06/10/2010

O ESBOÇO DA QUEDA

Do livro A Coisa, 1929
Gilbert Keith Chesterton

Tenho observado a curiosa ação ludibriosa de retaguarda que tem sido tomada para acobertar o recuo dos darwinistas. Um exemplo da mesma coisa surgiu em conexão com um famosíssimo nome; na verdade, com dois nomes famosos. O Sr. H.G. Wells respondeu ao Sr. Belloc, que escreveu uma crítica a Outline of History [Esboço da História],[1] principalmente a fim de protestar contra um certo tom de arbitrária generalização e simulado conhecimento do desconhecido. Um caso típico se encontrava no que o Sr. Wells dizia de homens que desenhavam renas nas cavernas: “Parecia não haver em tais vidas espaço para a especulação e a filosofia,” ao que o Sr. Belloc, como é natural, respondeu: “Por que não, em nome de Deus?” Mas os detalhes dos vários trabalhos em questão não me interessam imediatamente aqui; eles predominantemente dependem do hábito de falar como se cada pintura rupreste tivesse sua data gentilmente nela inscrita: ou cada machadinha de pedra polida pudesse trazer a inscrição 400.000 a.C., ou possivelmente, a.E.H., antes do Esboço da História. No momento, o único ponto de contato é aquele que se relaciona à nossa crítica anterior, a respeito do presente estado do darwinismo. E o que me impressiona é que mesmo o Sr. Wells, não raro um caloroso polemista, esteja relativa e realmente frio sobre o assunto; e sua defesa de Darwin é muito mais uma escusa do que uma apologia. De fato, como tantas outras apologias modernas, ela quase se resume em alegar que Darwin não era darwinista.

Os evolucionistas vitorianos se devotaram a declarar a grandeza da tese de Darwin. Os novos evolucionistas parecem devotados a explicar sua pequenez. Eles realmente parecem alegar, como na velha anedota, que ela pariu uma teoria, mas uma teoria muito pequena. Algumas das palavras do Sr. Wells podem, seguramente e sem injustiça, ser consideradas apologéticas. Ele não tenta, como o professor previamente mencionado, superar a palavra “origem” falando sobre “a causa da origem”. Então ele se concentra na palavra “espécies”, como se a evolução não tivesse sido apenas aplicada a uma sub-divisão. Ele acrescenta que Darwin não a aplicou, no início, nem mesmo ao homem. O que, fico a pensar, os darwinistas vitorianos teriam pensado tivessem eles ouvido, numa defesa do darwinismo, que este não se aplicava ao homem? Será que isto significa que apenas o primeiro livro de Darwin é divinamente inspirado? Novamente, o Sr. Wells diz que a seleção natural é senso comum. E sem dúvida, se ela apenas significar que o mais capaz de sobreviver sobrevive, ela é senso comum. Podemos também acrescentar que isto é conhecimento comum. Mas será só isso, que Darwin esteja sendo defendido porque ele apenas descobriu o que era conhecimento comum? A questão real, claro, é aquela proclamada pelo Sr. Belloc, quando disse que não é necessário contar para ninguém que numa enchente o peixe vive e o gado morre. A questão é: em quanto tempo o gado se transforma em peixe? Isto seria um exemplo da verdadeira teoria darwinista; e ela é agora minimizada, representada como apenas um elemento de evolução e sem nem mesmo os elementos de explicação. Imaginamos que haja um saudável preconceito por trás de tudo. O Sr. Wells, de forma indignada, repudia a blasfêmia pronunciada pelo Sr. Belloc, que o chamou de patriota. Mas é verdade; o profundo orgulho nacional inglês tem muito a ver com essa devoção. E ao invés de privar a Inglaterra de seu Darwin, eles privaram Darwin de sua descoberta.

