sua intenção. Rezava fervorosamente por seu descanso eterno e nessa mesma intenção ofereci também a Santa Comunhão.
Mas o dia todo eu sentia certo mal estar, que foi aumentando mais ainda pela tarde.
Dormia inquieta. Acordei de repente, ouvindo como se sacudida a porta do quarto. Liguei a luz. O relógio, no criado mudo, marcava meia noite e dez minutos. Nada, porém, eu podia ver. Nenhum barulho havia na casa. Apenas as ondas do lago Garda batiam, quebrando-se monotonamente, no muro do jardim do pensionato. De vento, nada eu ouvia.
Tinha eu, todavia, a impressão de que ao acordar eu tivesse percebido, além das batidas na porta, um ruído como que de vento, parecido ao do meu chefe de escritório, quando mal humorado me atirava uma carta amolante sobre a escrivaninha.
Refleti um momento, se devia levantar-me.
Ah! Tudo não passa de cisma, disse-me resoluta. Não é senão produto de minha fantasia sobressaltada pela notícia da morte.
Virei-me, rezei alguns Pai-Nossos pelas almas, e adormeci de novo.
* * *
Sonhei então que me levantava de manhã às 6 horas, indo à capela da casa. Quando abri a porta do quarto, dei com o pé num maço de folhas de carta. Levantá-las, reconhecer a escrita de Âni e dar um grito, foi coisa de um segundo.
Tremendo, segurei as folhas nas mãos. Confesso que fiquei tão apavorada, que nem podia proferir o Pai-Nosso. Fiquei presa de uma quase sufocação. Nada melhor que fugir dali e ir-me para o ar livre. Arranjei malmente os cabelos, pus a carta na bolsa e saí à pressa de casa.
Fora, subi o caminho que seguiu tortuoso para cima, por entre oliveiras, loureiros e quintas de vilas, e para além da mundialmente célebre estrada "Gardesana".
A manhã despontava radiante. Nos outros dias eu parava a cada cem passos, encantada pela magnífica vista que me ofereciam o lago e a magnificamente bela ilha Garda. O suavíssimo azul da água refrescava-me; e como uma criança olha admirada para o avô, assim eu olhava sempre admirada de novo o cinzento monte Baldo que se ergue na margem oposta do lago, crescendo de 64 m acima do nível do mar até 2.200 m de altura.
Hoje eu não tinha olhos para tudo isso. Depois de caminhado um quarto de hora, deixei-me cair maquinalmente sobre um banco encostado em dois ciprestes, onde, no dia anterior, eu tinha lido prazerosamente "A donzela Teresa". Pela primeira vez eu via nos ciprestes símbolos da morte, coisa que neles nunca reparava no Sul, onde tão freqüentemente se encontram.
Peguei a carta. Faltava-lhe a assinatura. Sem a mínima dúvida era a escrita de Âni. Nem mesmo faltavam nela a grande "S"-voluta, nem o "T" francês, a que se havia acostumado no escritório para irritar o Sr. G.
O estilo não era o dela. Pelo menos não falava como de costume. Sabia ela tão amavelmente conversar e rir com seus olhos azuis e seu gracioso nariz.
Somente quando discutíamos assuntos religiosos é que ela se tornava mordaz e caía no rude tom da carta. (Eu própria entrei agora na excitada cadência da mesma).
Eis aí
A CARTA DO ALÉM DE ANI, V.,
Palavra por palavra, tal qual a li no sonho:
"Clara! Não rezes por mim. Sou condenada. Se te comunico isso e se a respeito de algumas circunstâncias da minha condenação te dou pormenorizadas informações, não creias que eu o faça por amizade. Aqui não amamos a ninguém mais. Faço-o, como "Parcela daquele Poder que sempre quer o Mal e sempre produz o Bem".
Em verdade, eu queria também ver-te aqui, onde eu para sempre vim parar. [S. Tomas de Aquino, Summa Theológica (S. Th.) Supplementum (Suppl.) q. 98, a. 4: "Os réprobos querem que todos os bons sejam condenados". ]
Não estranhes esta minha intenção. Aqui pensamos todos da mesma forma. A nossa vontade está petrificada no mal - no que vós chamais "mal". Mesmo quando fazemos algo de "bem", como eu agora, descerrando- te os olhos sobre o Inferno, não o fazemos com boa intenção.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 1: "Neles o autodeterminado querer é sempre de todo perverso".]
Lembra-te ainda:
Fez 4 anos que nos conhecemos, em M. Tinhas 23 anos e já trabalhavas no escritório havia meio ano, quando lá entrei.
Tiravas-me bastante vezes de embaraços; davas-me a mim, principalmente, freqüentes bons avisos. Mas que é que se chama "bom"!
Eu louvava, então tua "caridade". Ridículo... Tuas ajudas provinham de pura ostentação, como, aliás, eu já suspeitava.
Nós aqui não reconhecemos bem algum em ninguém!
Conheceste minha mocidade. Cumpre preencher, aqui, certas lacunas.
* * *
Conforme o plano de meus pais, eu não devia nunca haver existido. Aconteceu-lhes um descuido, a desgraça da minha concepção.
Minhas duas irmãs já tinham 15 e 14 anos, quando eu vim à luz.
Oxalá nunca eu tivesse nascido! Oxalá pudesse eu agora aniquilar-me, fugir a esses tormentos! Não há volúpia comparável à de acabar minha existência, como se reduz a cinzas um vestido, sem mesmo deixar vestígios.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 3, r. ib. ad 3: "Enquanto a inexistência liberta de uma vida de terríveis castigos, seria ela para os condenados um bem maior do que sua miserável existência... Assim desejam a não existência."] Mas é preciso que eu exista; é preciso que eu seja tal como eu me tenho feito: com a falha total da finalidade da minha existência.
Quando meus pais, ainda solteiros, mudaram-se da roça para a cidade, perderam o contato com a Igreja.
Assim era melhor.
Mantinham relações com pessoas desligadas da religião. Conheceram-se num aile e viram-se "obrigados" a casar meio ano depois.
No ato do casamento pegaram neles só algumas gotas de água benta, suficientes apenas para atrair mamãe à missa domingueira raríssimas vezes por ano.
Nunca ela me ensinava a rezar direito. Esgotava-se nos cuidados de cada dia, ainda que a nossa situação não fosse ruim.
Semelhantes palavras como rezar, missa, água benta, igreja, só escrevo com íntima repugnância, com incomparável nojo. Detesto profundamente os freqüentadores de igreja, assim como todos os homens e coisas em geral.
