30/09/2010

Carta aberta a Dom Demétrio Valentini – Bispo Diocesano de Jales

 

Nota do blog – Importante carta de Diogo Ferreira; a triste posição de um leigo católico que se vê obrigado a corrigir um Bispo. Nossa Senhora de Aparecida, livrai o Brasil do flagelo do comunismo!

Excelência,

Sua Benção!

Como leigo Católico residente na circunscrição eclesiástica da Diocese de Jales venho respeitosamente tecer alguns comentários que reputo importantes acerca de um dos últimos artigos de Vossa Excelência, intitulado “Pela liberdade de consciência”.

No referido texto Vossa Excelência parece reagir aos pronunciamentos de Bispos e Padres, secretarias e institutos religiosos que ultimamente têm conclamado os fiéis católicos a não contribuírem com o voto à candidatura de Dilma Roussef à Presidência da República. Tanto assim que em meio a uma ode à liberdade de consciência Vossa Excelência pontua que se difundem “cartas procedentes de sub-comissões, de sub-regionais, ou cartas individuais de determinados bispos ou padres, e pretendem invocar sobre estes escritos a autoridade de toda a instituição, quando o Presidente da CNBB, D. Geraldo Lyrio Rocha já esclareceu, enfaticamente, que a CNBB não apóia nenhum partido e nenhum candidato, nem igualmente proíbe nenhum partido ou candidato.”, aludindo aos vídeos e textos que se lançaram recentemente, como o de Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, Dom Alberto Taveira Correia, Dom Manoel Pestana, ou a nota da Comissão Episcopal representativa do Conselho Episcopal Regional Sul 1 da CNBB entre outros nobilíssimos Bispos e Padres.

Pode-se confirmar que o intento era mesmo o de defender mais especialmente a legitimidade de voto em Dilma Roussef observando o texto seguinte, publicado alguns dias depois no mesmo site da Diocese, em que se lê sob o título “o fato relevante” que, entre outras coisas “Esta autonomia frente à grande imprensa, se traduz também em liberdade diante das recomendações de ordem autoritária. Elas também já não influenciam. Ao contrário, parecem produzir efeito contrário. Quando (sic) mais o bispo insiste, mais o povo vota contra a opinião do bispo.”

Diante de tudo isso, sinto-me no dever moral de lançar algumas ponderações atinentes ao assunto, o que faço primeiramente a Vossa Excelência, mas também a tantos mais quantos tiverem lido os supracitados artigos, daí esta carta aberta.

O dever de todo católico de colaborar - conforme suas condições e estado de vida - ao Bem Comum na Polis é algo deveras relevante, e em vista de que “a Graça não destrói, mas aperfeiçoa a natureza[1]”, esse mesmo católico encontra na Sã Doutrina e na disciplina da Igreja uma apurada e renovada força para cumprir com seus deveres de cidadania, bem como fazer valer seus direitos.

Assim é que, os problemas de ordem natural em crivo político e econômico, enquanto estão sob aspectos técnicos, carregam consigo uma maior liberdade decisória quanto a maneira de resolvê-los.

Entretanto, a face política dos problemas de ordem natural pode ter, e regularmente têm, um outro aspecto além do meramente técnico, trata-se do sobressalente aspecto moral, sobre o qual deve a Igreja instruir os fiéis, como múnus próprio entregue por Cristo aos Apóstolos e seus sucessores.

Por isso é que se lê na Encíclica Immortale Dei, de Leão XIII, a explicitação do que sempre fora crido:

“Destarte, tudo o que, nas coisas humanas, é de certo modo sagrado, tudo o que pertence à salvação das almas ou ao culto de Deus, que seja assim por natureza própria ou, ao invés, se entenda como tal pela causa a que se refere, tudo isso abrange do poder e arbítrio da Igreja” (Denzinger-Hunermann, 2007, p. 678).

É ainda mais clara a Instrução Libertatis conscientia (título bem a calhar ao assunto em pauta), que sob o reinado do Papa João Paulo II e retomando as grandes chaves de leitura da Doutrina Social da Igreja, asseverou:

“Nesta missão, a Igreja ensina o caminho que o homem deve seguir neste mundo para entrar no Reino de Deus. Por isso, sua Doutrina abarca toda ordem moral e, particularmente, a justiça, que deve regular as relações humanas. [...] Quando propõe sua doutrina acerca da promoção da justiça na sociedade humana ou exorta os leigos ao engajamento, segundo sua vocação, a Igreja não excede seus limites [...] Na mesma linha, a Igreja é fiel à sua missão, quando denuncia os desvios, as servidões e as opressões de que os homens são vítimas; quando se opõe às tentativas de instaurar, seja por oposição consciente, seja por negligência culposa, uma vida social da qual Deus esteja ausente, enfim, quando exerce seu julgamento a respeito de movimentos políticos que pretendem lutar contra a miséria e a opressão, mas são contaminados por teorias e métodos de ação contrários ao Evangelho e ao próprio ser humano.” (Idem, p. 1122)

Ora, o pedido de muitos Bispos e Padres para que os fiéis não incidam no erro de votar em candidatos que, pessoalmente ou por força do partido, defendam a legalização do aborto é totalmente justificado pela própria hediondez do crime que não pode ter chancela governamental sem grave prejuízo a toda a nação.

O partido dos trabalhadores conseguiu evidente destaque negativo nessa seara ao encaminhar, em 2004, um relatório ao Comitê de Direitos Humanos da ONU que afirma o compromisso do governo do PT na luta em “revisar a legislação repressiva” contrária ao aborto no Brasil; o governo Lula, publica ainda em 2004, o plano nacional de políticas para mulheres, em que apresentava como algo de ação prioritária no item 36.1 do referido documento “revisar a legislação punitiva” do aborto, tais diretrizes conforme os dizeres do próprio documento oficial foram aprovados pelos ministros de estado e pelo presidente da República; em seguida, o governo por meio de sua base parlamentar na câmara dos deputados, lutou pela aprovação do projeto de lei nº 1135/91, de autoria dos ex deputados petistas Eduardo Jorge e Sandra Starling, que liberaria o aborto no país a ser financiado pelo governo com o dinheiro dos impostos, através do sistema único de saúde, e sem qualquer restrição; a rejeição do projeto de lei retro indicado ocorreu somente em 9 de julho de 2008 com parecer em contrário da Comissão de Constituição e Justiça, entretanto, para que não houvesse o arquivamento do mesmo, o deputado do PT José Genoíno apresentou o recurso 201/2008 solicitando a liberação do projeto para ser votado em plenário, apesar dos pareceres contrários de duas comissões internas da câmara, assim o deputado pretende que o projeto seja aprovado no momento oportuno, o que vale dizer, depois de manobras e visível maioria com mínimo legalmente possível de quorum.

Agora, o mais aviltante ainda está por vir: em 21 de dezembro de 2009, o governo Lula sanciona o Plano Nacional de Direitos Humanos, que apresenta como objetivo estratégico (item III) o apoio à aprovação de projeto de lei que descriminalize o aborto, além de defender projetos que equiparem ao casamento a união homossexual e propostas de retirada obrigatória de todos os símbolos religiosos de qualquer repartição pública. Isso também é reafirmado em 22 de fevereiro de 2010, em que o site oficial do PT publica a Resolução sobre as diretrizes de programa 2011 a 2014 (portanto a ser implantada com a eleição de Dilma Roussef, o apoio ao aborto é especialmente citado na diretriz nº 57 do documento).

Em 16 de Julho de 2010, um ministro e uma chefe de secretaria do governo, e “companheiros” de Dilma Roussef, assinaram em nome do Estado Brasileiro o denominado “Consenso de Brasília”, em que se assume o compromisso pela legalização do aborto (item 6, alínea f).

Dilma Roussef, em recente entrevista filmada aos editores da revista “istoé” (que pode ser vista na íntegra quanto ao tema, até mesmo pelo youtube), se reportou ao aborto dizendo que o fato negativo do mesmo é apenas o de provocar dores na mulher, disse ela: “além de ser uma agressão ao corpo da mulher, dói... eu imagino que a mulher sai de lá baqueada (sic)”, nenhuma palavra fora dita sobre o sofrimento e morte da criança no ventre, o que, além de tudo, mostra uma cruel insensibilidade.

O fato emblemático, entretanto, é outro, pois “nunca antes na história desse país”, deputados tinham sido perseguidos e forçados a sair de um partido mediante processo disciplinar, por terem se mostrado contrários à legalização do aborto. Foi talvez uma das maiores façanhas ocorridas durante o governo petista: os deputados federais Luiz Bassuma e Henrique Fontes sofreram processo disciplinar no PT e foram punidos pelo partido por serem contrários à legalização do aborto! (de fato, o PT não é lugar para pró-vida). Isso fora possível, pois, no PT o aborto é programa de partido e fora institucionalizado como meta em Congresso Nacional partidário (definida a legalização do aborto a ser realizado nos hospitais públicos sem restrições, pelo III Congresso Nacional do PT, em 2007, entre outros anteriores e com confirmação posterior do Congresso de número IV, de 2009).