Quando um homem é um gênio tão grande quanto o Sr. Wells, admito que soa provocativo chamá-lo de provinciano. Mas se ele desejar saber porque alguém o faria, será suficiente apontar silenciosamente para o título de uma de suas páginas: “Onde fica o Jardim do Éden?” Descer a uma coisa dessas, e considerá-la significativa ao conversar com um católico inteligente sobre a Queda, isto é provincianismo; caro e orgulhoso provincianismo. Os camponeses franceses, de quem o Sr. Wells fala, não são provincianos neste sentido. Como o próprio Sr. Wells admite, eles nada sabem sobre Darwin e evolução. Eles não sabem e não ligam; é onde eles são muito melhores filósofos que o Sr. Wells. Eles guardam a filosofia da Queda, na forma de uma simples história que pode ser histórica ou simbólica, mas, de qualquer forma, não pode ser mais importante do que o que ela simboliza. Em comparação com essa verdade, não vale sequer um centavo o fato de alguma teoria da evolução ser verdadeira ou não. Quer o jardim seja ou não uma alegoria, a verdade em si mesma pode muito bem ser simbolizada por um jardim. E a questão é que o Homem, seja o que for, não é meramente uma das plantas do jardim que desatolou suas raízes do solo e perambulou com elas, como se fossem pernas, ou, ao modo de uma dália dupla, tenha desenvolvido olhos e ouvidos duplicados. Ele é algo mais, algo estranho e solitário; é mais parecido com a estátua que foi anteriormente o deus do jardim; mas a estátua caiu de seu pedestal e permanece quebrada por entre plantas e ervas daninhas. Essa concepção não tem nada a ver com o materialismo quando se refere aos materiais. A imagem pode ser feita de madeira; a madeira pode ter vindo do jardim; o escultor pode presumivelmente, e provavelmente, permitir a sensação de crescimento e textura da madeira em que ele esculpiu e se expressou. Mas minha fábula preserva as duas verdades da verdadeira escritura. A primeira é que a madeira foi esculpida ou estampada com uma imagem, deliberadamente, e desde fora; neste caso a imagem de Deus. A segunda é que esta imagem foi danificada e desfigurada, de modo que ela está agora ao mesmo tempo melhor e pior que as meras plantas do jardim, que estão perfeitas segundo seus próprios planos. Há espaço para muita especulação sobre a história da árvore antes de ter se tornado uma imagem; há espaço para muita dúvida e mistério sobre o que realmente aconteceu quando ela se tornou uma imagem; há espaço para muita esperança e imaginação sobre o que ela se tornará quando for recomposta e transformada numa estátua perfeita que nunca vimos. Mas há duas coisas imutáveis: que o homem foi elevado inicialmente e caiu; e responder a isso dizendo, “Onde está o Jardim do Éden?” é como responder a um filósofo budista dizendo, “Quando você foi um macaco pela última vez?”.

A Queda é uma visão de vida. Ela não é apenas a única visão esclarecedora da vida, mas a única encorajadora. Ela afirma, contra as únicas filosofias alternativas reais, aquelas dos budistas, dos pessimistas e dos prometéicos, que nós usamos impropriamente um mundo bom, e não simplesmente que estamos presos num mundo mau. Ela remete o mal ao uso errado da vontade, e assim declara que ele pode eventualmente ser corrigido pelo correto uso da vontade. Qualquer outro credo, exceto este, é uma forma de rendição ao destino. Um homem que guarda esta visão de vida descobrirá que ela ilumina milhares de coisas; sobre as quais, as éticas evolucionárias não têm nada a dizer. Por exemplo, sobre o colossal contraste entre a inteireza da máquina humana e a contínua corrupção de seus motivos; sobre o fato de que nenhum progresso social parece nos livrar do egoísmo; sobre o fato de que os primeiros, e não o últimos, homens de qualquer escola ou revolução são geralmente os melhores e os mais puros; tal como William Penn foi melhor que um quacker milionário ou Washington melhor do que um magnata americano do petróleo; sobre aquele provérbio que diz: “O preço da liberdade é a eterna vigilância,”[2] que é propriamente apenas um modo de declarar a verdade do pecado original; sobre aqueles extremos de bem e mal em que o homem excede a todos os animais pelos padrões do céu e do inferno; sobre aquele sentido de perda sublime que está em cada verso de toda grande poesia, e em nenhum outro lugar em maior quantidade do que na poesia dos pagãos e céticos: “Miramos o antes e o depois, e nos consumimos pelo que não é”;[3] que clama contra todos os arrogantes e progressistas, das profundezas e abismos do coração partido do homem, de que a felicidade não é somente uma esperança, mas também, em certo estranho sentido, uma memória; e que somos todos reis no exílio.