Tudo se nos torna tormento. Cada conhecimento recebido ao falecer, cada lembrança da vida e do que sabemos, se transforma numa flama incandescente. [S. Th. Suppl. q. 98, a. 7, r.: "Nada há nos réprobos, que não lhes seja matéria e causa de tristeza... Assim dirigindo sua atenção sobre coisas conhecidas". ]
E todas essas lembranças nos mostram aquele medonho lado que fora uma graça que desprezamos. Como isso atormenta! Não comemos, não dormimos, nem andamos com as pernas. Espiritualmente acorrentados, nós réprobos, fitamos estarrecidos a nossa vida falhada, uivando e rangendo os dentes, atormentados e cheios de ódio.
Ouves tu? Bebemos aqui ódio como água. Odiamo-nos mutuamente.[ S. Th. Suppl. q. 98, a. 4, r.: "Nos réprobos domina um ódio total".]
Mais do que tudo, odiamos a Deus. Procuro tornar-te isso compreensível.
Os bem-aventurados no Céu devem amá-Lo. Porque O vêem desveladamente em Sua arrebatadora beleza. Isso torna-os indescritivelmente felizes. Sabemos isso e é esse conhecimento que nos torna furiosos.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 9, r.: "Ante o dia do juízo universal sabem os réprobos que os bem aventurados se encontram numa inefável glória."]
Os homens, na terra, que conhecem Deus pela criação e revelação podem amá-Lo; não são forçados a fazê-lo.
O crente - furiosa eu te digo aqui - que contempla, meditando, cristo estendido na cruz, O amará.
Mas a alma de quem Deus se acerca, fulminante, como vingador e justiceiro, como Quem foi repelido, essa O odeia, como nós O odiamos.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 8, ad 1, ib. ad 5, r.: "Os réprobos só enxergam em Deus o castigador e impedidor (do mal, que desejam ainda fazer). Mas como só O enxergam no castigo, efeito da sua justiça, odeiam-nO".] Odeia-O com toda a força de sua má vontade. Odeia-O eternamente. Em virtude da deliberada resolução de ficar afastada de Deus, com que terminou a vida terrena. E essa perversa vontade, não podemos revogá-la mais, nem jamais quereremos revogá-la.
Compreendes tu agora por que o Inferno há de ser eterno? Porque a nossa obstinação nunca derrete, nunca termina.
Forçada acrescento que Deus é propriamente ainda misericordioso para conosco. Disse "forçada". A razão é esta: ainda que voluntariamente escreva esta carta, não me é possível mentir, como eu bem queria. Assento no papel muitas informações contrariamente à minha vontade. Também a corrente de injúrias que queria despejar, tenho de reengolí-la.
Deus era misericordioso para conosco pelo que não deixou a nossa vontade produzir e efetivar na Terra todo o mal que desejávamos fazer. Se Ele nos tivesse deixado a esmo, teríamos aumentado muito a nossa culpa e castigo. Deixou-nos morrer prematuramente - como a mim - ou introduziu circunstâncias atenuantes.
Agora Ele se nos torna misericordioso por que não nos obriga a nos aproximar Dele, porém a ficarmos neste lugar distante do Inferno, diminuindo-nos o tormento.[S. Th. I, q. 21, a. ad. 1.: "Na condenação dos réprobos aparece a misericórdia de Deus... , no que os castiga menos do que merecem". - Em outro lugar nota o santo doutor da Igreja, que isso é o caso sobretudo com os que neste Mundo eram misericordiosos para com os outros (S. Th. Suppl. q. 99, a. 5, ad 1.)]
Cada passo mais perto de Deus dar-me-ia maior sofrimento do que a ti um passo mais perto de uma fogueira.
Ficaste espantada um dia quando te contei, em passeio, o que meu pai me dissera alguns dias antes da minha primeira comunhão: "Cuida, Anita, que ganhes bonito vestido; o mais não passa de burla".
Quase me teria mesmo envergonhado do teu espanto. Agora rio-me disso. O mais bem feito, em toda essa burla, era permitir-se a comunhão apenas aos 12 anos. Eu já estava, então, assaz possuída do prazer do mundo, que postergava facilmente tudo quanto era religião, e não levei a comunhão a sério.
O novo costume de deixar as crianças receberem a comunhão aos 7 anos põe-nos furiosos. Envidamos todos os meios para burlar isso, fazendo crer que para comungar cumpre haver compreensão. É preciso que as crianças já tenham cometido antes alguns pecados mortais. O "branco" Deus será menos prejudicial, então, do que recebido quando a fé, a esperança e o amor, frutos do batismo - escarro sobre tudo isso - ainda estão vivos no coração da criança.
Lembras-te que já sustentei esse mesmo ponto de vista na Terra?
Torno a meu pai. Ele brigava muito com minha mãe. Raras vezes te frisei isso: tinha vergonha. Ah! que é vergonha? Coisa ridícula! A nós tudo nos é indiferente.
Meus pais não dormiam mais no mesmo quarto.. Eu dormia com minha mãe, papai no quarto ao nosso lado, aonde podia voltar a qualquer hora da noite. Ele bebia muito e gastou a nossa fortuna. Minhas irmãs estavam empregadas e precisavam do seu próprio dinheiro, como diziam. Mamãe começou a trabalhar. No último ano de sua amargurada vida, papai batia em mamãe muitas vezes, quando não lhe queria dar dinheiro. Para mim ele era sempre bonzinho. Um dia, contei-te isso e ficastes escandalizada sobre o meu capricho - e de que não te escandalizastes em mim? - um dia, pois, devolveu duas vezes sapatos novos, porque a forma dos saltos não me era bastante moderna.[Os assinalados traços sobre o pai de Âni e as ocorrências subsequentes são fatos.]
Na noite em que uma apoplexia vitimou meu pai mortalmente, aconteceu algo que nunca te confiei, por temer desagradável interpretação de tua parte. Hoje, porém, deves sabê0lo. Esse fato é memorável, porque foi pela primeira vez que o meu atual espírito carrasco se acercou de mim.
Eu dormia no quarto de minha mãe. Suas respirações regulares denotavam seu profundo sono.
De repente ouvi chamar meu nome. Uma voz desconhecida murmurou: "Que acontecerá, se teu pai morrer?"
Eu não amava mais meu pai, desde que ele começara a maltratar minha mãe. Já não amava propriamente ninguém: só me prendia a alguns que eram bons para mim. - Amor sem intuito natural existe quase só nas almas que vivem em estado de graça. Nele eu não vivia.
Respondia assim ao misterioso interlocutor: "Com certeza ele não morre".
Após breve intervalo, ouvi a mesma bem compreendida pergunta sem me incomodar de saber, de onde provinha.