Tendo diante de si todas essas amostras de desrespeito ao bem natural mais fundamental que é a vida, em vista ainda da pretensão do PT de que esse bem mais fundamental possa ser diretamente atacado e tolhido através do aborto financiado pelo Estado via SUS, os religiosos conscientes e zelosos de seu dever opuseram-se a tal plano que “clama aos céus por vingança” conclamando os católicos a não contribuírem nessa tenebrosa empreitada.

Pois quem colabora com o pecado, mesmo por omissão, é réu da mesma culpa e prestará contas a Deus, assim ensina o Catecismo da Igreja. Muito claramente expressa essa lição do catecismo o Padre Marcelo Tenório:

“colaborar com o pecado grave, nem que seja por omissão é comete-lo também. O aborto é pecado grave que brada aos céus por justiça. Votar em qualquer candidato que o apóia é ser réu diante de Deus, é ficar com as mãos sujas do sangue dos inocentes que será derramado mais ainda se esta lei iníqua um dia for aprovada.”[2]

Afinal, se lê na Lumen Gentium que tanto os clérigos quanto os leigos, por óbvio, “se devem guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã, já que nenhuma atividade humana, nem mesmo em assuntos temporais, se pode subtrair ao Domínio de Deus.” (Idem, p. 958. parágrafo 36 do doc.).

Para atacar os prelados que atacaram o PT, Vossa Excelência repetidamente lançou mão em seu texto da expressão “liberdade de consciência” – com a qual, segundo Vossa Excelência, os católicos poderiam votar sem receio em Dilma Roussef.

Ocorre que a liberdade de consciência que Vossa Excelência evoca não se parece nesse ínterim com a sã liberdade católica, pois verdadeira liberdade não é aquela que se satisfaz em ser livre, mas sim aquela que se vale do ser livre para abraçar e prover a Verdade e o Bem.

Ou, noutras palavras, não se trata de obnubilar a consciência para usa-la de maneira contrária ao Bem sob a bandeira da liberdade, a isso melhor seria chamar libertinagem ou arbitrariedade

A liberdade é um bem, mas é um bem “meio”, e não um bem “fim” em si mesmo, ela deve estar a serviço da Verdade e do fim último do ser humano, Este sim Bem Absoluto, Deus mesmo.

Vale mais uma citação de Leão XIII, o grande Papa da Doutrina Social da Igreja, dessa vez na Encíclica Libertas Praestantissimum:

“Em conseqüência disso, numa verdadeira sociedade humana, a liberdade não consiste em cada um fazer o que bem entende,... mas nisto, que, por meio das leis civis, se possa viver mais facilmente de acordo com as prescrições da Lei Eterna.” (Ibidem, p. 691).

Do contrário a liberdade se torna auto destrutiva e destruidora de seu fundamento terreno participado, o ser humano.

Desta forma a liberdade não tem a prerrogativa de tudo legimitar, nem foros absolutos.

Diga-se ainda que, nenhum dos clérigos que apontaram o dever moral do católico de não contribuir com a legalização do aborto, irá porventura coagi-los ou obriga-los por intermédio da força, isso sequer é factível no sistema de voto secreto e muito menos fora esse o intento que manifestaram os reverendíssimos religiosos, eles apenas alertaram sobre o grave problema ético que envolve a questão. De fato, a possibilidade de votar em partidos pró-aborto se mantém, por isso mesmo é que devemos reafirmar ao católico que não deve anuir nesse projeto contra a vida, ou seja, o dever de não votar nesses partidos é decorrência lógica da posição católica contra o aborto, é dever por coerência cristã... não uma obrigação imposta por armas e avessa ao exercício da liberdade de consciência, mas se trata exatamente de fomentar o uso consciencioso da liberdade de maneira autenticamente cristã.

Por tudo isso é que o católico não deve votar no PT e em políticos pessoalmente favoráveis ao aborto, pois o tema atinge o bem natural maior – que é a vida – daqueles mais indefesos, os nascituros.

Defender posição em sentido contrário e votar em candidatos legalizadores do aborto é se tornar ipso factum cúmplice (seja em maior ou menor grau) do assassinato de inocentes por nascer, pois a Santa Igreja Católica Apostólica Romana sempre proibiu o aborto e isso pode ser atestado historiograficamente já pelos documentos patrísticos.

Desde o 1º Catecismo Cristão (Didaché) que data do ano 90-100, está escrito ‘não matarás criança por aborto, nem criança já nascida’ [...] Em 220, Tertuliano diz uma frase genial: ‘É homem o que deve tornar-se homem, tal como o fruto inteiro está contido na semente’ (apologética, cap.9)[3].

A condenação foi reafirmada em vários Concílios no correr dos séculos: Concílio de Ancara (ano 314, cânone 20); Concílio de Lérida (ano 524, cânone 2); Concílio de Constantinopla (ano 629, cânone 91); Concílio de Worms (ano 829, cânone 35). Também através de Bulas: Ephenatom (ano 1588), Sedes Apostólica, do Papa Gregório XIV (ano 1591) e Sedes Apostólica do Papa Pio IX (ano 1869) e assim, sempre, no exercício Perene do Magistério Eclesial[4].

De quem lhe agradece imensamente por ter ministrado meu Sacramento da Crisma, cuja Graça Divina comunicada me fez - ainda que muito pecador - um soldado do Senhor dos Exércitos, subscrevo-me suplicando que reveja vossa posição acerca do que escrevera.

Ad Maiorem Dei Gloriam.

Diogo Ferreira.


[1] AQUINO, Santo Tomás. Summa Theologica, I, q. I, art. 8, ad. 2.

[2] Retirado de http://www.acidigital.com/noticia.php?id=20210

[3] MARTINS, Roberto Vidal da Silva. Aborto no direito comparado: uma reflexão crítica. In: A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica.1999 p.409.

[4] Idem. p.409 e 410.

28/09/2010

Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo

Caro Professor Angueth, gostaria que me esclarecesse o que ou como seria o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, como o senhor citou.

Desde já agradeço. Leonardo.

Caro Leonardo,

Sugiro fortemente que você leia a Encíclica de Pio XI, a Quas Primas, pela qual é instituída a festa de Cristo Rei. O Papa Pio XI discorre longamente sobre o Reinado de Cristo. Abaixo, transcrevo um trecho da encíclica, que considero oportuna para os dias em que vivemos.

Em JMJ.

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Reino universal e social (Encíclica Quas Primas, Documentos de Pio XI, Editora Paulus, 2004)

Por outro lado, erraria gravemente aquele que negasse a Cristo-homem o poder sobre todas as coisas humanas e temporais, posto que o Pai Lhe conferiu um direito absoluto sobre as coisas criadas, de forma tal que todas estão submetidas à sua vontade. Não obstante isso, enquanto viveu na terra absteve-se inteiramente de exercitar este poder, e assim como então desprezou a posse e o cuidado das coisas humanas, assim também permitiu, e continua permitindo, que os possuidores se utilizem delas. Acerca disso, bem se adaptam essas palavras: “Não tira o reino terreno aquele que dá o reino eterno dos céus”. [Hino Crudelis Herodes, no Ofício da Epifania.] Portanto, o domínio do nosso Redentor abrange todos os homens, como afirmam estas palavras do nosso predecessor, de imortal memória, Leão XIII, que aqui nós fazemos nossas: “O reino de Cristo não se estende somente aos povos católicos, ou àqueles que, regenerados na fonte batismal, pertencem, por direito, à Igreja, ainda que opiniões erradas os afastem ou a divergência os divida da caridade; mas abrange também todos aqueles que não possuem a fé cristã, de forma que todo o gênero humano está sob o poder de Jesus Cristo.” [Enc. Annum sacrum, 25 de maio de 1899.] Não há diferença entre indivíduos e sociedade doméstica e civil, pois os homens, unidos em sociedade, não estão menos sob o poder de Cristo do que o estejam os homens particulares. Somente ele é a fonte da salvação privada e pública; “Não há salvação de nenhum outro, nem sob o céu foi dado outro nome aos homens, pelos quais possamos ser salvos” (At 4,12). Somente Ele é autor da prosperidade e da verdadeira felicidade, quer para cada cidadão, quer para os Estados; “Pois o bem-estar da sociedade não tem origem diferente daquela do homem, enquanto a sociedade outra coisa não é senão a concórdia entre multidão de homens.”[Santo Agostinho, Ep. Ad Macedonium, c. III.] Não recusem, portanto, os chefes das nações prestar testemunho público de reverência e de obediência ao império de Cristo junto com seus povos, se quiserem, com a incolumidade do seu poder, o incremento e o progresso da pátria. Com efeito, são bem adaptadas e oportunas no momento atual aquelas palavras que no início de nosso pontificado escrevemos sobre a falência do princípio da autoridade e do respeito ao poder público: “Com efeito, assim nos queixávamos afastado Jesus Cristo das leis e da sociedade, a autoridade aparece sem dúvida como derivada não de Deus, mas dos homens, de forma que também o fundamento dela cambaleia; afastada a causa primeira, não há motivo pelo qual um deva mandar e o outro obedecer. Disso é que derivou uma perturbação geral da sociedade, a qual já não se apóia sobre seus eixos cardeais naturais.”[Enc. Ubi arcano.]

