05/09/2009

A Revolta contra as Idéias

Nota do Tradutor: Este é um capítulo do livro The Thing (A Coisa), publicado em 1929. Aqui vemos Chesterton expressar algumas de suas idéias sobre o capitalismo, sobre a Reforma e fazer uma defesa dos valores medievais. A propósito, a "coisa" do título é exatamente a Igreja Católica e perpassa, sem menção direta, todos os capítulos do livro. Espero um dia poder traduzir este livro.


Gilbert Keith Chesterton


Ao mesmo tempo em que o Daily Express fornece-nos terríveis informações sobre o México, a seção de cartas do Daily Express fornece-nos informações quase igualmente tão terríveis sobre a Inglaterra. Isso dá-nos uma idéia do quão monstruosas e disformes são as coisas que ainda existem em nosso meio, veladas pelas vilas de tijolos vermelhos e por chapéus de feltro. As horrorosas revelações sobre a Inglaterra foram, claro, principalmente psicológicas. Não foi a anarquia do estado que fez fracassar a luta dos povos latinos. Foi a anarquia da mente, que é um caráter especial daqueles a quem chamamos, nos momentos de raiva, de anglo-saxões. Um ateu mexicano seria muito capaz de cortar a garganta de um padre ou praticar tiro de canhão em uma freira. Mas ele seria incapaz de afirmar, como fizeram os protestantes no jornal, que era certo para Calles[1] perseguir aquela crença naquela ocasião, porque era errado para os católicos perseguirem qualquer crença em qualquer ocasião. Nenhum anarquista consegue ser tão anárquico. Calles poderia ter explodido a catedral de São Pedro, mas ele não culparia um espanhol por ter feito o que um mexicano, louvado por ele, estava tentando fazer. A esse respeito, mesmo Calles é mais católico e mais latino. Ele quer fazer as coisas à sua própria maneira, e impedir milhares de pessoas de fazer as coisas à maneira deles; mas ele não quer ambas as coisas. Este sacramento selvagem, o milagre do desaparecimento e reaparecimento do bolo, do bolo que é sempre devorado e sempre permanece – este milagre pertence à religião da irracionalidade e somente acontece nas capelas de nosso próprio e livre país.

Em meio à confusão de tais palavras, houve uma frase numa das cartas que é de algum interesse sociológico para nós. Um desses intolerantes “tolerantistas” estava tentando defender Calles por meio da sugestão de que somente um preconceituoso pode acusá-lo de extremismo anárquico e anti-religioso. É muito injusto (foi dito) chamar Calles de ateu ou bolchevique. De fato, podemos aprender de todas essas cartas que Calles é provavelmente um metodista wesleyano e freqüenta regularmente a capela de East Croydon. Mas ele é ainda pior. Eles parecem considerar que é um favor a Calles fazê-lo o extraordinário elogio de comparando-o aos reformadores do século XVI. O correspondente aqui em foco usa isso com um argumento contra o alegado anarquismo do mexicano – caso ele seja mexicano. “Calles e seus partidário são estigmatizados como ateus e bolcheviques – Por quê? Foram os reformadores ingleses bolcheviques? Certamente não.”

Com isso concordamos alegremente. Com uma sincera unanimidade podemos repetir, “Certamente não.” Os reformadores ingleses certamente não foram bolcheviques. Ninguém concordará com a elegante afirmação de que os reformadores ingleses foram capitalistas. Poucas pessoas na histórias mereceram ser descritos tão exatamente, tão completamente, como tipicamente capitalistas. Eles foram muitas outras coisas além de capitalistas; alguns deles eram mal-educados, alguns cavalheiros, alguns poucos eram homens honestos, muitos eram ladrões, um tipo mais ordinário de cortesões, um tipo melhor de monomaníacos; mas eles eram todos capitalistas e o que eles criaram foi o capitalismo. Todos eles conduziram suas poderosas operações políticas baseados numa enorme acumulação de capital; mas eles nunca, mesmo com seus olhos moribundos, perderam a luz de esperança e expectativa; a promessa e a visão de mais capital.

Mas o que nos preocupa hoje em dia é isto: é o capitalismo deles que permaneceu. De fato, muitos deles tinham outros ideais de simplificação espiritual que poderiam, em certo sentido, ser comparados ao comunismo. Nunca devemos chamar de bolchevique um homem como Cranmer ou um homem como Burleigh. Poderíamos dizer, com Hamlet, “Pois quiséramos que fôsseis tão honesto”. Mas havia homens naquele movimento, ou naquela confusão, que eram tão loucos e honestos quanto os bolcheviques. Havia entusiasmos teóricos e especialmente teológicos que moviam particularmente em direção à simplicidade; como aqueles dos bolcheviques. Mas uma coisa deve ser fixada: aquelas teorias estão mortas. Havia um esquema lógico e imponente de pensamento; mas foi isso que foi completamente abandonado pelo pensamento moderno. Havia ideais sinceros em alguns dos primeiros protestantes; mas eles não são os ideais dos protestantes modernos. Assim, o calvinismo foi uma definida filosofia; o que é suficiente para distingui-lo do pensamento moderno. Mesmo que os protestantes modernos retenham elementos do calvinismo, o calvinismo está morto. Se eles retivessem elementos de comunismo, como alguns deles poderiam tê-lo feito, aquele comunismo estaria agora morto. Nada além de seu capitalismo está vivo.