"Qual o que! Ele não está morrendo" escapou-me casmurra.
Pela terceira vez fui interrogada: "Que acontecerá se teu pai morrer?"
De relance me surgiu no espírito como meu pai freqüentes vezes voltava para casa meio bêbado, ralhando e brigando com mamãe e quanto ele nos envergonhava perante os vizinhos e conhecidos!
Gritei, então embirrada: "Pois não, é quanto merece! Que morra!"
Depois, ficou tudo quedo.
Na manhã seguinte, quando mamãe foi para arrumar o quarto de papai, encontrou a porta fechada. Ao meio dia abriram-na à força. Papai encontrava-se meio vestido em cima da cama - morto, um cadáver. Ao procurar cerveja na adega, deve se ter resfriado. Desde muito, estava adoentado. - (Será que Deus fez depender da vontade de uma criança, a quem o homem demonstrava bondade, o conceder-lhe mais tempo e ocasião para se converter?)
* * *
Marta K. e tu me fizestes ingressar na associação das moças. Nunca te escondi que achava as instruções das duas diretoras, duas senhoras X., assaz vigaristas. Achava os jogos bastante divertidos. Conforme sabes, cheguei, em breve, a sustentar nele papel preponderante. Isso era o que me lisonjeava. Também as excursões me agradavam. Deixei-me até levar algumas vezes a confessar-me e comungar. Propriamente não tinha nada para confessar. Pensamentos e sentimentos comigo não entravam em conta. Para coisas piores eu não estava madura ainda.
Admoestaste- me um dia: "Âni, se não rezares mais, perder-te-ás" . Eu rezava realmente muito pouco; e também só contrariada, de má vontade.
Tinhas tu, sem dúvida, razão. Todos os que no Inferno ardem, não rezaram, ou não rezaram bastante. A oração é o primeiro passo para Deus. Sempre decisivo. Mormente a oração para aquela que é a mãe do Cristo, cujo nome não nos é lícito pronunciar. A devoção a Ela arranca ao demônio inúmeras almas, que os pecados lhe teriam infalivelmente atirado às mãos.
Furiosa, continuo - por ser forçada: rezar é o mais fácil que se pode fazer na Terra. Justamente a essa facilidade Deus ligou a salvação.
A quem reza coma assiduidade, Deus dá, paulatinamente, tanta luz e fortalece-o tanto que o mais afogado bode de pecador se pode definitivamente levantar pela oração, ainda que esteja submerso na lama até ao pescoço.
Nos últimos anos da vida eu deveras não rezava mais e assim me privava das graças, sem as quais ninguém se pode salvar.
Aqui não recebemos mais graça alguma. Mesmo que a recebêssemos, com escárnio a rejeitaríamos. Todas as vacilações da existência terrestre acabaram no além.
* * *
Na vida terrena pode o homem passar do estado de pecado para o estado de graça. Da graça pode cair no pecado. Freqüentes vezes caí por fraqueza; raramente por maldade. Com a morte, terminou essa inconstância do sim e do não, caindo e levantando-se. Pela morte, cada um entra no estado final, fixo e inalterável.
À medida que avança a idade, tornam-se menores os saltos. É verdade que, até à morte, a gente se pode converter a Deus ou virar-Lhe as costas. No morrer se decide o homem, entretanto, com as últimas tremuras da vontade, maquinalmente, tal como se acostumara na vida.
Bom ou mau hábito tornou-se uma segunda natureza. Esta o arrasta no derradeiro momento. Assim também arrastou à mim. Anos inteiros eu vivera afastada de Deus. Consequentemente, decidi-me no último chamamento da graça, contra Deus. Não que o haver pecado muitas vezes me fosse uma fatalidade, mas porque eu não me queria mais levantar.
Repetidas vezes me admoestaste a assistir à pregação e a ler livros devotos. Eu escusava-me regularmente com a falta de tempo. Havia eu de aumentar ainda mais a minha incerteza íntima?
Cumpre-me, aliás, afirmar: Quando cheguei a esse ponto crítico, pouco antes da minha saída da associação das moças, ter-me-ia sido muito difícil enveredar por outro caminho. Sentia-me insegura e infeliz. Diante da minha conversão, levantou-se um paredão.. Deves tê-lo desapercebido. Tu o tinhas imaginado tão fácil, quando uma vez me disseste: "Faça, pois, uma boa confissão, Âni, e tudo ficará bem".
Eu suspeitava que assim fosse. Mas o mundo, o demônio e a carne já me seguravam nas suas garras.
Na atuação do demônio eu não acreditava nunca. Agora atesto que, a pessoas como eu então era, o demônio influencia poderosamente. [A influência dos maus espíritos encerra-se nos apelidos "demônio" ou "diabo". Como comprovação da sua existência, bastam dois textos da S. Escritura: "Irmãos, sede sóbrios e vigiai! Vosso inimigo, o demônio, anda por aí como um leão rugindo e procurando a quem puder devorar". (1 Petr. 5, 8). O rugir nãos e refere ao que satanás faz muito alarme com as suas tentações, porém à avidez com que ele nos procura perder. - S. Paulo escreve aos Efésios (*, 12): "Ponde a armadura de Deus, para que possais resistir às astúcias do demônio. Nossa luta não é contra carne e sangue (homens), porém contra os poderes dos tenebrosos dominadores deste Mundo e contra os maus espíritos dos ares."]
Só muitas orações alheias e as minhas próprias, juntamente com sacrifícios e sofrimentos, teriam conseguido arrancar-me dele.
E isso deveras só paulatinamente. Poucos possessos. O demônio não pode tirar o livre arbítrio àqueles que se entregam à sua influência. Contudo, como castigo de sua apostasia quase total de Deus, Este permite que o "Mau" neles se aninhe.
Odeio também o demônio. Todavia gosto dele, porque ele procura perder-vos: ele e seus auxiliares, os anjos caídos com ele desde os princípios do tempo. Há miríades. Vagueiam pela terra inúmeros como enxames de moscas, sem que sejam suspeitados. [S. Th. Suppl. q. 98, a. 6, ad 2: "Não é tarefa dos homens condenados, perderem e tentarem outros, porém dos demônios."]
A nós, homens réprobos, não nos incumbem de vos tentar; isso cabe aos espíritos caídos.
Aumentam, sim, ainda mais os seus tormentos toda vez que arrastam uma alma humana ao Inferno. Mas de que não é capaz o ódio![S. Th, q. 98, a. 4, ad 3: "O crescente número dos réprobos aumenta ainda os sofrimentos de todos. Mas são de tal modo cheios de ódio e inveja, que antes querem sofrer mais com muitos, do que menos sozinhos.."]