23/09/2010

A primeira cabeça visível da Igreja depois da Ascensão de Cristo

Do livro A Igreja PrimitivaA Igreja nos tempos dos Apóstolos,

Rev. D. I. Lanslots. O.S.B

Tradução: Guilherme Ferreira Araújo (Do blog Caminho para Roma)

Nota do blog: Guilherme gentilmente me envia este extraordinário texto, em tradução primorosa, sobre o Primado de Pedro, em função das muitas discussões aqui ocorridas com alguns de meus leitores protestantes. Ficam aí rebatidos um a um os argumentos contrários ao Primado de Pedro.

São Pedro é chamado de Príncipe dos Apóstolos, e assim justamente, porque ele foi designado por Cristo para ser a cabeça visível da Igreja em preferência diante dos outros Apóstolos. A supremacia no colégio dos Apóstolos e no governo da Igreja foi prometida a Pedro e apenas a ele.

A primazia de Pedro é uma das verdades reveladas que foram registradas com mais clareza na Bíblia. Com relação a esse exemplo, há muita importância num nome. O nome de Pedro era Simão anteriormente. Para deixar claro que as palavras da promessa aplicam-se apenas a Simão, Cristo deu-lhe o nome de Pedro (Mat. XVI. 17-19). Quando Cristo falou da pedra sobre a qual Ele construiria Sua Igreja, designou Pedro; Cristo, falando em aramaico, chamou-o de Kephas, querendo dizer tanto Pedro como pedra (Jo. I. 42). Em aramaico, e também em francês, a mesma palavra designa uma pessoa e uma pedra. Nas palavras da promessa a Pedro, a metáfora da fundação é explicada pela metáfora das chaves (Mat. XVI. 18-19). Cristo pretendia recompensar a magnífica profissão de fé da parte de Pedro com um privilégio igualmente esplêndido. Apenas ele faz a profissão: apenas ele recebe a recompensa. Apenas Pedro é chamado de abençoado, porque apenas ele foi favorecido pelo Pai com uma revelação especial. A primazia prometida a Pedro diz respeito à própria constituição e governo da Igreja. Ele não é chamado de fundação da Igreja porque trabalhou mais duro e com maior constância do que os outros, mas para que ele possa provar que é superior a todos os ataques. Nosso Senhor diz claramente: “As portas do Inferno não prevalecerão sobre ela”, isto é, contra a Igreja construída sobre Pedro — a pedra. Essa fundação é tão essencial para a Igreja quanto o é a fundação para uma casa. A fundação vem em primeiro lugar no processo de construção. Se nós considerarmos o início da Igreja, todos aqueles que primeiramente ensinaram as doutrinas da Igreja e aqueles por meio dos quais a Igreja foi difundida são, em certo sentido, fundações dela. Com relação ao ensino, os Apóstolos e os Profetas são chamados de fundação da Igreja (Ef. II. 20). Quanto à propagação, os Apóstolos são chamados de fundações (Apo. XXI. 14). Fundação, todavia, significa mais propriamente o suporte de toda a construção; nesse sentido, apenas Pedro é a fundação; a Igreja deve sua firmeza a Pedro como fundação, de modo que ela não trema de forma alguma por qualquer poder. Nenhum outro Apóstolo é chamado de Pedro-pedra — e, portanto, nenhum outro sustenta toda a igreja como uma pedra.

Cristo, ao prometer a Pedro a primazia da jurisdição, também usa outro símbolo — o das chaves (Mat. XVI. 19). As chaves expressam o poder de administrar e governar. O símbolo das chaves, assim como o da pedra-alicerce, prova que Pedro deveria ser a cabeça e o príncipe dos Apóstolos. A imagem expressa que o poder supremo na Igreja foi prometido a Pedro, ao qual devem se sujeitar todos os outros que possuem chaves. Mais tarde, quando Cristo dá aos outros Apóstolos o poder de ligar e desligar, Ele não usa a metáfora das chaves (Mat. XVIII. 18). Eles realmente tinham o poder de abrir e fechar o céu, mas esse poder não é supremo tal como seria indicado pelas chaves.

O privilégio de Pedro não consistiu em ter ele sido o primeiro a abrir os portões do céu para os judeus (At. II. 34-41) e os gentios, porque isso aconteceu apenas uma vez e não poderia se repetir, assim como a América não poderia ter sido descoberta duas vezes. Parece ridículo imaginar que Nosso Senhor fez a promessa solene a Pedro simplesmente para indicar que ele exerceria o poder que lhe fora confiado pouco tempo antes dos outros Apóstolos.

A primazia do governo é prometida a Pedro do mesmo modo singular que o poder de ligar e desligar. Ligar não significa apenas declarar que algo é ilícito, mas também proibir; desligar não é apenas declarar que algo é lícito, mas também permiti-lo. Nosso Senhor, portanto, indica claramente o poder de governar mais completo.

O conhecido adquirido divinamente e a confissão da divindade de Cristo distinguiram Pedro dos outros Apóstolos; não haveria nenhuma diferença na recompensa se o mesmo poder tivesse sido prometido a todos. As ilustrações usadas por Cristo mostram claramente que um poder maior é dado a Pedro. Mas Cristo não disse a Pedro: “tira-te da minha frente, Satanás”? (Mat. XVI. 23). Quando Pedro desempenhou o papel de um tentador a primazia lhe foi prometida, mas não concedida. Os próprios Apóstolos podem ter pensado que por meio daquelas palavras a promessa tinha sido afetada, mas eventos subsequentes provam que tal não foi o caso. Durante o tempo em que Cristo viveu com Seus Apóstolos de um modo visível, Pedro, embora sendo o primeiro dentre eles, não podia clamar obediência deles. As prerrogativas conferidas a Pedro mostram que em algum dia ele seria sua cabeça visível. Cristo impôs sobre ele o nome de Pedro; ele não pode ter sido dado em vão; ele deve significar algum evento futuro. No Antigo Testamento, o nome divinamente dado a Abraão indicava o que deveria acontecer com ele. Simão, filho de João, é chamado de Pedro, a pedra sobre a qual a Igreja deverá ser construída; o que a fundação é para uma construção também é a cabeça para uma sociedade. Cristo é a pedra angular daquele edifício espiritual; Pedro será de uma maneira visível, como vigário de Cristo, o que Cristo foi na instituição e permanecerá para sempre de um modo invisível.

Aquilo que Pedro fora com relação a pegar peixes, Cristo prometeu que ele seria com relação a pegar homens; Pedro havia sido o principal agente na pesca miraculosa. Na narrativa do Evangelho, o oceano é uma imagem do mundo; os peixes, dos homens, e os pescadores, dos Apóstolos. Ambos Simão e André escutam dos lábios do Mestre: “eu vos farei pescadores de homens (Mat. IV. 19)”. No caso de Pedro, Cristo fez uma promessa especial: “não tenhas medo; desta hora em diante serás pescador de homens” (Lc. V. 10). Simão nos é apresentado como o chefe nesse grupo de pescadores; sua barca está escolhida, ele é ordenado a lançar nas profundezas e deixar que caia a rede. Ao ver o milagre, Pedro caiu diante dos pés de Jesus; os outros Apóstolos são tratados como inferiores; Jesus dirige-se apenas a Simão. Se essa pesca material é uma imagem da pesca espiritual, e se a promessa de Cristo deve ser cumprida, Pedro deve agir como cabeça e chefe na pesca espiritual e entre os pescadores de homens.

Cristo roga particularmente para que a fé de Pedro não enfraqueça, a fim de que ele confirme seus irmãos na fé após a Ascensão de Cristo. A particular missão visível de Cristo entre Seus Apóstolos é transferida para Pedro. Cristo disse para ele: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo; mas eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça: e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Lc. XXII. 31, 32). Todos são desejados, mas Cristo roga por um. Rogar por um foi suficiente, se todos foram confirmados naquele um e se todos se sujeitaram a ele; no período de perigo, Cristo confiou todos eles aos cuidados de Pedro. Cristo preparou Pedro mais particularmente para a responsabilidade que depositou nele. Se Pedro deve assumir o lugar de Cristo, cabeça visível da Igreja, ele deve conhecê-Lo mais intimamente e amá-Lo mais ardentemente, porque em sua capacidade oficial ele é, até certo ponto, um e o mesmo com seu Chefe. Pedro foi o companheiro inseparável de Cristo. Ocasionalmente, Cristo levava Pedro, Tiago e João com Ele; muitas vezes, apenas Pedro era escolhido. Cristo sobe na barca de Pedro; ele é ordenado a arremessar um anzol no mar e a pegar uma moeda da boca do peixe que seria pego. A mesma taxa é paga por Cristo e por Pedro (Mat. XVII. 26). Pedro esteve com Cristo sobre a água (Mat. XIV. 29). Esse companheirismo íntimo deve ter impressionado os outros Apóstolos e preparou-os para o reconhecimento do primado prometido a Pedro. Ainda quando Cristo estava na terra, Pedro agiu muitas vezes como líder dos Apóstolos. Em nome deles ele se dirigiu ao Mestre: “Senhor, para quem havemos nós de ir?” (Jo. VI. 69). “Senhor, dizes esta parábola só para nós ou para todos?” (Lc. XII. 41). “Simão e os seus companheiros foram procurá-Lo” (Mc. I. 36). Em Lucas VIII, 45 e IX, 32 a mesma expressão ocorre. Essa maneira de falar indica um líder, um chefe. Sempre que os nomes dos Apóstolos são dados Pedro sempre encabeça a lista. Isso não é assim porque ele era o mais velho ou o primeiro a ser chamado, porque sob ambos os aspectos André era o primeiro; não poderia haver outro motivo a não ser a sua dignidade. Quando Mateus dá os nomes dos doze Apóstolos (X, 2), acrescenta claramente: o primeiro, Pedro. Quando Nosso Senhor censura Seus Apóstolos por sua discussão quanto a quem seria o maior, Ele condena a dominação e a ostentação, mas não a dignidade e a autoridade. Dificilmente podemos supor que tal discussão poderia ter ocorrido, a menos que os Apóstolos tivessem entendido, das palavras de Cristo, que eles não seriam iguais, e que Pedro era preferido em relação aos demais.