Devemos lembrar que mesmo falar sobre a corrupção dos monastérios é um elogio aos monastérios. Pois não falamos da corrupção dos corruptos. Ninguém pretende afirmar que as instituições medievais começaram com mera avareza e soberba. Mas as modernas instituições assim o fizeram. Ninguém diz que São Bento escreveu suas regras de trabalho a fim de fazer seus monges preguiçosos; mas somente que eles se tornaram preguiçosos. Ninguém diz que os primeiros franciscanos praticavam a pobreza para obter riqueza; mas somente que as fraternidades posteriores obtiveram riquezas. Mas é completamente claro que os Cecils, os Russels etc. quiseram de início ficar ricos. Que o que foi a morte para o catolicismo foi realmente o nascimento do capitalismo. Desde então, temos tido não a inconsistência de um homem que, fazendo voto de pobreza, ficasse rico; mas uma consistência assaz chocante, de um homem que, fazendo um voto de riqueza, ficasse mais rico ainda. Depois disso, não houve mais fim a corrida da ambição; e a crença coisas cada vez maiores. É certamente verdade que os reformadores não foram comunistas. Pode ser argumentado competentemente que os religiosos eram comunistas. Mas a questão mais vital não é o comunismo, mas um certo espírito comparativo. O grande proprietário de terras aumento e o pequeno proprietário diminuiu. Ambos eram orgulhosos em possuir terras. Mas o orgulho se tornou cada vez maior na posse de grandes propriedades, e não na posse da propriedade. Assim, por seu lado, o merceeiro parou de se preocupar com seu próprio negócio e somente conseguia se orgulhar do número de negócios com que se preocupar. Disso veio toda a megalomania mercantil de hoje; com sua transformação universal do pequeno negócio em grandes corporações. Esta foi a conclusão natural do movimento, na direção oposta à transformação de todos os pequenos negócios em guildas. Mas sua gênese foi a mudança de um ideal de humildade, em que muitos fracassavam, para um ideal de orgulho, em que, por sua própria natureza, somente alguns conseguem o sucesso.

Nesse sentido, podemos concordar com o correspondente do jornal; que os reformadores não foram revolucionários. Podemos tranqüilizar aquele simples cavalheiro com a nossa total percepção de que eles não foram bolcheviques. Podemos absolver integralmente os Cranmers e os Cromwells de qualquer desejo incansável de sublevar o proletariado. Podemos absolver os grandes nomes de Burleigh e Bacon da mancha de qualquer perigosa simpatia com o pobre. A marca distintiva dos reformadores foi um profundo respeito pelos poderosos, mas um respeito ainda mais profundo pela riqueza; e uma reverência realmente incomensurável pela própria riqueza. Algumas pessoas gostam desse espírito, e consideram-no como a mais razoável fundação de um governo estável; não precisamos discutir sobre isso aqui. Esse espírito é, geralmente, o que é considerado respeitabilidade por todos os que não têm nada mais para respeitar. Ninguém poderia certamente confundi-lo com revolução. Mas a questão de importância histórica poderia ser colocada de outra forma, também mais ou menos favorável aos reformadores. O capitalismo não era apenas sólido, era em certo sentido, cândido. Ele estabeleceu uma classe a ser adorada aberta e francamente por sua riqueza. Este é o contraste real entre esta e a ordem medieval. Tal riqueza veio do abuso dos monges e abades; veio da ação de comerciantes e grandes proprietários. Os abades avarentos violaram seus ideais. Os empregadores avarentos não tinham ideais para violar. Pois nunca houve, propriamente falando, um ideal capitalista do bem; apesar de haver um grande número de homens bons que são capitalistas seguindo outros ideais. A Reforma, especialmente na Inglaterra, foi acima de tudo o abandono da tentativa de governar o mundo por meio de ideais, ou mesmo por meio de idéias. A tentativa falhara indubitavelmente, em parte, porque aqueles que eram os supostos idealistas fracassaram em sustentar os ideais; e muitos dos supostos aceitadores da idéia geral frustraram a realização das idéias. Mas aquela tentativa sofreu o ataque daqueles que odiavam, não somente aqueles ideais, mas qualquer ideal. Foi o resultado dos apetites impacientes e imperiosos da humanidade, que odeiam ser limitados por laços; mas, acima de tudo, por laços invisíveis. Pois os reformadores ingleses não estabeleceram um ideal oposto ou um conjunto alternativo de ideais. Como nosso amigo disse verdadeiramente, eles não eram bolcheviques. Eles estabeleceram certas coisas muito formidáveis chamadas fatos. Eles estabeleceram quase abertamente que iam governar o reino meramente por meio de fatos; pelo fato de alguém chamado Russel ter tido duzentas vezes mais dinheiro que seus vizinhos; pelo fato de que alguém chamado Cecil ter obtido o poder de mandar qualquer vizinho para a forca. Os fatos são sólidos, pelo menos enquanto duram; mas a coisa fatal sobre eles é que eles não duram. Somente as idéias duram. E hoje um homem pode chamar-se Russel e ter consideravelmente menos dinheiro que um homem que chama-se Rockefeller; e a história pode assistir o espetáculo impressionante de um homem chamado Cecil ser expulso da política e chamado de idealista e um fracassado.

