03/05/2011

Machado de Assis e o Eclesiastes – Parte I: o Eclesiastes

Em O Desconcerto do Mundo
Gustavo Corção

Nota do blog: Compartilho com os leitores um trecho extraordinário de O Desconcerto do Mundo, livro que arrancou de Manuel Bandeira a seguinte frase, em bilhete enviado a Corção: o livro “precisa ser traduzido para todas as linguas, a fim de mostrar lá fora que nós também somos dignos do Prêmio Nobel.” Neste trecho, que dividi em dois posts, há, primeiro, uma exegese de Corção do Livro do Eclesiastes, e depois uma exegese do próprio Machado sobre o estranho livro bíblico.

Era o predileto de Machado de Assis esse livro estranho, desconcertante, que permitiu aos comentadores e exegetas a extensa gama de perplexidades que vai de um Pertersen, que denuncia o ceticismo e pessimismo do sábio Qohelet até o R. Pe. Buzy, que concebe a tese central do livro como uma filosofia otimista moderada do honesto meio-termo! E continua a ser o livro provocante, que assusta o leitor quando o citamos, ou quando afinamos nosso falar por seu diapasão. Aliás, apesar do movimento bíblico que corre paralelo ao movimento litúrgico, e apesar da encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII, não somente o Eclesiastes, mas toda a Bíblia permanece um livro fechado para a maioria dos católicos.[1] Em página famosa do Génie du Christianisme, Chateaubriand descreve o embaraço, o susto do católico mediando que pela primeira vez corre os olhos pelas páginas da Bíblia. É este então o Livro Santo?! Como discernir a palavra de Deus nesse amontoado de textos que parecem reunidos por acaso? Como ajustar a boa e sólida doutrina de bom comportamento e idéias medianas, a doutrina que a gente ouviu nos sermões ou leu nos livros edificantes, com essa torrente de fatos e personagens nem sempre louváveis, ou com essa erupção de imprecações e gemidos de desamparo?

É fácil imaginar o espanto desse leitor se a loteria das páginas folheadas o conduz àquele ponto onde alternativamente se exprimem o descrédito e o louvor da sabedoria, onde se diz que a vida é detestável e logo após se canta uma alegria de viver num tom que deixa divididos os exegetas, onde, em suma, a tese e a antítese se acotovelam. Como também é fácil imaginar o choque desse leitor na passagem do livro de Jó (clique também aqui) onde a voz de Deus, dentro da tempestade, repreende os amigos de Jó, cujos discursos, pelo tom razoável e piedoso, tanto se assemelham ao que se ouve nos bons sermões paroquiais. 

No Eclesiastes a dificuldade começa pelo pluralismo de tons. Há diversas vozes. Haverá diversos autores? O Pe. Buzy, comentador do livro na Bíblia dirigida por Louis Pirot, pronuncia-se a favor da pluralidade de autores, que seriam os seguintes: Qohelet, autor dos discursos principais sobre as decepções e vaidades da vida; um piedoso judeu, hasid em hebraico, incumbido de retocar e mitigar as asperezas da primeira voz; um sábio, hakham, autor de numerosas sentenças disseminadas pelo livro sem ordem aparente; e finalmente o epiloguista, que fala de Qohelet na terceira pessoa e que encerra o livro inopinadamente em termos de fidelidade aos mandamentos. Mas R. Pautrel S.J., comentador do opúsculo publicado pela Escola Bíblica de Jerusalém, acha perfeitamente admissível a unidade de autor desde que se tome o pluralismo de vozes como uma discussão interior, como uma espécie de assembléia dos personagens tirados por clivagem de uma agonia íntima, de uma perplexidade vivida. Nesse sentido, Qohelet, o personagem mais eloqüente e mais embaraçador, seria uma espécie de eu antitético, um antieu, ou um contraditor que resolve exprimir brutalmente suas dificuldades. Para o Pe. Pautrel, que me parece muito mais fino do que o Pe. Buzy, o nome de Qohelet já por si só sugere uma assembléia interior, esse ecclesia dos debates platônicos. (...) 

Fala então Qohelet, e diz o que se vê sob o sol, isto é, diz o que é a vida limitada aos horizontes terrestres. Tudo é vão, e de nada lhe vale a sua sabedoria, porque é a mesma a sorte do louco e do sábio. Chega a maldizer a vida e o dia em que nasceu. Chega a dar parabéns ao aborto. Pois tudo é decepção, tempo perdido, vazio, vaidade, perseguição do vento. E conclui que devemos comer e beber alegremente, assim como hoje se diria que é isto o que se leva desta vida.  É a nossa parte.

Diante de tão subversiva doutrina, o Pe. Buzy se assusta e procura nos convencer que Qohelet apenas verbera os excessos da sabedoria, a estudiosidade curiosa e não a própria sabedoria. Sua filosofia seria assim a do honesto meio-termo. (...)

Mais corajosa e muito mais fina parece ser a interpretação de R. Pautrel, que se situa na mesma linha adotada por Setillange (...).