Depois de Sua Ressurreição, Cristo dá as provas de que a negação de Pedro não fez com que Cristo anulasse a promessa. No dia da Ressurreição de Cristo, Anjo disse às mulheres: ide, dizei a Seus discípulos e a Pedro (Mc. XVI, 7). Pedro é mencionado pelo nome apenas para que todos possam entender que seu pecado não modificara os planos de Cristo.

A Escritura registrou quando o prometido primado foi de fato concedido a Pedro. Cristo ressuscitado apareceu aos Seus discípulos no lago de Tiberíades, e a seguinte conversa segue-se entre Nosso Senhor e Pedro: “Simão, filho de João, amas-Me mais do que estes? Ele respondeu: Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo. Jesus disse-lhe: Apascenta Meus cordeiros. Voltou a perguntar pela segunda vez: Simão, filho de João, amas-Me? Ele respondeu: Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo. Jesus disse-lhe: Apascenta as Minhas ovelhas. Pela terceira vez disse-lhe: Simão, filho de João, amas-Me? Pedro ficou triste porque, pela terceira vez, lhe disse: Amas-Me?, e respondeu-Lhe: Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que Te amo. Jesus disse-lhe: Apascenta as Minhas ovelhas” (Jo. XXI. 15-17). É evidente que a promessa de Cristo teve de se cumprir em algum momento; as palavras acima indicam claramente esse cumprimento. Pedro é incumbido de alimentar todo o rebanho, isto é, a Igreja universal. Cristo estava prestes a deixar o mundo e a voltar para o céu. Era oportuno que a suprema cabeça visível da Igreja fosse apontada tão claramente quando lhe fora prometido. Isso não poderia ter sido feito com palavras mais claras do que com aquelas que lemos no Evangelho. Um grupo de pescadores ofereceu a ocasião para a promessa e seu cumprimento.

As palavras citadas acima mostram claramente que foi confiado a Pedro — e apenas para ele — um dever especial; esse dever não poderia ser outro senão o poder supremo como cabeça dos Apóstolos, e de toda a Igreja. Alimentar os cordeiros e as ovelhas é o mesmo que governar. Ele é feito pastor do rebanho, do qual são membros até mesmo os Apóstolos. Eles proferirão a boa-nova a todas as nações; eles terão autoridade sobre todos; Pedro sozinho será seu superior.

Pedro compreendeu sua missão; os Apóstolos a compreenderam, e seus atos o confirmam. Pedro preside a eleição de um sucessor para Judas (At. I. 15). Pedro é o primeiro a pregar o Evangelho. A eficácia de suas palavras e o dom dos milagres reúne os primeiros convertidos no rebanho. Pedro exerce o papel de chefe no trabalho visitando todos (At. IX. 32). Pedro é o primeiro a ser advertido — numa visão — de que havia chegado o momento de receber os gentios na Igreja. O grande Apóstolos dos gentios, São Paulo, tendo sido ensinado pelo próprio Cristo, não precisava da instrução de Pedro ou dos outros Apóstolos e, no entanto, foi prestar honras a Pedro e permaneceu com ele por duas semanas. Dentre os outros Apóstolos, ele não tinha visto ninguém senão Tiago, que então era bispo de Jerusalém. Pedro agiu como cabeça da Igreja no concílio dos Apóstolos em Jerusalém, e foi considerado como tal pelos Apóstolos; Pedro falou e toda a multidão manteve-se calma e aprovou sua decisão; Paulo e Tiago falam, mas apenas para sustentar o juízo infalível de Pedro e matéria de fé e moral (At. XV. 7-12). Cristo deu à Igreja uma cabeça visível na pessoa de Pedro para produzir e preservar sua unidade. Ao fazer de Pedro a fundação, Ele fez dele seu governante supremo; ao dar a ele as chaves do reino do céu Ele fez dele o dispensador supremo; ao confiar todo o rebanho aos seus cuidados Ele fez dele o pastor chefe. Pedro é de tal modo designado, que ele pode fazer de maneira visível o que Cristo faz por Sua Igreja de maneira invisível. Já que a Igreja deve durar até o fim dos tempos tal como Cristo a estabeleceu, então sempre deve haver uma cabeça visível.

As considerações acima mencionadas são muito importantes, pois sem elas seria impossível formar uma idéia da Igreja tal como Cristo a fundou.

Alguns acontecimentos dos dias dos quais nós escrevemos, se mal interpretados, lançam uma sombra sobre o primado de Pedro.

O primeiro dentre eles é a missão de Pedro na Samaria. O diácono Filipe, quando foi expulso de Jerusalém na perseguição que se seguiu à morte de Santo Estevão, foi para o norte e converteu para a fé vários samaritanos. Quando os Apóstolos, que permaneceram em Jerusalém, ouviram falar disso, enviaram até eles Pedro e João (At. VIII. 14). Podemos argumentar, a partir desse fato, que o colégio dos Apóstolos era superior a Pedro? Devemos distinguir uma missão por via da autoridade de uma missão por requerimento. Se Pedro foi enviado por um superior, devemos admitir que Pedro não era o superior. Para compreender como ele foi enviado, devemos nos lembrar de sua posição tal como explicada acima. A Bíblia prova abundantemente que todas as missões não implicam inferioridade. Qual cristão admitiria que o Filho é inferior ao Pai porque Aquele foi enviado a este mundo por Este? Nós lemos no livro de Josué (XXII) que os filhos de Israel enviaram em uma missão o sacerdote Fineias e outros dez, cada um deles chefe de uma das tribos. Nós lemos novamente (At. XV) que quando a questão da circuncisão fora levantada pelos gentios convertidos, os fieis de Antioquia enviaram Paulo e Barnabé para consultar os Apóstolos em Jerusalém. O grande historiador judeu Josefo registra que os judeus enviaram seu sumo sacerdote Ismael, em uma missão, ao imperador Nero em Roma. Por que os Apóstolos pediram Pedro para ir, quando outros Apóstolos poderiam ter ido da mesma forma? O texto sagrado não dá as razões, mas nós podemos supor que o antigo ressentimento entre os samaritanos e os judeus exigiu a presença do chefe dos Apóstolos para superar toda resistência e objeções de cada lado. É como na ordem física; quando mais os vários elementos tendem repelir-se mutuamente, maior deve ser o poder no princípio para obter coesão. Outra razão pode ter sido que a presença do chefe foi requerida para compensar os esforços nefandos de Simão Mago. Simão precedeu Filipe na Samaria e anunciou a si mesmo como alguém grande (At. VIII). Simão foi um dos convertidos de Filipe; mas seu desejo de comprar o poder de dar o Espírito Santo mostrou que não se podia confiar nele. Seu coração não era justo aos olhos de Deus. Alguém dotado de autoridade suprema foi solicitado para paralisar as seduções desse supremo impostor. Supondo, todavia, que Pedro fora por meio de solicitação, por que João foi enviado com ele? João certamente não era o superior dos outros Apóstolos. Esse não é o primeiro caso em que Pedro e João foram juntos. Eles aparecem juntos na cura do homem coxo e, depois disso, diante do sinédrio; Pedro representa o papel principal, até mesmo quando está na companhia de João. Longe de provar qualquer coisa contra o primado, a missão na Samaria o confirma.