Ainda que eu andasse por veredas tortuosas, Deus me procurava. Eu preparava o caminho à graça, por serviços de caridade natural, que por inclinação de minha índole, não raras vezes prestava.
Às vezes atraía-me Deus para uma Igreja. Lá eu sentia certa nostalgia. Quando cuidava da minha mãe doente, apesar do meu trabalho no escritório durante o dia, e sacrificava- me realmente um tanto, atuavam sobre mim poderosamente essas atrações de Deus.
Uma vez - foi na capela do hospital, aonde me levaste no tempo livre de meio dia - fiquei tão impressionada, que me encontrei a um passo apenas da minha conversão. Eu chorava.
Em seguida, porém, vinha o prazer do mundo derramar-se, como uma torrente, por sobre a graça. Os espinhos aforaram o trigo. Com a explicação de que religião é sentimentalismo conforme sempre se dizia no escritório, lancei também essa graça, como outras, debaixo da mesa.
Repreendestes- me um dia que, em vez de genuflexão, fiz numa igreja uma ligeira inclinação da cabeça. Tomastes isso como preguiça e não parecias suspeitar de que, já então, não acreditava mais na presença de Cristo no Sacramento. Agora creio nela, porém só naturalmente, como se acredita em tempestade, cujos sinais e efeitos se percebem.
Nesse ínterim, havia-me arranjado, eu própria, uma religião. Agradou-me a opinião generalizada no escritório, de que, após a morte, a alma voltaria para este Mundo em outro ser e passaria por outros e mais outros seres, numa sucessão sem fim.
Com isso liquidei o angustiante problema do além e imaginava tê-lo tornado inofensivo.
Por que não me lembraste a parábola do gozador rico e do pobre Lázaro, em que o narrador, Cristo, imediatamente após a morte, mandou um para o Inferno, o outro para o Paraíso? Mas o que terias conseguido? Nada mais do que com tuas demais palavras beatas.
Aos poucos eu própria arranjei um deus: bem privilegiado para se chamar deus; a mim bastante longe para não me obrigar a relações com ele; assas confuso, para se transformar, à vontade e sem mudar de religião, num deus panteístico ou até tornar-me orgulhosa deísta.
Esse "deus" não tinha um céu para me galhardear nem inferno para ame amedrontar-me. Deixei-o em paz. Nisso consistia a minha adoração a ele.
No que se ama, acredita-se facilmente. No curso dos anos tinha-me eu assaz persuadido da minha religião. Vivia-se bem com ela, sem que ela me incomodasse.
Só uma coisa lhe teria quebrado a nuca: uma dor profunda, prolongada. Mas este sofrimento não veio. Compreende agora: "A quem Deus ama, Ele castiga!"
Era um dia de estio, em julho, quando a associação das moças organizava uma excursão para A. Gostava eu sim das excursões. Mas não das beatarias anexas!
Outra imagem, diferente da de Nossa Senhora das Graças de A., estava, desde pouco, no altar do meu coração. O grã-fino Max N. do armazém ao lado. Pouco antes conversáramos divertidamente algumas vezes. Convidara-me, nessa ocasião, para fazermos uma excursão naquele mesmo domingo. A outra com que costumava andar, estava no hospital.
Reparara, sim, que eu tinha deitado um olhar sobre ele. Mas eu não pensava ainda em casar-me com ele. Era afortunado, porém amável demais para com muitas e quaisquer mocinhas; até então eu queria um homem que me pertencesse exclusivamente, como única mulher.. Certa distância sempre me era própria. [Isso era verdade. Com toda a sua indiferença religiosa Âni tinha algo de nobre em seu ser. Espanto-me de que também pessoas "honestas" possam cair no Inferno, se são assaz desonestas para fugirem do encontro com Deus]
Nessa excursão, Max cumulou-me de todas as amabilidades. Conversações de beatas é que não tivemos, como vocês.
No outro dia, no escritório, repreendestes- me porque não vos acompanhei até A. Contei-te os meus divertimentos domingueiros.
Tua primeira pergunta era: "Estivestes na missa?" Louca! Como podia assistir à missa, desde que combinamos a saída para 6 horas! Lembras-te, ainda, que juntei excitada: "O bom deus não é tão mesquinho como os vossos padrecos?" Agora, cumpre-me confessar-te que, apesar de sua infinita bondade, Deus toma tudo mais a sério do que os padres.
Após esse primeiro passeio com Max, assisti mais uma só vez à vossa reunião. Na solenidade de Natal. Certas coisas me atraíam. Mas interiormente, já estava apartada de vocês.
Cinemas, bailes, excursões, seguiam-se. Brigávamos às vezes, Max e eu, mas eu sabia prendê-lo sempre a mim.
Mui desagradável me foi a rival que, de volta do hospital, se comportava furiosamente. Propriamente a meu favor. Minha calma distinta causou grande impressão a Max e obrigou-lhe, afinal, a decisão de me preferir.
Eu sabia denegri-la, rebaixá-la. Falando com calma: por fora, realidades objetivas; por dentro, atirando peçonha. Semelhante sentimentos e insinuações conduzem rapidamente ao Inferno. São diabólicos, no verdadeiro sentido da palavra.
Por que te conto isso? Para constar como fiquei definitivamente livre de Deus.
Para esse afastamento não foi preciso que eu chegasse com Max muitas vezes às últimas familiaridades. Compreendi que me rebaixaria aos seus olhos, se me deixasse esvaziar antes do tempo. Por isso me retinha, vedava.
Realmente estava eu sempre pronta para tudo que achava útil. Cumpria-me conquistar Max. Para isso nada achava caro de mais. Amamo-nos aos poucos, pois que ambos possuíamos valiosas qualidades que podíamos apreciar mutuamente. Fui talentosa e tornei-me hábil e conversadora. Cheguei, assim, a prender Max nas mãos, segura de que o possuía sozinha, pelo menos nos últimos meses antes do casamento.
Nisso consistia minha apostasia de Deus, em fazer de uma criatura o meu deus. Em coisa alguma pode isso realizar-se tão plenamente como entre pessoas de diferentes sexo, se o amor se afoga na matéria. Isso torna-se seu encanto, seu aguilhão e seu veneno. A "adoração" que eu me prestava em Max, tornou-se-me uma religião vivida..
* * *
Era no tempo quando, no escritório, tão virulentamente eu caia em cima das corridas à igreja, dos padrecos, do murmurejar de rosário e das demais bugigangas.
