22/10/2009

RAÍZES DA SANIDADE

Do livro "A Coisa", publicado em 1929.

G.K. Chesterton

O Deão da Catedral de São Paulo, quando está certo, está muito certo. Ele está certo com toda aquela ênfase ressonante que o faz, em outras questões, tão imprudente e desastrosamente errado. E não posso senão saudar com gratidão o desdém com que ele se referiu ultimamente a todo o contra-senso dos jornais a respeito do uso de glândulas de macacos para transformar homens velhos em homens jovens; ou macacos jovens, se isso for o próximo passo na direção do Super-homem. Ele tentou, não de forma artificial, contrabalançar sua denúncia daquele materialismo tão experimental que ele sempre nos acusa de denunciar, dizendo que esse materialismo é um extremo do mal e que o catolicismo é o outro. A esse respeito, ele diz uma das coisas usuais que comumente considera fácil dizer, e que nós geralmente consideramos toleravelmente fácil responder.

Um bom exemplo das acusações contraditórias do Deão contra Roma é que ele aparentemente nos coloca na mesma categoria daqueles que deixam seus filhos completamente “inadvertidos” a respeito dos perigos morais do corpo. Isso é muito divertido, considerando que temos sido insultados, por décadas, por forçarmos os jovens na direção da infame Confissão.

Outro dia mesmo, notei que Sir Arthur Conan Doyle reviveu esta acusação de um ataque à inocência; e deixarei o Deão Inge[1] e Sir Arthur resolver esta questão. E quando ele nos acusa de indiferença em relação à eugenia e à procriação de criminosos e loucos, é suficiente que ele próprio tenha denunciado a perversão da ciência manifestada no caso dos macacos. Talvez ele permita que outros se ofendam igualmente com os esquemas que fazem os homens agirem como loucos e criminosos a fim de evitarem a loucura e o crime.

Há, contudo, outro aspecto dessa questão de estar certo ou errado, que não é tão freqüentemente associado conosco, mas que é igualmente consistente com nossa filosofia, e que tem uma notável relação com o tipo de questão aqui levantada pelo Deão Inge. Este aspecto se relaciona não só a questões em que o mundo está errado, mas, ainda mais especialmente, a questões em que o mundo está certo. O mundo, especialmente o mundo moderno, alcançou uma curiosa condição de ritual ou rotina; na qual podemos quase dizer que ele está errado mesmo quando está certo. Ele continua, em grande parte, fazendo as coisas razoáveis. Mas ele está rapidamente cessando de ter qualquer argumento razoável para fazê-las. Está sempre nos afirmando a morte da tradição. Está sempre nos denunciando por superstição; e suas próprias e principais virtudes são agora, quase inteiramente, superstições.

O que quero dizer é que quando estamos certos, estamos certos por princípio; e quando eles estão certos, estão certos por preconceito. Podemos dizer, se eles assim o preferirem, que eles estão certos por instinto. De qualquer forma, eles ainda estão contidos, por saudável preconceito, contra muitas coisas em direção as quais eles correriam pela sua própria lógica doentia. É mais fácil tomar exemplos muito simples e extremos; e alguns dos extremos estão muito mais perto de nós do que muitos imaginam.

Assim, muitos de nossos amigos e conhecidos continuam a entreter um saudável preconceito contra o canibalismo. O momento em que este próximo passo na evolução ética será dado parece ainda distante. Mas a noção de que não há muita diferença entre os corpos de homens e de animais – de que não estão, de nenhuma forma, distantes, mas muito próximos – é expressa em centenas de maneiras, como um tipo de comunismo cósmico. Podemos quase dizer que é expressa de todas as formas, exceto pelo canibalismo.