Outra objeção pode ser encontrada na repreensão dirigida a Pedro pelos judeus recém-convertidos em Jerusalém, depois de ele ter recebido os gentios na Igreja sem circuncisão: “Tu entraste em casa de incircuncisos e comeste com eles” (At. XI. 3). Pedro explica-lhes a visão de Cornélio e a sua. Pedro é repreendido; ele se submete humildemente e, portanto, ele não era o chefe; essa conclusão representa boa lógica? Quem são os queixosos neste caso? Não os Apóstolos, mas os novos convertidos do judaísmo, os quais não haviam abandonado suas visões de superioridade em relação aos gentios. Pedro é inferior a eles? A repreensão dirigida a ele foi uma repreensão no sentido detestável da palavra? Isso não fica claro a partir do texto. Supondo que ela tivesse sido tomada de forma muito séria, a rebelião provaria alguma coisa contra o primado? Isso é apenas uma repetição do que acontecera com Aarão (Num. XVI). Ele havia sido designado por Deus como o sumo sacerdote e, no entanto, houve alguns que com Coré, Datã e Abiron contestaram e cobiçaram a dignidade para eles mesmos. Mas a objeção ao feito de Pedro foi tão séria que seus acusadores, depois de escutarem sua explicação, mantiveram-se calmos e glorificaram a Deus dizendo: “Logo, Deus concedeu também aos gentios o arrependimento, a fim de que tenham a vida” (At. XI. 18). Você pode dizer ainda: de qualquer forma, Pedro teve de dar uma razão e isso não poderia ser exigido senão por um inferior ou por um igual. Eu lhe responderia: então, você faz de Pedro um inferior ou igual em relação aos primeiros convertidos da Igreja em Jerusalém; você prova muito e, portanto, você não prova nada. Quando Maria e José perderam Jesus, ao encontrá-Lo no templo, disseram-Lhe: “Filho, por que procedeste assim conosco?” (Lc. II. 48). Jesus explica seu ato. Isso faz Dele um inferior ou um semelhante de Maria e José? Muitas vezes no Antigo Testamento Deus mesmo deu razão de Seus atos por meio da boca de Seus profetas.

A carta de São Paulo aos Gálatas apresenta outra dificuldade: o propósito dessa carta é duplo; primeiramente, refutar o erro comum dos judeus convertidos que se apegavam às suas tradições; em segundo lugar, reivindicar para si mesmo as prerrogativas de um verdadeiro Apóstolo, como os Doze escolhidos por Cristo. Esses convertidos nutriam receio a respeito de Paulo e sua missão. Paulo se compara a Pedro, e alega que tal como Pedro é o Apóstolo da circuncisão, do mesmo modo ele é o Apóstolo dos gentios. Alguns fingiam que Paulo não era um verdadeiro Apóstolo e que seu ensino não se conformava ao dos outros Apóstolos. Paulo refuta ambas as asserções. Tendo recebido seu apostolado pouco tempo depois de sua conversão a partir do próprio Cristo, ele não sentiu necessidade de instrução ou missão dos Apóstolos em Jerusalém. Imediatamente, ele foi trabalhar na Arábia, depois retornou a Damasco e somente depois de três anos foi ver Pedro em Jerusalém. Depois de catorze anos ele voltou a Jerusalém com Barnabé e Tito, por meio de uma ordem divina. Alguns convertidos recusaram-se a receber Tito porque ele não era circuncidado. Paulo, porém, foi recebido, o que prova que não havia diferença de opinião entre Paulo e os outros Apóstolos. A discussão de Paulo não foi com Pedro ou os outros Apóstolos, mas com alguns convertidos do judaísmo. Até agora, nada foi provado contra o primado de Pedro; mas naquela mesma carta Paulo escreve o seguinte: “Mas, tendo vindo Cefas a Antioquia, eu resisti-lhe frente a frente, porque merecia repreensão” (Gal. II. 11). Essas palavras não argumentam contra o primado de Pedro? O Concílio de Jerusalém havia dispensado os gentios da observância da lei Mosaica, e também havia reconhecido o apostolado de Paulo, mas algumas questões não foram apaziguadas, tais como se a lei de Moisés ainda era vinculante para os judeus depois da vinda de Cristo; se os gentios tinham de se tornar judeus antes de serem admitidos na Igreja. Os sentimentos dos judeus convertidos eram bem conhecidos e, em interesse do argumento, é secundário se o encontro de Pedro e Paulo ocorreu antes ou depois do Concílio de Jerusalém. Pedro costumava comer com os gentios, mas quando alguns mensageiros vieram da parte de Tiago, bispo de Jerusalém, Pedro interrompeu a prática, por medo de escandalizar aqueles da circuncisão. Aqui estava a causa da dissimulação da parte de Pedro. Paulo menciona o acontecimento com o único propósito de convencer os fieis da Galácia de que o evangelho da liberdade, que ele pregava, era o verdadeiro evangelho, ao qual se rendera até mesmo Pedro após alguns momentos de fraqueza. Não há discussão quanto a uma divergência dogmática entre os dois Apóstolos. Como poderia haver, já que o próprio Pedro tivera uma revelação divina sobre o assunto? Pedro batizara o pagão Cornélio sem submetê-lo a qualquer rito judeu; no Concílio de Jerusalém ele proclamara a salvação pela graça, não pela lei; ele havia resistido à alegação dos judeus convertidos de que Tito deveria ser circuncidado; ele havia reconhecido o apostolado de Paulo. Pedro talvez estivesse esperando por uma oportunidade para apaziguar a questão da circuncisão definitivamente e para sempre. É fácil imaginar a situação desagradável de Pedro, quando ele teve de escolher entre a oposição de Paulo e a dos zelotes que haviam vindo recentemente de Jerusalém. Pedro parecia oscilar e era culpado; Paulo ganhou a discussão, mas não havia nenhum questionamento de primado ou doutrina; foi simplesmente uma questão de conveniência, até que ela foi finalmente apaziguada. O oponente de Pedro é o mesmo Paulo que, depois do Concílio de Jerusalém, passou por Icônio e Listra com Timóteo e o circuncidou, por causa dos judeus que estavam naqueles lugares (At. XVI. 3). Paulo sabia por sua própria experiência que há uma diferença entre princípios e sua aplicação; ele sabia que as circunstâncias devem ser levadas em consideração. É inegável que Paulo tenha repreendido Pedro. Ele assim o fez porque se considerava o superior de Pedro? Certamente não. Paulo chamava a si mesmo de o menor dos Apóstolos. Mas uma correção fraterna pode e deve ser feita algumas vezes, até mesmo por um inferior. Paulo pode ser louvado por sua coragem; Pedro, por sua sincera humildade. O acontecimento mostra que Paulo via Pedro como um homem extraordinário.

20/09/2010

Ser empresário e católico; eis a questão

Angueth, gostaria de saber uma opinião sua. Eu sou empresário e católico.

Como você acha que eu posso tornar a minha empresa um caminho para a caridade cristã sem cair nessa de "responsabilidade social"? Ou você acredita que a caridade deve ser uma obrigação da pessoa e que a empresa não tem nada a ver com isso?

Rodrigo

Caro Rodrigo,

Sua pergunta é muito importante e mostra a nobreza de seus objetivos. Espero que o que vou dizer abaixo possa lhe ser de alguma ajuda.

Nossa única obrigação neste mundo é nos salvar; é não ir para o Inferno. Quando procuramos este caminho, muitas coisas acontecem e acabamos salvando-nos e também a muita gente ao nosso redor. Isto acontece qualquer que seja nossa ocupação.

Você é empresário e católico. Ora, como empresário não sei o que você faz, mas como católico imagino que você: assista a Missa todos os domingos e dias de guarda; que se confesse regularmente (obrigatoriamente na Páscoa, desejavelmente uma vez por mês); que reze seu Terço diariamente e peça a proteção de Nossa Mãe Santíssima freqüentemente, etc. Você, enfim, está procurando se santificar diariamente. É o que nós católicos fazemos; esta é a nossa vida.

Como empresário você tem, todos os dias, milhares de oportunidades de pecar, tal como qualquer um de nós (eu, por exemplo, como professor); mas tem também muitas oportunidades de se santificar.

No meu Missal há uma parte que nos ajuda a fazer o exame de consciência, antes da Confissão; é uma série de perguntas para você responder. Há perguntas que imagino serem interessantes para você: (Deveres dos superiores) Faltei com a justiça, não pagando o salário devido, ou castigando injustamente? Recusei aos meus subalternos a liberdade de cumprirem os deveres religiosos? Deixei de instruí-los sobre a religião? Deixei de vigiar a fé e os costumes de meus subalternos? Dei-lhes maus exemplos? Fui áspero, desconfiado, caprichoso, altivo, desdenhoso?

Veja que antes de pensar em “tornar sua empresa um caminho para a caridade”, nela há de haver o exercício da caridade. Quando falo caridade, não falo ser bonzinho; falo amar o próximo, desejá-lo o bem.

Penso ser importante a todo empresário católico conhecer um pouco sobre a Doutrina Social da Igreja. Dois documentos são importantes aqui; as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII e a Quadragesimo Anno de Pio XI. Recomendo também fortemente o livro sobre economia do ponto de vista católico de Hilaire Belloc, The Servile State, que o blog Caminho de Roma está traduzindo para o português. Há também no meu blog um marcador Economia e Catolicismo que talvez seja de seu interesse.

Transcrevi abaixo um trecho do Compêndio de Teologia Ascética e Mística, do Pe. Adolph Tanquerey, que trata da santificação das relações profissionais que, considero também interessante para você.

Por fim, rezo para que você seja um bom católico em todos os lugares e momentos de sua vida.