Para o indivíduo que sente que esta visão de vida é mais real, mais radical, mais universal que as simplificações baratas que se opõem a ela, é um choque de trivialidade perceber que alguém, quanto mais um homem como o Sr. Wells, possa supor que tudo dependa de algum detalhe a respeito de um jardim na Mesopotâmia, como aquele identificado pelo general Gordon. É difícil encontrar algum paralelo de tal incongruência; pois não há similaridade real entre os acontecimentos e eventos mortais e confusos que se passaram conosco, que foram divinos, embora misteriosos, e as escrituras que são sagradas, embora simbólicas. Mas alguma sombra de comparação poderia ser feita com os mitos modernos. Digo mitos em que homens como o Sr. Wells geralmente acreditam; o Mito da Carta Magna ou o Mito do Mayflower. Ora, muitos historiadores sustentarão que a Carta Magna é algo insignificante; que foi, em grande medida, um item do privilégio medieval. Mas suponha que um dos historiadores que tem esta visão começasse a discutir entusiasticamente conosco sobre a fabulosa natureza de nossa imagem da Carta Magna. Suponha que ele produzisse um mapa e documentos para provar que a Carta Magna não fora assinada em Runnymede, mas em algum outro lugar; como acredito que alguns eruditos assim consideram. Suponha que ele criticasse a heráldica falsa e as vestimentas fantasiosas que aparecem nos museus de cera. Poderíamos pensar que ele estivesse indevidamente entusiasmado com um detalhe da história medieval. Mas com que assombro percebemos finalmente que o homem realmente considerava que todas as modernas tentativas de estabelecer a democracia estão erradas, que todos os parlamentos teriam de ser dissolvidos e todos os direitos políticos destruídos, uma vez que fosse admitido que Rei João não assinou aquele documento especial, naquela pequena ilha no Thames! O que pensaríamos dele, se ele realmente pensasse que não temos nenhuma razão para gostar da lei e da liberdade, a não ser a autenticidade daquela amada assinatura real? Isto é, em grande medida, como eu sinto quando descubro que o Sr. Wells realmente imagina que a luminosa e profunda filosofia da Queda apenas significa que o Éden se localizava em algum lugar da Mesopotâmia. Ora, a única explicação para um grande homem como o Sr. Wells ter um pequeno preconceito, como este sobre a serpente, é que ele vem de uma tradição religiosa que considerava o texto da Escritura dos Hebreus como a única autoridade e esquecera tudo sobre a grande metafísica medieval e sua discussão das idéias fundamentais.

O homem que faz isso é provinciano; e não há mal em dizê-lo, mesmo quando ele é um dos maiores homens de letras e uma glória da Inglaterra.

[1] No Brasil, esta obra teve várias edições na década de 1950 com o título História Universal. (N. do T.)
[2] Esta citação é de um discurso feito em 1790 por John Philpot Curran (1750-1817), advogado irlandês, orador e patriota. (Nota da edição da Ignatius Press.)
[3] We look before and after, and pine for what is not, do poema To a Skylark, de Shelley. (N. do T.)

2 comentários:

Pedro Felipe disse...

Professor! Parabéns pelo seu trabalho! Em meio a tantos horrores, nós nos unimos para defender a Fé! poço que o Senhor visite e Divulgue um Blog que nasceu agora a pouco, meu e de Um amigo que irá para a Alemanha,FSSP, para se tornar Padre! obrigado! E que Deus lhe Conceda o Céu!

OBS: Somos Alunos de Filosofia da UFPE!

Pedro Felipe disse...

Ia esuqecendo o Link: http://dominarosarii.blogspot.com/ Obrigado!