06/05/2011

Machado de Assis e o Eclesiastes – Parte II: exegese machadiana


Em O Desconcerto do Mundo
Gustavo Corção


Recomendamos a leitura de Machado de Assis a quem desejasse apurar o ouvido para o áspero e aflitivo timbre do Eclesiastes. Agora sugerimos a leitura do livro atribuído a Salomão a quem desejar compreender um pouco melhor o tão caluniado pessimismo de Machado de Assis. “No Eclesiastes há tudo para todos” dizia já em 1895 o cronista da A Semana. Haverá, pois, para os críticos, uma chave que permita abrir os cofres secretos desse mesmo autor que em outra crônica, de 1893, escrevia: “Onde há muitos bens, há muitos que os comam, diz o Eclesiastes, e eu não quero outro manual de sabedoria.” São numerosas as passagens em que Machado se refere a esse manual de sabedoria tão adequado ao seu estilo, mas o que nos autoriza a dizer que o livro sagrado exerceu poderosa influência sobre o autor de Brás Cubas não é a freqüência da citação. É antes a profunda, a misteriosa perspicácia com que Machado penetrou o espírito do angustiado Qohelet. 

Nas páginas anteriores, seguimos a hermenêutica traçada pelos sábios comentadores, pela qual o Eclesiastes será um livro existencial, uma espécie de filosofia do absurdo, um manual de contra-senso escrito na pauta da limitação marcada pelos horizontes terrestres. Se a sorte do homem é o que se vê sob o sol, então a vida é um disparate. A forte estimulação desse livro consiste na confiança incondicionalmente posta na fé dos mandamentos. Esses, aconteça o que acontecer, não podem ser absurdos. Serão incompreensíveis como os sofrimentos de Jó e como o sacrifício de Abraão. No dinamismo das propulsões negativas, ou melhor, do vácuo produzido por essa bomba pneumática, tira-se a conclusão: a sorte do homem não pode limitar-se ao que se vê. Ou ainda, do que se vê tira-se todo um prenúncio do que está escondido. 

Os autores das modernas filosofias existencialistas optaram pelo absurdo. O que vale dizer que não optaram, e que ficaram detidos, imobilizados, sem ímpeto para atravessar o espelho e entrar no mundo das maravilhas. Dessa paralisação da inteligência resulta um pessimismo real, profundo, desconsolado e degradante, que não era, de modo algum, o pessimismo de Machado de Assis. Melhor do que a maioria dos nossos críticos, o inglês que comentou a tradução de Brás Cubas chamava a atenção para o que denominou pessimismo estimulante. 

Até seus últimos dias, na desolação da velhice e da viuvez, Machado de Assis conserva intato o senso moral. Se nos romances parece ter atingido um cansaço de vida e um desconsolo supremo, aí está sua correspondência para nos mostrar o outro lado do homem que persiste em crer no homem e na realidade moral. E a explicação desse dualismo está no Eclesiastes, que é por assim dizer um livro onde o principal é justamente o que falta: a notícia de nossa transcendência, e de nossa ressurreição. O princípio da complementaridade, que tem tanta importância nas teorias interpretativas da física moderna, e que também dá uma das regras capitais para a interpretação do Livro Santo, mostra-nos o desolado discurso do Qohelet como um sequioso apelo à outra metade da história que só muito mais tarde será revelada. O sábio-louco diz “tenho sede”, como Cristo na cruz, momentos antes da ressurreição. Sede de complemento, de completação, de consumação. Sede de solução. 

Ora, há uma passagem de sua obra onde se vê que Machado de Assis compreendeu muito bem essa complementaridade dos mistérios de Cristo: é aquela em que, ao Eclesiastes, contrapõe o Sermão da Montanha. Em 25 de março de 1894, o cronista da A Semana, disfarçando com guizos de frivolidade a sua sabedoria, entra a descrever um ofício da Paixão a que assistira. E termina assim a crônica como aquele seu ar de quem não sabe que está dizendo coisas enormes: 

“Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

– Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
– Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados.
– Vêde a injustiça do mundo. Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.
– Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
– Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males ...
– Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da  justiça, porque deles é o reino do céu. 

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de Esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo como o povo. E o sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos ...” 

Como se explica, pergunto eu, sem apelos ao caso, essa aproximação que tem finuras de sutil hermenêutica? Nós outros, depois de lermos muito sábios exegetas, chegamos a essa mesma conclusão. Depois de vivermos longos anos no convívio dos doutores em teologia, conseguimos entrever as escondidas intenções do antigo escritor inspirado. Machado achou aquilo sozinho, talvez na Rua do Ouvidor, porventura na mesma esquina onde teve a notícia do 15 de Novembro: “Disseram-me na Rua do Ouvidor que os militares proclamaram a república ...”    

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