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Meios Gerais de Perfeição da Vida Cristã

Pe. Adolph Tanquerey

Santificação das relações profissionais

607. As relações profissionais são meio de santificação ou obstáculo ao progresso, segundo a maneira como se encaram e desempenham os deveres do próprio estado. Os deveres, que nos impõe a nossa profissão, são em si conformes à vontade de Deus; se os cumprimos como tais, com intenção de obedecer a Deus e de nos regular segundo as leis da prudência, da justiça e da caridade, contribuem para a nossa santificação. Se, pelo contrário, não temos outro fim em nossas relações profissionais, mas do que granjear honras e riquezas, com desprezo das leis da consciência, convertem-se essas relações numa fonte de pecado e escândalo.

A) O primeiro dever é, pois, aceitar a profissão a que a Providência nos conduziu como a expressão da vontade de Deus sobre nós e perseverar nela, enquanto não tivermos razões legítimas de mudar. Quis Deus, na verdade, que houvesse diferentes artes e ofícios, diversas profissões, e, se nos encontramos numa delas por uma série de acontecimentos providenciais, podemos crer que é essa, a nosso respeito, a vontade de Deus. Excetuamos o caso em que, por motivos acertados e legítimos, julgássemos dever mudar de situação; tudo o que é conforme à reta razão entra efetivamente no plano providencial.

Assim, pois, patrão e operário, industrial ou comerciante, agricultor ou financeiro que um seja, o seu dever é exercer a própria profissão, para se submeter à vontade divina, desempenhando-se dela segundo as regras da justiça, da equidade e da caridade. Então nada impede que santifiquemos cada uma das ações, referindo-as ao fim último; o que de forma alguma exclui o fim secundário de ganhar o necessário à própria subsistência e à da família. De fato, houve santos em todas as condições.

608. B) Como, porém, as múltiplas ocupações e relações são, de sua natureza, absorventes, e assim tendem a afastar-nos o pensamento de Deus, é necessário fazer esforços muitas vezes renovados para oferecer a Deus e sobrenaturalizar ações de suas natureza profanas.

609. C) Além disso, como vivemos num mundo pouco honrado, em que a maior parte avidamente disputa em proveito próprio as honras e os lucros, sem se lhe dar das leis da equidade, importa não esquecer que ante de tudo é mister procurar o reino de Deus e a sua justiça não empregando, para chegar a seus fins, senão meios legítimos. O melhor critério para discernir o que é permitido do que o não é, será ver como procedem os homens honrados e cristãos da mesma profissão: é que, de fato, há usos recebidos que não se podem mudar e a que não é possível subtrair-se, sem se impor a si mesmo e aos outros perdas consideráveis.

Quando são comumente seguidos pelos bons cristãos da mesma profissão, todos podem conformar com eles o seu proceder, até que, de comum acordo, seja possível reformá-los, sem comprometer interesses legítimos.[1] Mas, por outro lado, importa estar precavido para não imitar os processos e conselhos dos comerciantes e industriais sem consciência que querem enriquecer, dê lá por onde der, até mesmo como quebra de justiça: a falta de probidade e os avanços destes últimos não justificam o emprego dos meios ilícitos. É necessário buscar antes de tudo o reino de Deus e a sua justiça; tudo o mais virá por acréscimo. (Mt. 6,33)


[1] Assim, o nível salarial, na mesma profissão e na mesma localidade, é determinada por usos que um patrão não poderia modificar sem perdas que o obrigariam bem depressa a fechar sua fábrica.

16/09/2010

Se Cristo quiser, Ele me fará 100% católico

 

Um leitor anônimo escreve ao blog e em seu comentário ele diz algumas coisas que merecem um post.

Ele diz: “Eu nasci e vivi entre católicos não praticantes e católicos praticantes sem conhecimento doutrinário. Ultimamente estou procurando minha identidade profunda. Minha prioridade agora é conhecer a doutrina católica ortodoxa, mas sinto-me obrigado a fazer uma incursão na heresia protestante tida por eles como ortodoxa. Sem isso não poderei afirmar meu autoconhecimento.

Caro leitor, se você reconhece que o protestantismo é uma heresia e mesmo assim você se sente “obrigado a fazer uma incursão” nele, de duas uma: ou você está sob a influência do demônio ou de algum seu representante (amigo, parente, namorada, etc.) ou você está querendo se exibir, querendo brincar com fogo. Aproximar-se do pecado só para provar que consegue resisti-lo é, não só uma grande tolice, como uma falta grave. Ninguém precisa se aproximar de uma heresia para “afirmar seu autoconhecimento”. Não faça isso, pois você sucumbirá!

A identidade profunda de todo católico é carregar sua cruz, como Deus quiser; é aceitar tudo o que Deus mandar, com caridade, fé e esperança. Nossa religião é a da vontade, não é um psicologismo barato. Leia a vida dos santos e veja que nenhum deles ficou procurando sua identidade profunda; eles foram trabalhar para o único senhor verdadeiro, que é NSJC.

Se você quiser conhecer a doutrina ortodoxa católica procure-a não com Lutero e Calvino, mas com Santo Agostinho, São Francisco de Assis, Santo Tomás de Aquino, Santa Teresa, Santo Afonso Maria de Ligório, etc. Leia a patrística latina e grega, leia as grandes encíclicas papais, leias as Sagradas Escrituras e leia, sobretudo, o Catecismo Romano.

O leitor continua dizendo: “Contudo, se Cristo quiser que eu seja um católico romano ortodoxo, creio que Ele fixará em mim essa consciência. Ele não pode esperar que eu pesquise todas as possibilidades para escolher uma, pois isso exigira muitas vidas dedicadas à pesquisa.

Leitor amigo, Jesus já morreu na cruz por nós, não queira que Ele agora coloque as coisas em sua cabeça. Além disso, você não precisa pesquisar todas as possibilidades; para isso Ele criou sua Igreja, que ensina a verdade infalível há mais de dois mil anos.

Santo Tomás, na Suma Contra os Gentios diz: “...o gênero humano permaneceria nas maiores trevas de ignorância se apenas a via da razão lhe fosse aberta para o conhecimento de Deus, visto que poucos homens, e somente após longo tempo, chegariam a este conhecimento, que os faz ao máximo perfeitos e bons. (...) foi conveniente que pela via da fé se apresentassem aos homens a firme certeza e a pura verdade das coisas divinas. (...) Assim, todos podem com facilidade, sem dúvida e sem erro, ser participantes do conhecimento das verdades divinas.

Não fique esperando que Jesus lhe apareça e lhe coloque tudo na cabeça; faça a sua pequenina parte na obra da Redenção, pois Ele já fez a d’Ele, que foi morrer na cruz por nós.

Para finalizar, o leitor termina com esta: “Pode ser que Ele me tenha feito mais inclinado a uma doutrina mais compatível com a democracia.” Ele diz isso porque eu lhe tinha dito anteriormente (num comentário-resposta) que a democracia que temos hoje, de tipo liberal, é filha do protestantismo; que nós católicos defendemos o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. O que posso dizer para o leitor é que certamente Cristo não lhe fez mais inclinado para a democracia, esta democracia, pois Ele lhe teria feito inclinado ao protestantismo; Ele lhe teria feito inclinado para a perdição eterna.

Espero, leitor, que você se convença que ser 100% católico é muito menos charmoso do que você imagina, é muito mais trabalhoso do que você gostaria de imaginar, mas é muito mais glorioso do que você pode imaginar.

13/09/2010

Cruzada de Terços pela salvação do Brasil

 

De hoje, 13 de setembro, até o dia das eleições, rezemos o Terço diário com esta intenção adicional: “Nossa Senhora da Aparecida, livrai o Brasil do flagelo do comunismo!”

Leia mais aqui.

11/09/2010

Preciso muito da sua ajuda. Eu quero acertar.

 

O título deste post é também o do “assunto” de um e-mail que recebi de uma leitora protestante. Nossa Senhora parece estar me dando muitos leitores protestantes, que protestam muito, mas continuam meus leitores. Mas a leitora que agora me escreve, garantindo duas vezes que não se trata de “uma pegadinha nem de uma armadilha protestante”, ao invés de protestar, pede-me ao final de seu e-mail: “Por fim, quero elucidá-lo de minha ignorância tanto em assuntos doutos, tanto mais quanto à Igreja Católica. E por isso que eu te peço que apresente-a a mim.”

Os católicos temos uma obrigação claríssima: temos de estar “prontos sempre para responder a todo o que vos pedir razão daquela esperança que há em vós”(1 Ped 3,15); é o nosso primeiro Papa que exige isto de todo católico.

Já informei à leitora – por e-mail – que apresentar a Igreja católica aos meus leitores é o que eu procuro fazer neste blog. Ele já tem, pela graça de Deus, cinco aninhos de idade e muitos leitores, comentadores e seguidores; muito mais do que o blogueiro esperava. Recentemente, respondi a um leitor a razão que me faz ser católico. Penso que seria útil a leitora ler Leitor pergunta: Por que Angueth você é católico? e Leitor insiste, e eu também. Há também dois extraordinários textos de Chesterton, por mim traduzidos e com o mesmo título, que podem ser útil: Por que sou católico e Por que sou católico.