Emprenhastes- te, mais ou menos inteligentemente, em proteger tudo isso; aparentemente sem suspeitares de que para mim, em última análise, não se tratava dessas coisas, mas propriamente de ponto de apoio contra minha consciência que eu estava procurando - dele eu precisava ainda - para justificar racionalmente a minha apostasia.
No fundo eu vivia revoltada contra Deus. Tu não percebias isso. Sempre me consideravas ainda católica. Como tal, queria eu também ser chamada; até mesmo pagava a contribuição para a igreja. Certa "ressalva" não me podia fazer mal, pensava eu.
Por mais certas que às vezes fossem tuas respostas, de mim ressaltavam, porque tu não devias ter razão. Em face dessas nossas relações entrecortadas a dor da nossa separação era pequena, quando meu casamento nos distanciou.
Antes do meu casamento, confessei-me e comunguei mais essa vez. Era uma formalidade. Meu homem pensava como eu. De resto, por que não haveríamos de satisfazê-la? Cumprimo-la como qualquer outra formalidade.
Vós o chamais "indigno". Após aquela "indigna" comunhão eu tinha mais sossego de consciência. Era essa a última.
Nossa vida matrimonial decorria, em geral, em boa harmonia. Em quase todos os pontos tínhamos a mesma opinião. Também nisso: não nos queríamos impor o encargo de filhos. No fundo, meu marido desejava ter um - naturalmente não mais. Eu soube arrancar-lhe, finalmente, essa idéia. Eu gostava mais de vestidos e mobílias finas, de tertúlias de chá, de passeios de automóvel e de semelhantes divertimentos.
Era um ano de prazeres terrenos entre o casamento e minha repentina morte.
Cada domingo passeávamos de automóvel ou visitávamos parentes de meu esposo. (De minha mãe eu me envergonhava então). Esses nadavam bem como nós, na superfície da existência.
Interiormente, porém, nunca me sentia deveras feliz. Algo roía-me sempre na alma. Eu desejava que pela morte, a qual sem dúvida havia de demorar muito tempo ainda, tudo acabasse.
Mas é como em criança eu ouvira uma vez falar, em sermão, que deus recompensa já neste Mundo o bem que alguém pratica. Se não pode recompensá-lo no outro mundo, fá-lo na Terra.
Sem o esperar, recebi uma herança (da tia Lote). Meu marido teve a sorte de ver o seu salário consideravelmente aumentado. Assim pude instalar mimosamente a nossa casa nova.
* * *
Minha religião estava às últimas, como um vislumbre do ocaso no firmamento longínquo. Os bares e cafés da cidade e os restaurantes por onde passávamos nas viagens, não nos aproximaram de Deus.
Todos os que lá freqüentavam, vivam como nós: de fora para dentro, não de dentro para fora.
Visitando uma célebre catedral, nas viagens de férias, procurávamos deleitar-nos com o valor artístico das obras primas. O sopro religioso que irradiavam, mormente as da Idade Média, eu sabia neutralizá-lo, escandalizando- me em qualquer circunstâncias da visita. Assim, a um irmão leigo que nos conduzia, eu criticava o estar um tanto sujo e desajeitado; criticava o comércio de piedosos monges que fabricavam e vendiam licor; criticava as eternas badaladas dos sinos chamando para igrejas, onde se trata apenas de dinheiro.
Assim eu conseguia afastar de mim a graça, cada vez que me batia à porta.
Mormente deixava meu mau humor derramar-se livremente sobre tudo que tratava de antigas representações do Inferno em livros, cemitérios e outros lugares, onde se viam os demônios fritarem as almas em fogo vermelho ou amarelo, e seus sócios, de cauda comprida, trazerem-lhes mais e mais vítimas.
Clara, o Inferno pode ser mal desenhado, porém nunca ser exagerado.
Sobretudo escarnecia eu sempre da foto do Inferno. Lembras-te como numa conversa sobre isso eu te meti um fósforo aceso debaixo do nariz burlando: "É assim que cheira!"
Tu apagaste tão logo a chama. Aqui ninguém a extingue. Digo-te mais: o fogo de que fala a Bíblia, não significa tormento de consciência. Fogo significa fogo. Cumpre entendê-lo em sentido real, quando Aquele declarou: "Afastai-vos de mim, vós, malditos, ide para o fogo eterno". Literalmente!
Como pode o espírito ser tocado pelo fogo material? Perguntas.
Como então pode, na Terra, tua alma sofrer, segurando teu dedo na chama?
Tua alma também não se queima, mas que dor tem de aturar o homem todo!
Semelhantemente estamos nós aqui presos ao fogo em nosso ser em nossas faculdades. Nossa alma fica privada do seu vôo natural; não podemos pensar nem querer o que queremos.[S. Th. Suppl. q. 70, a. 3, r.: "O fogo do Inferno atormenta o espírito pelo que o impede de executar o que quer; não pode atuar onde quer e quanto quer."]
Não procures esclarecer o mistério contrário às leis da natureza material: o fogo do Inferno queima sem consumir.
O nosso maior tormento consiste em que sabemos exatamente que nunca veremos Deus.
Quanto pode torturar o que na terra nos era indiferente! Enquanto a faca está em cima da mesa, deixa-te fria. Vês-lhe o fio, porém não o sentes. Mas entra a faca na carne e gritarás de dor.
Agora sentimos a perda de Deus; antes só a vimos.["A separação de Deus é um tormento tão grande como Deus" (Frase atribuída a S. Agostinho. Cf. Houdry, Biblioteca concionatorum - Veneza, 1786, vol. 2, sob Infernus, § 4, p. 427)]
Todas as almas não sofrem igualmente. Quanto mais frívolo, maldoso e decidido alguém foi no pecar, tanto mais lhe pesa a perda de Deus, e tanto mais torturado se sente pela criatura abusada.
Os católicos condenados sofrem mais do que os de outra crença, porque receberam e desaproveitaram, em geral, mais luzes e mais graças.
Quem sabia mais, sofre mais do que aquele que menos conhecimentos tinha.
Quem pecou por maldade sofre mais do que aquele que caiu por fraqueza.
Mas nenhum sofre mais do que mereceu. Oxalá isso não fosse verdade, para que eu tivesse motivo para odiar!
Tu me disseste um dia: ninguém cai no Inferno sem que o saiba. Foi isso revelado a uma santa. Ria eu disso, no entanto me entrincheirava atrás desta reflexão: nesse caso me ficaria suficiente tempo para me converter - assim eu pensava no íntimo.
O enunciado calha. Antes do meu fim repentino, de certo não conhecia o Inferno tal qual é. Nenhum ente humano o conhece. Mas eu estava exatamente inteirada disso: Se tu morreres, entrarás na eternidade como revoltada contra Deus. Suportarás as conseqüências. .
