30/03/2014

Leitor pergunta se sou herege ou favorecedor de hereges: blog responde.

O sr. virou herege ou pelo menos favorecedor dos hereges?
“Aquele que ousasse afirmar que o Pontífice teria errado nesta ou naquela canonização, e que este ou aquele santo por ele canonizado não deveria ser honrado com culto de dulia, qualificaríamos, senão como herético, entretanto como temerário; como causador de escândalo a toda a Igreja; como injuriador dos santos como favorecedor dos hereges que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos; como tendo sabor de heresia, uma vez que ele abriria caminho para que os infiéis ridicularizassem os fiéis; como defensor de uma preposição errônea e como sujeito a penas gravíssimas.” (Papa Bento XIV - De Servorum Dei Beatificatione)
 
Um “bondoso” católico anônimo, certamente preocupado com a salvação da alma deste pobre blogueiro, deixou o comentário acima no post O dilema que a canonização de João Paulo II.
 
Logo que li o comentário lembrei-me de súbito de um texto de Chesterton: O Ressurgimento da Filosofia – Por quê?. Vale a pena ler o texto todo, mas aqui reproduzo o primeiro parágrafo: “O melhor motivo para o ressurgimento da filosofia é que a menos que um homem tenha uma filosofia, certas coisas horríveis acontecerão a ele. Ele será prático; ele será progressista; ele cultivará a eficiência; ele acreditará na evolução; ele realizará o trabalho dele mais próximo e imediato; ele se devotará a feitos, não a palavras. Assim, atingido por rajadas e mais rajadas de estupidez cega e destino aleatório, ele caminhará trôpego para uma morte miserável, sem nenhum conforto, exceto uma série de slogans; tais como esses que cataloguei acima.” [Os negritos são meus.]
 
O corajoso anônimo cita o documento de um papa do século XVIII e, presumivelmente, quer aplica-lo ao nosso século XXI. Bem, perguntemos, para começar: será que o anônimo desconhece que a Igreja do século XXI é completamente diferente da do século XVIII? Será que desconhece o furação que a atingiu no início da década de 1960 e que se chamou Concílio Vaticano II? Será que rajadas de estupidez já o cegaram?
 
Pois imaginemos uma pequena conversa entre nós e o Santo Padre Bento XIV, sobre o estado atual da Igreja. Imaginemos que o informássemos, de início, que a Missa que ele sempre celebrou, que todos antes dele celebraram, tinha sido mudada, mas mudada COMPLETAMENTE, e que hoje mais parece um culto protestante. Imaginemos sua surpresa e profunda tristeza.
 
Mas imaginemos mais; imaginemos que o informássemos que os rituais de TODOS os Sacramentos da Igreja mudaram, que hoje os fiéis tomam as Hóstias Consagradas em suas mãos e não se ajoelham para comungar. Que não há mais o Index Librorum Prohibitorum, que os Papas agora celebram rituais com protestantes, budistas, índios, etc. Que toda a legislação acerca das indulgências foi alterada e que, finalmente, para não cansar demais o Santo Padre, que todo o Processo de Canonização foi também alterado profundamente, chegando a se dispensar o Advogado do Diabo e também milagres dos futuros “santos”. Não mencionaríamos a mudança da Vulgata (elevada pelo Concílio Tridentino a texto oficial das Escrituras Sagradas), dos encontros de Assis, do Santo Ofício ser dirigido por um Cardeal que põe em dúvida, por escrito, vários Dogmas da Igreja, etc. Claro que não mostraríamos ao Santo Padre o livro de Luigi Villa sobre João Paulo II.
 
Então, quando Bento XIV fala sobre canonização, fala sobre uma decisão papal fundamentada num processo absolutamente diferente do que existe atualmente. Só um louco varrido afirmaria que as palavras de Bento XIV se aplicam ao processo de canonização atual. Assim, nenhuma canonização poderá mudar os fatos e atos que conhecemos de JPII. Se ele for, de fato, canonizado, tal ato não poderá ser infalível, porque vai contra a razão humana, no mínimo! Temerário será prestar culto de dulia ao futuro “santo”.