No e-mail, a leitora faz três perguntas principais, que listo aqui:

1. Mediação dos Santos - Em João 14.6 Jesus afirma: "Eu sou o caminho a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim". Eu entendo que construir Imagens não é pecado nenhum, uma vez que o pecado está em construir Ídolos, do contrário, deveríamos acabar com as estátuas das praças, com as fotografias e tutti quanti. Só não entendo como uma pessoa de carne e osso como eu, morre, chega no céu e me escuta aqui da terra e ainda pede por mim para Deus. Mas de coração que quero entender. E também não acho muito razoável as procissões, penitências e promessas, isso me parece muito com adoração. Mas posso estar errada e quero saber.

2. Purgatório - Isso não anula a morte de Jesus na cruz? Eu raciocino (ou me ensinaram a pensar assim) que o Sangue de Jesus é suficiente para nos lavar de todo pecado, se nós temos a oportunidade de purgar nossos pecados, para que Jesus morreu?

3. Li uma tradução sua do Chesterton que explica porque ele era católico. Tem uma coisa lá que me chamou atenção, que me abriu os olhos ao mesmo tempo que criou mais uma dúvida. O texto é: “Ele não acredita, convencionalmente, no que a Bíblia diz, pela simples razão de que a Bíblia não diz nada. Você não pode colocar um livro no banco das testemunhas e perguntar o que ele quer dizer. A própria controvérsia fundamentalista se destrói a si mesma. A Bíblia por si mesma não pode ser a base do acordo quando ela é a causa do desacordo; não pode ser a base comum dos cristãos quando alguns a tomam alegoricamente e outros literalmente. O católico se refere a algo que pode dizer alguma coisa, para a mente viva, consistente e contínua da qual tenho falado; a mais alta consciência do homem guiado por Deus.” Bom, sendo assim, a bíblia é menor que a Igreja Católica? E se sim, como eu posso confiar nisso se a Bíblia é a palavra de Deus? E como poderia a palavra de Deus não ser confiável?

Sobre a mediação dos santos: sei que este é um permanente protesto dos protestantes. Vou indicar-lhe, cara leitora, três textos do site Montford sobre o assunto; não poderia escrever nada melhor que isto: primeiro, segundo e terceiro. Há lá muitos outros textos sobre o mesmo assunto, que você poderá consultar com proveito.

Sobre penitências, que você diz não entender, posso citar: Mt 3,8; Lc 13,5 – 16,29-30; Is 58,1-7; Lc 47,24. Há muitas outras passagens na Bíblia sobre isso. Por isso, cara leitora, quem conhece realmente a Bíblia somos nós, os católicos.

Sobre o purgatório, vou citar algumas passagens da Bíblia:

a) II Mac 12, 43-45: “Tendo feito uma coleta, mandou duas mil dracmas de prata a Jerusalém, para se oferecer um sacrifício pelo pecado. Obra bela e santa, inspirada pela crença na ressurreição, porque se ele não esperasse que os mortos haviam de ressuscitar, seria uma coisa supérflua e vão orar pelos defuntos.” Para que orar pelos defuntos se eles vão ou para o Céu ou para o Inferno?

b) I Cor 3,15.

c) Mt. XII, 31-32: “Por isso vos digo: todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, porém, a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. Todo o que disser alguma palavra contra o Filho do homem, lhe será perdoado; porém o que a disser contra o Espírito Santo não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no futuro.” Portanto, há pecados que podem ser perdoados no futuro.

Sobre a Bíblia e a passagem de Chesterton: a Bíblia é a palavra de Deus. Contudo, quem escolheu os livros que continham a palavra de Deus, aqueles do Velho Testamento, e quem escreveu os livros do Novo Testamento, foi a Igreja, iluminada pelo Espírito Santo. Portanto, se não houvesse Igreja, não haveria Bíblia. Assim, a Bíblia foi escrita por inspiração de Deus, que ainda fala ao mundo por meio de Sua Igreja; Igreja e Bíblia são expressões de um mesmo Deus, Uno e Trino. Não pode haver coisa mais simples que esta.

Como lhe disse por e-mail, cara leitora, rezo pela sua conversão à única Igreja verdadeira.

08/09/2010

Comemora-se hoje o nascimento de nossa Corredentora: a Virgem Santíssima Senhora Nossa

 

Em Nazaré, uma cidade da Galiléia, vivia um homem bom e humilde da descendência de David, chamado Joaquim. Sua esposa era Ana. Eles andavam pelos caminhos da virtude, mas os céus não os abençoavam com nenhum filho.

A bondade de Joaquim e Ana, todavia, não foi deixada sem recompensa. Vinte anos se passaram e, em 8 de setembro, uma maravilhosa criança foi enviada para alegrar sua velhice. A Virgem prometida, que se destinava a reparar a Falta primitiva, acabava de nascer; e ela veio ao mundo vestida com inexprimível pureza e beleza. No nono dia após o nascimento, segundo o costume, a Criança Imaculada, recebeu o nome de MARIA [que em siríaco significa senhora, soberana; em hebreu significa estrela do mar].

“E seguramente,” diz São Bernardo, “a Mãe de Deus não poderia ter um nome mais apropriado, ou mais expressivo de sua alta dignidade. Maria é, de fato, aquela bela e luminosa estrela que brilha sobre o vasto e tormentoso mar deste mundo.”

A compreensão da criança, como o dia em algumas regiões favorecidas, quase não conheceu a aurora; brilhava claramente desde seus primeiros anos. Sua virtude precoce e sua sabedoria com as palavras, num período da vida quando as outras crianças ainda desfrutam apenas uma existência puramente física, convenceram seus pais que o tempo da separação se aproximava; e quando Joaquim ofereceu ao Senhor, pela terceira vez desde o nascimento de sua filha, os primeiros frutos de sua pequena herança, o marido e a esposa, gratos e resignados, partiram para Jerusalém, a fim de depositar nos recintos sagrados do Templo o tesouro que eles receberam do Deus Único de Israel.

A antiga capital da Judéia foi logo alcançada e, pela primeira vez, Maria ultrapassou seus pesados portões e contemplou suas sisudas muralhas. Os piedosos pais apresentaram sua criança no grande Templo do Senhor dos Exércitos. Ela foi recebida pelo sacerdote com as cerimônias usuais, e então colocada entre as virgens consagradas, que ocupavam uma ala do sagrado edifício reservada especialmente para elas.

Maria passou os melhores anos de sua juventude no Templo. Foi um tempo precioso de preparação. A futura Virgem-Mãe foi bem educada, mas naqueles dias as tarefas domésticas eram sabiamente consideradas importante ramo da educação. Ela se levantava todos os dias graciosamente, pensava na sagrada presença de Deus e se vestia com a maior modéstia.

“Ela se vestia de forma extremamente simples”, escreve o Abade Orsini, “e isso lhe consumia muito pouco tempo. Ela não usava nem braceletes de pérola, nem cordões de ouro incrustado de prata, nem tampouco túnicas púrpuras, como as filhas das princesas de sua descendência. Um robe azul celestial, uma túnica branca presa na cintura por um cinto de pontas soltas, um longo véu, simples e graciosamente disposto para cobrir a face quando necessário – isto, além de um tipo de sapato combinando com o robe, compunham o traje oriental de Maria.”

Cada dia tinha suas horas de exercícios religiosos. As palavras da oração e o hino de louvor se elevavam dos puros lábios da jovem Virgem.

Conta-se que a estatura de Maria estava acima da média. Sua adorável face era o espelho de sua mais pura e bela alma, e sua pessoa era a própria perfeição física. Ela era o mais refinado trabalho da natureza. São Denis Areopagita, que viu a Virgem Santíssima, nos assegura que ela era de uma beleza deslumbrante.

Ela tinha uma perfeita compreensão das Sagradas Escrituras. Seus dons físicos, mentais e morais não tinham comparação. Falava pouco, e sempre com propósito. Virtude e bom senso regulavam seus pensamentos, palavras e ações.

Assim passou Maria, silenciosamente, pelos caminhos da vida, tal como uma bela estrela deslizando por sobre as nuvens prateadas. Graças à sua Imaculada Conceição, ela possuía uma doce e natural inclinação para a virtude; e suas brilhantes ações eram como uma grinalda de neve que silenciosamente caia sobre o topo da montanha, acrescentando pureza à pureza e brancura à brancura, até que se elevava, formando um cone brilhante que atraia os raios do sol e deslumbrava os olhos dos homens.

A Virgem Santíssima passou nove anos em seu retiro no Templo, quando a primeira nuvem negra obscureceu sua jovem vida. Joaquim, seu amado pai, caiu doente; e ela voltou para casa apenas a tempo de rezar ao lado de seu leito e dele receber sua última benção. Mas ainda outra aflição se aproximava. Depois de um curto período de tempo, Santa Ana abençoou sua querida filha e morreu em paz. Maria era agora órfã, mas suportou sua tristeza em silêncio e com paciência.