Essa noção é expressa, como no caso de Voronoff,[2] na colocação de partes de animais nos homens. Ela é expressa, no caso dos vegetarianos, na não colocação de partes de animais nos homens. É expressa quando se deixa um homem morrer como morre um cachorro, ou quando se considera mais patético a morte de um cachorro do que a de um homem. Alguns se inquietam sobre o que acontece com os corpos dos animais, como se estivessem certos de que um coelho se ressentisse em ser cozido, ou que uma ostra exigisse ser cremada. Alguns são ostensivamente indiferentes ao que acontece aos corpos dos homens; e negam toda a dignidade aos mortos e todo gesto de afeto aos vivos. Mas todos têm uma coisa em comum; consideram os corpos humano e bestial como coisas comuns. Pensam neles sob uma generalização comum; ou, na melhor das hipóteses, sob condições comparativas. Entre pessoas que chegaram a esta posição, a RAZÃO para desaprovar o canibalismo já se tornou muito vaga. Permanece como uma tradição e um instinto. Felizmente, graças a Deus, embora seja agora muito vaga, é ainda muito forte. Mas, embora o número dos mais ardentes pioneiros éticos que provavelmente começariam a comer missionários cozidos seja muito pequeno, o número daqueles dentre eles que conseguiriam explicar suas próprias razões reais para não fazê-lo é ainda menor.

A razão real é que todas essas sanidades sociais são agora as tradições dos antigos dogmas católicos. Como muitos outros dogmas católicos, eles são sentidos de uma maneira vaga mesmo pelos pagãos, na medida em que são pagãos sadios. Mas quando se trata de, não meramente senti-los, mas formulá-los, será descoberto que eles são uma fórmula da Fé. Este é o caso de todas aquelas idéias de que os modernistas mais desgostam, sobre “criação especial”,[3] sobre a imagem Divina que não acontece por mera evolução, e sobre o abismo entre o homem e as outras criaturas. Em resumo, são aquelas mesmas doutrinas pelas quais homens com o Deão Inge estão nos acusando, como coisas que nos impedem de ter uma completa confiança na ciência ou uma completa unidade com os animais. São elas que se interpõem entre os homens e o canibalismo – ou possivelmente as glândulas de macacos. Eles têm o preconceito; e que eles o retenham por muito tempo! Nós temos o princípio, e eles são bem-vindos quando o quiserem.

Se Euclides estivesse demonstrando com diagramas pela primeira vez e usasse o argumento da REDUCTIO AD ABSURDUM, ele teria agora somente produzido a impressão que seu próprio argumento era absurdo. Estou bem consciente de que exponho-me a esse perigo por estender o argumento de meu oponente a um extremo, que pode ser considerado uma extravagância. A questão é, por que é uma extravagância? Sei que, neste caso, será argumentado que a característica social do canibalismo é rara em nossa cultura. Pelo que sei, não há restaurantes canibais ameaçando se tornarem moda em Londres, como os restaurantes chineses. Antropofagia não é como Antroposofia, um assunto de conferências públicas; e, variadas como são as religiões e moralidades entre nós, cozinhar missionários ainda não é uma missão. Mas se alguém tem uma lógica tão modesta que não perceba o significado de um exemplo extremo, não tenho dificuldade em dar um exemplo muito mais prático e urgente. Há alguns anos, todas as pessoas sãs teriam dito que o Adamismo[4] era muito mais louco que a antropofagia. Um banqueiro que andasse sem roupa pelas ruas seria um contra-senso equivalente a um açougueiro que vendesse carne humana ao invés de carne de carneiro. Ambos seriam o surto de um lunático sob a ilusão de ser um selvagem. Mas temos visto os Novos Adâmicos ou o Movimento dos Sem Roupa se instituírem muito seriamente na Alemanha; com uma seriedade de que somente os alemães são capazes. Os ingleses são provavelmente ainda ingleses o suficiente para rirem e desgostarem disso. Mas eles riem por instinto; e eles desgostam somente por instinto. Muitos deles, com sua atual e confusa filosofia, teriam provavelmente uma grande dificuldade em refutar um professor prussiano de nudez, por mais que eles desejassem ardentemente dar nele um chute. Pois, se examinarmos as controvérsias correntes, descobriremos a mesma condição negativa e indefensável do caso da teoria do canibalismo. Todos os argumentos da moda usados contra o puritanismo levam, de fato, ao adamismo. Não quero dizer, claro, que eles não sejam muitas vezes praticamente saudáveis como contra o puritanismo; também não digo que não haja melhores argumentos contra o puritanismo. Mas digo que em relação à lógica pura, o homem civilizado baixou a guarda; e está, por assim dizer, nu contra os ataques da nudez. Desde que ele esteja meramente satisfeito em argumentar que o corpo é belo ou que o que é natural é certo, ele se rendeu ao adâmico em teoria, embora ainda possa demorar, queira Deus, um longo tempo antes que ele se renda na prática. Aqui, novamente o teórico terá de defender sua própria sanidade com um preconceito. Somente o teólogo medieval pode defendê-la com uma razão. Não preciso me aprofundar muito sobre esta razão; é suficiente dizer que ela é fundada na Queda do Homem, tal como o outro instinto, contra o canibalismo, é fundado na Divindade do Homem. O argumento católico pode ser colocado resumidamente dizendo-se que o corpo do homem não é o problema; o problema é a alma do homem.