14/03/2014

O dilema que a canonização de João Paulo II apresenta.

Na edição de janeiro de 2014 (n. 372) do Courrier de Rome, Pe. Jean-Michel Gleize, professor de eclesiologia do Seminário da FSSPX em Econe, publicou um estudo intitulado: “João Paulo II: um novo santo para a Igreja?” Depois de lembrar que a canonização é infalível, ele pergunta: “As novas canonizações exigem obediência dos fiéis católicos?” e então “João Paulo II pode ser canonizado?”, citando as afirmações do papa polonês aos luteranos, anglicanos, ortodoxos, judeus, muçulmanos, além de suas observações sobre a liberdade religiosa. 
 
A seguir, o epílogo do Pe. Gleize 
 
Se João Paulo II é um santo, sua teologia deve ser impecável, até o mais mínimo detalhe. De fato, a virtude da fé em níveis heroicos implica uma perfeita docilidade a todo o espírito do Magisterium, e não somente à letra dos ensinamentos do Magisterium infalível e ao mais baixo denominador comum dos dogmas obrigatórios.
 
Se João Paulo II é verdadeiramente um santo, os fiéis católicos devem reconhecer que a Igreja católica e as comunidades ortodoxas são igrejas irmãs, corresponsáveis por resguardar a única Igreja de Deus.[1] Devemos, portanto, reprovar o exemplo de Josaphat Kuncewicz, arcebispo de Polotsk (1580-1623). Convertido da Igreja Ortodoxa, ele publicou uma Defesa da unidade da Igreja em 1617, na qual reprova a sua antiga Igreja por romper a unidade da Igreja de Deus, excitando o ódio desses cismáticos que o martirizaram.
 
Se João Paulo II é verdadeiramente um santo, os fiéis católicos devem reconhecer os anglicanos como irmãos e irmãs em Cristo e expressar esse reconhecimento rezando em conjunto.[2] Devemos também condenar o exemplo de Edmund Campion (1540-1581) que recusou-se a rezar com um ministro anglicano, na ocasião de seu martírio.
 
Se João Paulo II é verdadeiramente um santo, os fiéis católicos devem defender que o que divide católicos e protestantes – isto é, a realidade do sagrado e propiciatório Sacrifício da Missa, a realidade da mediação universal da Santíssima Virgem Maria, a realidade do primado da jurisdição do Bispo de Roma – é mínimo em comparação com o que os une.[3] Devemos, portanto, condenar o exemplo do capuchinho Fidelis de Sigmaringa (1578 – 1622) que foi martirizado por reformadores protestantes, a quem ele foi enviado como um missionário e para quem ele escreveu um Disputatio contra ministros protestantes, sobre a questão do Santo Sacrifício da Missa.
 
Se João Paulo II é realmente um santo, os fiéis católicos devem reconhecer o valor do testemunho religioso do povo judeu.[4] Devemos então condenar o exemplo de Pedro de Arbues (1440 – 1485), Grande Inquisidor de Aragão, que foi martirizado por judeus por ódio à fé católica.
 
Se João Paulo II é realmente um santo, os fiéis católicos devem reconhecer que depois da ressurreição final, Deus estará satisfeito com os muçulmanos e eles estarão satisfeitos com Ele.[5] Devemos então condenar o exemplo do capuchinho José de Leonessa (1556 – 1612) que trabalhou incansavelmente em Constantinopla entre cristãos reduzidos à escravidão pelos seguidores do Islã. Seu zelo lhe fez ser arrastado perante o sultão por insultar a religião muçulmana, e lhe custou ser dependurado num cavalete por uma corrente presa a ganchos em uma das mãos e a um dos pés. Os fiéis católicos devem deplorar também o exemplo de São Pedro Mavimenus, que morreu em 715 depois de ser torturado por três dias, por ter insultado Maomé e o Islã.
 
Se João Paulo II é santo, os fiéis católicos devem reconhecer que chefes de estado não deve se arrogarem o direito de impedir a profissão pública de uma falsa religião.[6] Devemos portanto condenar o exemplo do rei francês, Luiz IX, que limitava a prática das religiões não cristãs ao máximo possível.
 