É a opinião de diversos escritores eminentes que foi neste período, quando seu caminho foi obscurecido pelas nuvens da tristeza e desolação, que a santa e jovem Virgem fez seu voto de virgindade perpétua e ofereceu a Deus, para sempre, o mais puro de todos os corações.[1]


[1] Trecho traduzido da biografia da Santíssima Virgem que aparece em Little Lives of the Great Saints, John O’Kane Murray, 1985, Editora TAN Books. A edição original deste livro clássico é de 1880.

04/09/2010

AS FESTAS E O ASCETA

Do livro A Coisa, 1929
Gilbert Keith Chesterton

Nota do blog: Chesterton nos dá uma aula de apologia católica, tratando de um dos assuntos mais interessantes do catolicismo: a alegria cristã e a necessária e pemanente prática da penitência e da mortificação como caminho de nossa santificação. É assunto ligado à teologia ascética e mística, tratada amplamente por Pe. Tanquerey em seu Tratado de Teologia Ascética e Mística. Aqui Chesterton mostra como se pode falar de assuntos complicadíssimos de forma clara e simples, mesmo quando somos confrontados por pagãos altamente ignorantes.

Estava refletindo durante a recente festa de Natal (que, como outras festas, é precedida por um jejum) que a combinação é ainda um enigma para mim. O modernista, ou o homem que se gaba de ser moderno, é geralmente muito parecido com o homem que come tanto na véspera que não tem fome no Natal. Isto é chamado “estar à frente do tempo”; e é característica de todos que são progressistas, proféticos, futuristas e que geralmente estão mirando o que o Sr. Belloc chama de a Grande Aurora Rósea; uma aurora que parece muito mais rósea na noite anterior que na manhã seguinte.

A muitas pessoas, todavia, que não estão ofensivamente à frente do tempo, a combinação dessas idéias parece realmente ser um tipo de contradição ou confusão. Mas, na verdade, ela não é nem tão confusa, nem tampouco tão complicada. A grande tentação do católico no mundo moderno é a tentação do orgulho intelectual. É tão óbvio que a maior parte de seus críticos fala sem minimamente saber do que está falando, que ele é, às vezes, um pouco provocado a usar uma lógica muito anti-cristã, que é a de responder um tolo segundo sua tolice. Ele fica um pouco disposto a deleitar-se em segredo, por assim dizer, com a filosofia muito mais rica e sutil que ele herdou; e apenas responder ao perplexo bárbaro de forma a torná-lo ainda mais perplexo. Ele é tentado a concordar ironicamente ou mesmo a se disfarçar de ignorante. Homens que possuem uma elaborada defesa filosófica de seus pontos de vista às vezes se comprazem em jactar-se da credulidade infantil dos outros. Tendo alcançado seus próprios objetivos por meio dos labirintos da lógica, eles indicarão ao estranho somente o mais curto atalho de autoridade; apenas a fim de chocar o simplório com a simplicidade. Ou, como no caso presente, eles encontrarão um divertimento amargo em apresentar as partes separadas de um esquema, como se elas fossem realmente separadas; e em deixar o observador externo fazer delas o que ele conseguir. Assim, quando alguém diz que um jejum é o oposto a uma festa, e ainda que ambos nos pareçam sagrados, alguns de nós serão sempre movidos a dizer, “Sim,” e a dar uma condenável gargalhada. Quando o ansioso investigador ético diz, “O Natal é devotado à fabricação de alegria, a comer carne e beber vinho, e mesmo assim você incentiva este divertimento pagão e materialista,” você ou eu seremos tentados a dizer, “Muito bem, meu garoto,” e a deixar a coisa como está. Quando ele então diz, parecendo até mais preocupado, “E mesmo assim você admira os homens por jejuarem em cavernas e desertos e por se negarem prazeres comuns; você está claramente comprometido, como os budistas, com o oposto, ou seja, com o princípio ascético,” estaremos igualmente inspirados a dizer, “Correto, companheiro,” ou “Percebo isto pela primeira vez, caro amigo,” e a propor apenas um adiamento para nossa alegre refeição.

Todavia, é uma tentação a ser resistida. Não somente é óbvio que é nossa obrigação explicar aos outros que o que lhes parece contraditório é realmente complementar, mas também que não estamos em absoluto justificados no uso de tal tom de superioridade. Não estamos agindo corretamente quando fazemos de nossa cordialidade uma expressão de nosso desespero; tampouco é assim tão horrivelmente difícil de explicar. A real dificuldade não é tanto que o crítico seja tosco, mas que nós próprios não somos sempre claros, mesmo em nossa própria mente, muito menos em nossas exposições públicas. Não é tanto que eles não sejam sutis o suficiente para entender, mas que eles, nós e todo mundo não somos simples o suficiente para entender. Aquelas duas coisas são parte de uma única coisa, se formos diretos o suficiente em olhar a coisa; e vê-la simplesmente como ela é. Sugeri recentemente que as pessoas deveriam ver a história cristã como se ela fosse contada como uma história pagã. A Fé é simplesmente a história de um Deus que morreu pelos homens. Mas, estranhamente, se escrevêssemos as palavras sem o G maiúsculo, como se fosse o culto de alguma tribo nova e desconhecida, muitos perceberiam a idéia pela primeira vez. Muitos sentiriam o arrepio de um novo temor e afinidade se simplesmente escrevêssemos: “a história de um deus que morreu pelos homens”. As pessoas se surpreenderiam e diriam: que bela e tocante seria aquela religião pagã.

Vamos supor, como argumento, que a Igreja não seja considerada; que não temos nada senão a terra e os filhos dos homens nela vagando, com suas lendas e tradições ordinárias e mortais. Então, suponha que aparece nesta terra um prodígio, um portento, ou um suposto portento. De algum modo o céu rasgara o véu ou os deuses deram alguma nova maravilha à humanidade. Suponha, por exemplo, que seja uma fonte de água mágica que, conta-se, flui do alto de uma montanha. Ela abençoa como água sagrada; cura as doenças, inspira mais do que o vinho, ou os que a tomam nunca mais sentem sede. Bem, essa história pode ser verdadeira ou falsa; mas entre aqueles que a difundem como verdadeira, é perfeitamente óbvio que a história produzirá uma série de outras histórias. É igualmente óbvio que tais histórias serão de dois tipos. O primeiro tipo de história dirá: “Quando a água descia ao vale, havia dança em todas as vilas; os jovens e as donzelas regozijavam-se com a música e riso. Um marido ríspido e sua esposa foram borrifados com a água sagrada e se reconciliaram e assim seu lar ficou cheio de alegres crianças. Um aleijado foi borrifado e começou a saltar alegremente como um acrobata. Os jardins foram aguados e se tornaram alegres com flores,” etc. É igualmente muito óbvio que haverá outro tipo de história, exatamente da mesma fonte, contada exatamente pelo mesmo motivo. “Um homem coxo se arrastou centenas de quilômetros, até que ele quase já não conseguia andar, para encontrar a fonte sagrada. Os homens se deitavam alquebrados e sangrando por sobre as pedras da encosta da montanha em seus esforços para escalá-la. Um homem vendeu suas terras atravessadas por rios em troca de uma gota da água. Um homem recusou-se a retroceder, quando confrontado por bandoleiros, mas foi torturado e morreu clamando por ela,” etc. Não há nada minimamente inconsistente nestes dois tipos de lendas. Elas são exatamente o que seria naturalmente esperado, dado a lenda original da fonte milagrosa. Qualquer um que possa realmente olhá-las simplesmente pode ver que elas são ambas igualmente simples. Mas nós, em nosso tempo, temos nos confundido com longas palavras para distinções irreais; e falado incessantemente sobre otimismo e pessimismo, sobre ascetismo e hedonismo, sobre o que chamamos de paganismo e o que pensamos do budismo, até que não conseguimos entender uma simples lenda quando ela é contada. O pagão a teria entendido muito mais.

Esta verdade tão simples explica outro fato sobre o qual ouvi o homem culto insistir com algum entusiasmo: a ênfase e repetição no que concerne ao lado ascético da religião. É exatamente o que aconteceria com qualquer história humana, mesmo se ela fosse uma história pagã. Notamos mais o caso do homem que se priva da comida para conseguir a água do que o caso do homem que simplesmente se alegra em conseguir a água. Notamo-lo mais porque é mais notável. Qualquer tradição humana valoriza mais os heróis que sofrem por algo do que os seres humanos que simplesmente se beneficiam dele. Mas isso não altera o fato de que há mais seres humanos do que heróis; e que esta grande maioria de seres humanos tem se beneficiado disso. É natural que os homens se maravilhem mais com o homem que deliberadamente se arrasta coxeando do que com o homem que dança, quando não é mais coxo. Isso não altera o fato de que países onde aquela lenda prevalece são, de fato, repletos de dança. Aqui apenas sugeri quão simples é, afinal, a contradição entre austeridade e alegria, que estarrece tanto nossos críticos. Há uma aplicação mais elevada disso aos ascetas, que talvez eu considere em outra ocasião. Aqui apenas a insinuarei dizendo: “Quanto mais o homem puder VIVER somente da água, mais ele se certificará de que ela é a água da vida.”