Conforme declarei já, não voltei atrás, mas perseverei na mesma direção, arrastada pelo costume, com que os homens agem tanto mais calculada e regularmente, quanto mais velhos ficam.
* * *
Minha morte ocorreu do seguinte modo:
Há uma semana - falo de acordo com a vossa contagem, porque calculada pelas dores, eu poderia já estar ardendo no Inferno havia dez anos - faz pois uma semana que meu marido e eu fizemos, num domingo, uma excursão, que foi a última para mim.
Radiante despontara o dia. Eu sentia-me bem, como raras vezes. Perpassou-me, porém, um sinistro pressentimento. .
Inesperadamente, na viagem de volta, meu marido que vinha guiando o carro, e eu ficamos ofuscados pela luz de um automóvel que vinha em sentido contrário e com grande velocidade. Meu marido perdeu a direção.
Jesus! Estremeci. Não como oração, mas como grito. Sentia uma dor esmagadora por compressão - uma bagatela em comparação com o tormento atual. Perdi então os sentidos.
Estranho! Naquele manhã mesma, nascera-me inexplicavelmente a idéia: poderias, enfim, mais uma vez ir à missa. Soava-me como súplica. Claro e decidido cortou meu "Não" o fio da idéia.. Com isso devo acabar definitivamente. Tomo sobre mim todas as conseqüências. Agora as suporto.
* * *
O que aconteceu após a minha morte, tu conheces. A sorte de meu marido, de minha mãe, do meu cadáver e enterro, tudo te é conhecido até nos pormenores, como sei por uma intuição natural que todos nós temos.
Do mais que acontece no Mundo, só temos um conhecimento confuso. Mas o que nos tocava de perto conhecemos. Assim conheço também teu paradeiro.[" As almas de falecidos não têm seguro conhecimento de pormenores, porém apenas um enuviado conhecimento geral da natureza material". (S. Th. Suppl. q. 98, a. 3).]
* * *
Acordei das trevas no momento da minha morte.. Vi-me de repente envolvida de luz ofuscante. Era no mesmo lugar onde estava o meu cadáver. Aconteceu como em teatro, quando de repente apagam as luzes, a cortina é ruidosamente removida e aparece a cena tragicamente iluminada: a cena de minha vida.
Como num espelho, assim eu vi minha alma. Vi as graças pisadas aos pés, desde a juventude até o último "Não" dado a Deus.
Apossou-se de mim a impressão como que de assassino levado ao tribunal à frente da sua vítima inanimada. - Arrepender-me? Nunca! [S. Th. Suppl. q. 98, a. 2, r.: "Os maus não se arrependem propriamente dos pecados, por lhes serem afeitos maliciosamente. Arrependem-se, porém enquanto são castigados pelas penas dos pecados".] - Envergonhar- me? Jamais!
Entretanto nem me era possível permanecer na vista de Deus, negado e reprovado por mim. Restava-me uma só coisa: a fuga.
Assim como Caim fugiu do cadáver de Abel, assim minha alma se atirou longe desse aspecto horrível.
Esse era o Juízo particular.
O invisível juiz falou: "Afasta-te!" Logo caiu minha alma, como uma sombra sulfúrica, no lugar do tormento eterno. ["É certo que o Inferno é um local determinado. Mas onde esse local fica situado, ninguém o sabe." A eternidade das penas do Inferno é um dogma: seguramente o mais terrível de todos. Tem suas raízes na S. Escritura. Cf. Mt. 25, 41 e 46; 2 Thess. 1, 9; Jud. 13; Apoc. 14, 11 e 20, 10; todos eles são textos irrefutáveis, em que "eterno" não se deixa trocar e interpretar por "longo". Se não fora conveniente ilustrar esse dogma num caso particular, nem o próprio Nosso Senhor teria pedido fazê-lo na parábola do rico folgazão e do pobre Lázaro. Lá fez o mesmo que aqui vem feito: desenhou o Inferno e como se pode cair nele. Não o fez por prazer sensacional, porém levado pela mesma intenção que ocasionou esta publicação. A finalidade deste folheto encontra sua expressão no seguinte conselho: "Desçamos ao Inferno ainda vivos, para que moribundos nele não caiamos". Este conselho dirigido a cada um não é senão a paráfrase do salmo 54: "Descendant in infernum viventes, videlicet, ne descendant morientes", a qual se encontra numa obra (erradamente) atribuída a S. bernardo (Patr. Lat. Migne, vol. 184, Col. 314 b]
* * *
Últimas informações de Clara
"Assim finalizou a carta de Âni sobre o Inferno. As últimas palavras eram quase ilegíveis, tão tortas estavam as letras. Quando eu acabara de ler a última palavra, a carta toda virou cinza.
Que é que lá ouço? Por entre os duros acentos das linhas que eu imaginava ter lido ressoou doce som de sino. Acordei de vez. Achei-me ainda deitada no meu quarto. A luz matinal da aurora penetrava nele. Da igreja paroquial vinham as badaladas das ave-marias.
Pois tudo era apenas um sonho?
Nunca eu sentira na Saudação Angélica, tanto consolo como após esse sonho. Pausadamente fui rezando as três ave-marias. Tornou-se-me então claro, claríssimo: ela cumpre segurar-te, à bendita Mãe do Senhor, venerar a Maria filialmente, se não quisesse ter a mesma sorte que te contou - ainda que em sonho - uma alma que jamais verá Deus.
Espantada e tremendo ainda pela visão noturna levantei-me, vesti-me depressa e fugi para a capela da casa.
O coração palpitava-me violenta e descompassadamente. Os hóspedes, ajoelhados mais perto de mim, olhavam-me preocupados. Talvez pensassem que, por haver eu corrido escada abaixo, estivesse tão excitada e vermelha.
Uma bondosa dama de Budapeste, grande sofredora, franzina como uma criança, míope, todavia fervorosa no serviço de Deus e de longo alcance espiritual, disse-me à tarde no jardim: "Senhorita, Nosso Senhor não quer ser servido no expresso".
Mas ela percebia então que outra coisa me havia excitado e ainda me preocupava. Ajuntou bondosamente: "Nada te deve angustiar - conheces o aviso de S. Teresa - nada te deve alarmar. Tudo passa.. Quem possui Deus, nada lhe falta. Só Deus basta."
Quando sussurrava isso mesmo, sem qualquer tom de mestra, parecia-me ler na minha alma.
"Deus só basta". Sim, Ele há de me bastar, neste e no outro mundo. Quero ali possuí-Lo um dia, por mais sacrifícios que aqui eu tenha ainda de fazer para vencer. Não quero cair no Inferno."