No debate interior a que se refere o comentador da Escola Bíblica de Jerusalém, Qohelet aparece como um sábio-louco, ou como um sábio que desatou por instantes a mordaça de um doido. E até o deixou usar, na antítese das decepções, palavras que cantam as alegrias da vida como as do insensato do Livro da Sabedoria (Sab. II, 8-9): “Coroemo-nos de rosas antes que elas murchem! Não faltemos aos lugares de prazer, e atrás de nós deixemos o sulcos de nossos gozos, porque essa é a nossa parte.”

Os outros personagens respondem ao apaixonado libelo, à filosofia do absurdo de Qohelet, com palavras de sabedoria positiva e obediente à fé; respondem com paciente obstinação; respondem como Abraão respondeu ao Senhor quando preparou obedientemente a imolação de Isaac. Mas o hasid piedoso e o judicioso hakham não conseguem neutralizar o machadiano observador que observa o que se passa sob o sol. E não conseguem porque não possuem ainda as bem-aventuranças, e a chave da ressurreição, a única que pode responder adequadamente aos absurdos da vida. E o epiloguista encerra essa estranha mesa-redonda de uma alma ardente dividida com palavras inopinadas, que deixam o debate mais aberto do que nunca: “Além disso, meu filho, fica prevenido de uma coisa: escrever livros é um trabalho sem fim que cansa o corpo. Dou por terminado o discurso. Se bem entendeste, teme a Deus e guarda os mandamentos ...” Como assim? Se bem entendi o quê? Terminado como? A tentativa de exegese racionalista se ressente de uma falta de finura que o erudito, suposta a possibilidade de tal conversão, poderia adquirir na leitura de Machado de Assis, de Sterne, de Camões. Essa leitura profana não traz autoridade para orientar a interpretação dos textos sagrados, mas tem a virtude de aguçar a alma e permitir melhor sincronismo como as intenções e subintenções de um autor difícil. O que então se depreende é que o ácido tom do Eclesiastes revela uma lúcida e penetrante ciência das coisas vistas sob o sol. Essa ciência, que tem ares de loucura, é verdadeira, pungentemente verdadeira, desde que se observe bem o condicionamento estabelecido pela clave fundamental do discurso: sub sole. É um pessimismo – não um brutal e degradante pessimismo como o dos modernos que academicamente se instalam e vivem da filosofia do absurdo – é um pessimismo estimulante, como o dom de Ciência que desabrocha nas lágrimas. É também uma pedagogia de provocação, contra o torpor criado pelo naturalismo e contra a secura do racionalismo cientificista, que nos leva a procurar mais alto a chave de nossa sorte. Embora em pauta diferente, O Livro do Eclesiastes tem a mesma intenção do Livro de Jó, e inscreve-se dentro do depósito sagrado como uma espécie de demonstração por absurdo da transcendência de nossa vocação, pois de outro modo, se tudo se limita ao que se vê sob o sol, ao castigo dos bons, à impunidade dos maus, à glória dos impostores, e ao massacre dos inocentes que se tornou uma rotina das civilizações, então a vida é realmente absurda e só nos resta comer e beber, como dirá o Apóstolo, ou só nos resta a coroa de rosas, enquanto não murcham, ou então o riso, a mofa, a figa aos prestígios do mundo e a língua de fora aos astros indiferentes. “Eia! Chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te. É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.”

Leiam também Machado de Assis e o Eclesiastes - Parte II: exegese machadiana.


[1] Se isto era verdade em 1965, imagine agora, depois de 50 anos de CVII! (N. do Blog)

2 comentários:

Alexandre Vieira disse...

Saudações. Após ler o Eclesiastes digo que o livro, em quase sua totalidade, parece a mim como se fosse os questionamentos pessoais de um ateu : "Tudo é ilusão (Nada faz sentido)", "No mundo dos mortos não há nada", "Neste mundo a justiça e a injustiça são tratadas da mesma forma", "Todo o fruto do meu trabalho ficará para quem nada fez por merecê-lo e isto me frustra" etc. Sabemos que ao chegar a tais conclusões o desesperado comete suicídio mas neste ponto o Eclesiastes toma o posicionamento do ateu sensato: "O melhor a fazer nesta vida é procurar aproveitá-la bem, aproveitando o fruto dos seus trabalhos". Todavia, nos dois últimos parágrafos vêem-se palavras que expressam o mais legítimo Cristianismo, palavras que parecem saídas do Catecismo da Igreja Católica: "Devemos temer a Deus e obedecer a seus mandamentos, pois para isto fomos criados" e "Prestaremos contas a Deus de nossos atos". Pergunto: Isto saiu da pena de Salomão ou foi a Igreja (com uma intenção pedagógica) que pôs tais versículos ali?

Antônio Emílio Angueth de Araújo disse...

É de Salomão meu caro, e tem a definição, da Igreja, de livro inspirado.
Abraço.