Em outras palavras, se o homem fosse completamente deus, poderia ser verdade que todos os aspectos de seu ser corporal fossem divinos; tal como se ele fosse completamente uma besta, dificilmente poderíamos culpá-lo por qualquer dieta, por mais bestial que fosse. Mas dizemos que a experiência confirma nossa teoria sobre a complexidade humana. Esta não tem nada a ver com coisas naturais em si. Se narizes vermelhos misteriosamente fizessem os homens assassinar, faríamos leis para cobri-los; mas narizes vermelhos seriam tão puros quanto narizes brancos.

Em muitas pessoas modernas há uma batalha entre as novas opiniões, que eles não seguem até seus fins, e as antigas tradições, que eles não seguem até seus começos. Se eles seguissem adiante com as novas noções, isso os levaria até Bedlam.[5] Se eles seguissem retrospectivamente os melhores instintos, isso os levaria a Roma. Na melhor das hipóteses, eles permanecem em suspenso entre duas lógicas alternativas, tentando dizer a si mesmos, como o faz o Deão Inge, que eles estão meramente evitando dois extremos. Mas há esta grande diferença em seu caso: a questão em que ele está errado é, não importa sob que forma pervertida, uma questão de ciência, enquanto que a questão em que ele está certo é simplesmente uma questão de sentimento. Não preciso dizer que eu não uso a palavra aqui num sentido depreciativo, pois nessas coisas há um parentesco muito próximo entre sentimento e sentido. Mas o fato permanece de que todas as pessoas nessa posição podem apenas ser sentimentais. Toca a nós sermos também razoáveis.

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[1] William Ralph Inge (1860-1954), professor, escritor e padre anglicano. (N. do T.)
[2] Serge Abrahamovitch Voronoff (1866-1951), médico francês de origem russa, ganhou fama por sua técnica de extrair tecido de testículos de macacos para enxertá-lo em testículos humanos. (N. do T.)
[3] Diríamos hoje, design inteligente. (N. do T.)
[4] Crença do séc. II e II, que defendia uma nudez ritualística, à semelhança da nudez de Adão no Paraíso. (N. do T.)
[5] Nome popular do Hospital Santa Maria de Belém, em Londres, que é um sanatório de psicopatas. (N. do T.)
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Leiam, do livro "A Coisa": Por que sou católico, A Revolta contra as Idéias, A lógica e o tênis, Um pensamento simples.

Um comentário:

Renato Pessanha disse...

Caro Angueth: Sou de Campos dos Goytacazes, e sempre tive o desejo de ler algo de Chesterton que me fizesse conhecer sua posição como católico e britânico inteligente. Ele tem aquele "humour" tão famoso. Parece que ele está se dirigindo aos homens de nossa era: há filmes e fatos reais envolvendo canibalismo, e até um boxeador já tirou o pedaço da orelha de um contendor seu. E os filmes para jovens com vampirismo? Abraços católicos e votos de coragem. E o filme com Anthony Hopkins e Jodie Foster? Renato Pessanha, com Jesus e Maria sempre! Até o Triunfo!