08/05/2010

Milagres e a Moderna Civilização

Gilbert Keith Chesterton

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Nota do tradutor: Este ensaio é um dos quatro que fazem parte da tremenda batalha travada entre Chesterton e Robert Blatchford, em 1903-04. Blatchford escrevera um livro intitulado Deus e Meu Próximo, que era um credo racionalista, ao estilo do século que acabara havia pouco tempo. Como editor do jornal Clarion, Blatchford generosamente abriu as páginas do jornal para os que dele discordavam, entre os quais, e principalmente, se incluía G.K. Chesterton. Os textos do grupo liderado por Chesterton veio a ser publicado num volume intitulado As Dúvidas da Democracia, mas os textos de Chesterton foram depois reunidos e publicados, pela Ignatius Press, sob o título Controvérsias com Blatchford. Há um delicioso trecho em Hereges em que Chesterton se refere à controvérsia dizendo: “... o Sr. Blatchford, que começou uma campanha contra o cristianismo e mesmo sendo advertido por muitos que isso arruinaria seu jornal, continuou por causa de um senso honorável de responsabilidade intelectual. Ele descobriu, contudo, que enquanto chocava indubitavelmente seus leitores, seu jornal muito prosperava. Passou a ser comprado – primeiramente, por todos que concordavam com ele e o queriam ler; depois, por todos que discordavam dele e queriam escrever-lhe cartas. Tais cartas eram volumosas (eu ajudei, fico feliz em dizer, a engordar o jornal) e eram geralmente publicadas quase sem cortes. A grande máxima do jornalismo foi assim acidentalmente descoberta (como aconteceu com a máquina a vapor): que se um editor conseguir enfurecer as pessoas suficientemente, elas escreverão, de graça, metade do jornal para ele.Outro dos ensaios da controvérsia já foi traduzido por este blog: Por que acredito no cristianismo.

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O Sr. Blatchford resumiu tudo o que lhe é importante em três frases. Elas são perfeitamente honestas e claras. Tampouco elas são menos honestas e claras por serem as duas primeiras falsas e a terceira uma falácia. Ele diz: “O cristão nega os milagres do muçulmano. O muçulmano nega os milagres do cristão. O racionalismo nega todos os milagres igualmente.”

Com o erro histórico das duas primeiras observações me ocuparei daqui a pouco. Concentro-me no momento na corajosa admissão do Sr. Blatchford de que o racionalista nega todos os milagres igualmente. Ele não os questiona. Ele não pretende ser agnóstico em relação a eles. Ele não suspende o juízo até que eles sejam postos á prova. Ele os nega. Frente a tal extraordinário dogma, perguntei ao Sr. Blatchford porque ele pensa não existirem milagres. Ele respondeu que o Universo é governado por leis. Obviamente, esta resposta é completamente inútil. Pois, não podemos considerar algo impossível porque o mundo seja governado por leis, a menos que conheçamos quais leis. Conhecerá o Sr. Blatchford todas as leis do Universo? E se ele não conhecer todas as leis, como será possível que ele conheça algo sobre as exceções?

Pois, obviamente, o mero fato de que uma coisa aconteça raramente, sob circunstâncias estranhas e que não haja nenhuma explicação que conheçamos, não é prova de que ela seja contra a lei natural. Isto se aplica aos gêmeos siameses, a um novo cometa, ou ao Radium três anos atrás.

O argumento filosófico contrário aos milagres pode ser facilmente considerado. Não há argumento filosófico contra milagres. Existem as leis da natureza, racionalmente falando. O que todo mundo conhece é o seguinte: há repetição na natureza. O que todo mundo sabe é que abóboras produzem abóboras. O que ninguém sabe é porque elas não produzem elefantes ou girafas.

Há uma e apenas uma questão filosófica sobre milagres. Muitos racionalistas modernos competentes não podem sequer admiti-la para si mesmos. O estudante mais pobre de Oxford na Idade Média teria entendido a questão. (Nota: como a última frase parecerá estranha em nossa época “iluminada”, posso explicar que sob “o reino cruel da superstição medieval” jovens pobres eram educados em Oxford. Graças a Deus, vivemos em melhores dias!) [1]

A questão sobre os milagres é esta: você sabe como uma abóbora se transforma numa abóbora? Se não, você não pode dizer se uma abóbora pode ou não se transformar numa carruagem. Isto é tudo.