Contudo, Josaphat Kuncewicz foi canonizado em 1867 por Pio IX, e Pio XI dedicou-lhe uma encíclica; a Igreja celebra sua festa em 14 de novembro. Edmund Campion foi canonizado por Paulo VI em 1970, e a Igreja o honra no dia 1 de dezembro. Fidelis de Sigmaringa foi canonizado em 1746 e Clemente XIV o proclamou “protomártir da Propaganda” (da Fé); sua festa, no calendário da Igreja, é no dia 24 de abril. Pedro de Arbues foi canonizado por Pio IX, em 1867. José de Leonessa foi canonizado em 1737 por Bento XIV e sua festa é celebrada em 14 de fevereiro; Pio IX o proclamou patrono das missões da Turquia. Finalmente, São Pedro Mavimenus, é celebrado pela Igreja no dia 21 de fevereiro. Quanto ao Rei São Luis, seu exemplo muito conhecido é uma demonstração ideal dos ensinamentos de São Pio X, também canonizado. Se João Paulo II é realmente um santo, todos esses santos se enganaram grandemente e deram à Igreja não um exemplo de autêntica santidade, mas um escândalo de intolerância e fanatismo. É impossível evitar este dilema.
 
A única forma de evita-lo é tirar uma dupla conclusão: Karol Wojtyla não pode ser canonizado e o ato que proclamaria sua santidade perante e Igreja só poderia ser uma falsa canonização.
 
FONTE: Distrito americano da FSSPX
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[1] A Igreja Católica e as comunidades ortodoxas “reconhecem uma à outra como Igrejas Irmãs, corresponsáveis por resguardar a única Igreja de Deus, em fidelidade ao plano divino, e num modo completamente especial em relação à unidade.” João Paulo II, Declaração Conjunta assinada no Vaticano pelo Papa João Paulo II e o Patriarca Bartolomeu I, 29 de junho de 1995 (DC no. 2121, p. 734-735).
 
[2] O Papa e o líder dos anglicanos agradecem a Deus “que em muitas partes do mundo anglicanos e católicos, juntos num só batismo, reconheçam uns aos outros como irmãos e irmãs em Cristo e expressem isso por meio de orações conjuntas, ação e testemunho comuns.” Declaração Conjunta de João Paulo II e o Arcebispo de Cantuária, representando a Comunhão Anglicana, assinada em 5 de dezembro de 1996. (DC no. 2152, pp. 88–89).
 
[3] “O espaço espiritual compartilhado supera muitas barreiras confessionais que ainda nos separam, no limiar do terceiro milênio. Apesar das divisões, somos capazes de nos apresentar num caminho de crescente união em oração perante Cristo, percebemos cada vez mais quão pequeno é o que nos divide em comparação com o que nos une.” João Paulo II ao discursar perante o Dr. Christian Krause, presidente da Federação Luterana Mundial, 9 de dezembro de 1999 (DC no. 2219, p. 109).
 
[4] “Sim, com minha voz, a Igreja Católica (...) reconhece o valor do testemunho do vosso povo.” João Paulo II, em discurso à comunidade judaica de Alsácia, 9 de outubro de 1998 (DC no. 1971, p. 1027).
 
[5] “Acredito que nós, cristãos e muçulmanos, devemos reconhecer com alegria os valores religiosos que temos em comum e agradecer a Deus. (...) Cremos que Deus será um juiz misericordioso no final dos tempos e esperamos que, depois da ressurreição, Ele esteja satisfeito conosco, e nós com Ele.” João Paulo II, em discurso por ocasião do encontro com jovens no estádio de Casablanca, 18 de agosto de 1985 (DC no. 1903, p. 945).
 
[6] O Estado não pode reivindicar autoridade, direta ou indireta, sobre as convicções religiosas de uma pessoa. Não pode se arrogar o direito de impor ou de impedir a profissão ou a prática pública de religião por uma pessoa ou comunidade.” João Paulo II, mensagem na celebração do Dia Mundial da Paz, 8 de dezembro de 1987 (DC no. 1953, p. 2)