O mesmo progresso que fez os grandes proprietários os destruiu. O mesmo avanço comercial que exaltou a Inglaterra perante a Europa a humilhou perante a América. Na exata medida em que temos nossas afeições saudavelmente ligadas a esta aventurosa e patriótica Inglaterra dos últimos poucos séculos, devemos perceber que nossas afeições estão fadadas a ser traídas. O processo chamado prático, a tentativa de governar por meio de meros fatos, tem em sua própria natureza a essência de todas as traições. Descobrimos que os fatos, que parecem sólidos, são, de todas as coisas, as mais fluidas. Como os professores e os arrogantes dizer, os fatos estão sempre evoluindo; em outras palavras, eles estão sempre evadindo-se, escapando ou fugindo. Homens que se prostram ante a riqueza de um grande proprietário, porque isso permite-lhe comportar-se com um cavalheiro, têm de se prostrar ante a mesma riqueza de alguém que não consegue comportar-se como um cavalheiro; e, eventualmente talvez, ante a mesma riqueza que não esteja ligada a nenhum ser humano reconhecível, mas investida em uma companhia irresponsável num país estrangeiro. A riqueza cria, de fato, asas para si mesmo, e pode até habitar as mais longínquas partes do oceano. A riqueza torna-se disforme e quase fabulosa; de fato, são satíricos inconscientes que falam de “fabulosa riqueza”. Grandes financistas compram e vendem milhares de coisas que ninguém jamais viu; e que são, para todos os propósitos práticos, imaginárias. Assim termina a aventura de se acreditar apenas em fatos; termina num conto de fadas de fantásticas abstrações.

Devemos retornar à idéia de governo por meio de idéias. Há apenas um grão de verdade na já mencionada fantasia do comunismo. Mas há idéias muito mais ricas, mais sutis e mais bem equilibradas no catolicismo medieval. Repito que este catolicismo foi arruinado tanto por católicos quanto por protestantes. Os pecados medievais impediram e corromperam as idéias medievais, antes de os reformadores decidirem abandonar todas as idéias. Mas seguir aquelas idéias foi a coisa certa a fazer, ou tentar fazer; e não há e nunca haverá nada mais a fazer exceto tentar de novo. Muitos homens medievais fracassaram na tentativa de pôr em prática aqueles ideais. Mas muitos homens modernos estão fracassando ainda mais desastrosamente na tentativa de viver sem eles. E através deste fracasso estamos gradualmente entendendo as reais vantagens daquele esquema antigo que apenas parcialmente fracassou; segundo o qual, em teoria pelo menos, o homem da paz era mais elevado que o homem da guerra, e a pobreza, superior à riqueza.

Há uma curiosa e pequena frase no ensaio de Macaulay sobre Bacon; aquela grande explosão dos filisteus contra os filósofos. Numa pequena sentença, o grande filisteu trai a fraqueza de todo seu argumento de utilitarismo. Falando desdenhosamente do escolástico, ele diz que Santo Tomás de Aquino deveria sem dúvida (tal era sua simplicidade) ter pensado ser mais importante fabricar silogismos do que pólvora. Nem mesmo a Conspiração da Pólvora[2] poderia impedir aquele protestante resistente de supor que a pólvora é sempre útil. Desde seu tempo temos visto muito mais pólvora. Não é necessário ser um pacifista para considerar que a pólvora não necessita continuar a ser útil em tão larga escala. E uma grande parte do mundo atingiu agora um estado de reação no qual está disposto a clamar, “Se houver qualquer silogismo que nos salve de toda essa pólvora, pelo amor de Deus, permita-nos ouvi-lo.” Eles estão preparados, em desespero, a aceitar até a lógica. Eles não ouvirão apenas a religião, eles talvez ouçam até a razão, se ela prometer-lhes um pouco de paz.

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[1] Plutarco Elias Calles, ditador mexicano, anti-católico e maçom, em cujo governo aconteceu a Guerra dos Cristeros (1926-29), que acabou num massacre de católicos mexicanos. (N. do T.)
[2] Conspiração da Pólvora foi organizada por católicos para explodir o Parlamento quando o rei James I, em 5 de novembro de 1605 o estivesse presidindo. (N. do T.)

Um comentário:

Anônimo disse...

Só uma inteligência excepcional como a de Chesterton para perceber que qualquer acusação contra a Igreja Católica é o melhor testemunho em favor dela.

Também quero recomendar um novo blog (novo para mim) de mui rico conteúdo:
www.catolicidad-catolicidad.blogspot.com, bastante visitado por brasileiros.

Luiz