Todas as outras expressões científicas que você está habituado a usar no café da manhã são palavras vazias. Você diz: “É uma lei da natureza que abóboras devam continuar sendo abóboras.” Isto apenas significa que abóboras, em geral, continuam sendo abóboras, o que é óbvio; mas não se diz por quê. Você diz: “A experiência nega tal coisa.” Isto apenas significa: “Tenho conhecido intimamente muitas abóboras e nenhuma delas se transformou em carruagem.”

Há um grande racionalista irlandês dessa escola (possivelmente relacionado ao Sr. Lecky) que quando soube que uma testemunha o vira cometer um assassinato, disse que poderia apresentar uma centena de testemunhas que não o viram cometê-lo.

Você diz: “O mundo moderno é contra isso.” Isto significa que uma turba em Londres, Birmingham e Chicago, num estado mental completamente “aboborado”, não pode fazer milagre por meio da fé.

Você diz: “A ciência é contra isso.” Isto significa que contanto que abóboras sejam abóboras, a conduta delas será “aboborada”, e não mantém nenhuma semelhança com uma carruagem. Isto é extremamente óbvio.

O que o cristianismo diz é apenas isto: que essa repetição na Natureza tem sua origem não numa coisa que lembra uma lei, mas numa coisa que lembra uma vontade. A expressão Pai Celeste do cristianismo é derivada de um pai terrestre. De maneira absolutamente idêntica, a expressão “lei universal” é uma metáfora de uma lei do Parlamento. Mas o cristianismo afirma que o mundo e sua repetição surgem por vontade ou Amor, tal como as crianças são geradas por um pai, e, portanto, que outras coisas podem surgir pelo mesmo motivo. Em resumo, o cristianismo acredita que um Deus que pode fazer algo tão extraordinário quanto abóboras continuarem sendo abóboras, é, como o profeta Habbakuk, capable de tout. Se você não considera extraordinário que uma abóbora seja sempre uma abóbora, pense de novo. Você sequer chegou às portas da filosofia. Você sequer viu uma abóbora.

A questão histórica contra os milagres é muito simples. Ela consiste em considerar os milagres impossíveis, e então afirmar que apenas um idiota acredita em impossibilidades: então declarar que não há nenhuma clara evidência a favor dos fatos miraculosos. Todo o truque é feito por meio do uso alternado da objeção filosófica e da objeção histórica. Se dizemos que os milagres são teoricamente possíveis, eles dizem: “Sim, mas não há evidência deles.” Quando coletamos todos os registros da raça humana e dizemos “Eis nossa evidência”, eles dizem: “Mas esses povos eram supersticiosos, eles acreditavam em coisas impossíveis.”

A questão real é se nossa pequena civilização da Rua Oxford está seguramente certa e o resto do mundo está seguramente errado. O Sr. Blatchford pensa que o materialismo dos ocidentais do século XIX é uma de suas maiores descobertas. Eu o considero tão tedioso quanto seus casacos, tão sujo quanto suas ruas, tão feio quanto suas calças e tão estúpido quando seu sistema industrial.

O próprio Sr. Blatchford, contudo, resumiu sua fé patética na civilização moderna. Ele escreveu uma divertida descrição do quão difícil seria persuadir um juiz inglês, numa corte de justiça moderna, da verdade da Ressurreição. É claro que ele está absolutamente certo; seria impossível. Mas não parece ocorrer a ele que nós cristãos podemos não sentir tão extravagante reverência aos juízes ingleses como aquela que o próprio Sr. Blatchford sente.

As experiências do Fundador do cristianismo talvez nos tenham imprimido uma vaga dúvida sobre a infalibilidade das cortes de justiça. Sei muito bem que nada induziria um juiz inglês a acreditar que um homem ressurgira dos mortos. Mas também sei muito bem que há muito pouco tempo nada induziria um juiz inglês a acreditar que um socialista pudesse ser um bom homem. Um juiz recusaria acreditar em milagres espirituais. Mas isso não seria porque ele fosse juiz, mas porque, além de juiz, ele é um cavalheiro inglês, um racionalista moderno, e algo como um antigo idiota.

E o Sr. Blatchford está completamente errado em supor que os cristãos e os muçulmanos negam os milagres uns dos outros. Nenhuma religião que se pensa verdadeira se preocupa com os milagres de outra religião. Ela nega as doutrinas da religião; ela nega sua moral; mas nunca considera útil negar seus símbolos e milagres.

E por que não? Porque essas coisas sempre foram consideradas possíveis por alguns homens. Porque qualquer cigano pode ter poderes psíquicos. Porque a existência do mundo dos espíritos ou de estranhos poderes mentais faz parte do senso comum de toda a humanidade. Os fariseus não questionaram os milagres de Cristo; diziam que eles eram feitos pelo demônio. Os cristãos não questionavam os milagres de Maomé. Diziam que eles eram feitos pelo demônio. O mundo romano não negava a possibilidade de Cristo ser um Deus. Isso era muito “inteligente” para eles.

Na medida em que a Igreja (principalmente durante o corrupto e cético século XVIII) insistia em que os milagres fossem uma razão para a fé, seu erro é evidente; mas não é o que supõe o Sr. Blatchford. Não é que ele pedia aos homens que acreditassem em algo tão inacreditável; é que ele pedia aos homens que se convertessem por algo tão corriqueiro.

O que importa numa religião não é que ela faça milagres como qualquer esfarrapado conjurador indiano, mas que ela tenha a verdadeira filosofia do Universo. Os romanos estavam muito dispostos a aceitar que Cristo fosse um Deus. O que eles negavam é que Ele fosse o Deus – a mais alta verdade do cosmos. E este é o único aspecto que vale a pena discutir sobre o cristianismo.


[1] É verdadeiramente irônico Chesterton estar se referindo a Universidade de Oxford nestes termos, quando sabemos que Richard Dawkins é professor desta instituição. Ou seja, um professor de Oxford atualmente tem uma menor compreensão filosófica que um estudante medieval da mesma Oxford. Veja Dawkins e o Milagre de Fátima.