Gilbert Keith Chesterton
The Illustrated London News, 2/12/1905
Nota introdutória do blog: Neste artigo de jornal, nos deparamos com a defesa intransigente de Chesterton do senso comum; da racionalidade do comportamento da grande maioria das pessoas, em grande parte da existência do homem na terra. Ele defendia permanentemente este senso-comum contra as excentricidades do mundo moderno, excentricidades estas que surgiam, e ainda surgem, revestidas das credenciais das novidades avassaladoras, mas que são apenas velhas idéias fracassadas. Isso valeu a Chesterton o título de “apóstolo do senso comum”.
As pessoas que mais falam em “mudança” e “progresso” são as que menos conseguem imaginar, realmente, qualquer alteração nos atuais testes e métodos de vida. Por exemplo, elas fazem do “ler e escrever” um teste para todas as idades e todas as civilizações. Ler e escrever são em si meras realizações, realizações deliciosas e empolgantes, como tocar o bandolim ou andar de montanha russa. Algumas realizações estão na moda num momento, outras noutro. Em nossa civilização, quase todos podem ler. Na civilização sarracena, quase todos podiam cavalgar. Mas as pessoas aplicam os três “R’s”[1] a toda a história humana. Elas dizem, num tom de voz de quem está chocado: “Você sabia que na Idade Média não se conseguia encontrar um cavalheiro em dez que soubesse assinar o próprio nome?” Isto é análogo a um cavalheiro medieval ter dito horrorizado: “Você sabia que no reino de Eduardo VII, sequer um em dez cavalheiros sabia como usar um falcão mensageiro?” Ou, falando mais precisamente, seria como se um cavalheiro medieval expressasse perplexidade porque um moderno cavalheiro não consegue adornar seu brasão de armas. O alfabeto é um conjunto de símbolos arbitrários. No século XIV, todo cavalheiro conhecia um; no século XX, todo cavalheiro conhece outro. O primeiro cavalheiro é precisamente tão ignorante por não saber que “gato” se soletra g-a-t-o, quanto é o segundo cavalheiro por não saber que a Cruz de Santo André é chamada de santor, ou que verde e escarlate não combinam em heráldica.
Falamos, com típico fanatismo e estreiteza, do Alfabeto. Mas há, na verdade, um grande número de alfabetos, além do alfabeto de letras. O alfabeto de letras era pouco usado na Idade Média: esses outros alfabetos são pouco usados agora. Certo número de soldados aprendem a transmitir suas mensagens acenando abruptamente pequenas bandeiras. Outros conversam entre si de um modo íntimo e loquaz por meio de reflexos da luz do sol em espelhos. Esses alfabetos são agora realizações tão peculiares e restritas quanto a escrita era na Idade das Trevas. Eles podem se tornar algum dia um hábito tão difundido e universal quanto a escrita é agora. Em alguma era futura poderemos ver uma dama e um cavalheiro, um de cada lado da mesa, discutindo de forma animada acenando bandeirinhas um para o outro. Poderemos ver distintas senhoras nas janelas de seus aposentos, com seus espelhos de maquiagem voltados para a rua, agitando-os violentamente a fim de se comunicarem como uma amiga a alguns quilômetros de distância. Isto será especialmente satisfatório, pois lhes proporcionará um uso para seus espelhos, artigos que elas, no presente, consideram inteiramente sem raison d’être.
Quão estranho é, então, que tão constantemente pensemos que a educação tenha algo a ver com tais coisas como ler e escrever! Ora!, educação real consiste em não ter nada a ver com coisas como ler e escrever. Ela consiste, no mínino, em ser independente delas. A educação real consiste no fato de que vemos além de símbolos e de meros mecanismos da época em que nos encontramos: a educação consiste precisamente na percepção de uma simplicidade permanente que sobrevive por trás de todas as civilizações; a vida que é mais que alimento; o corpo que é mais que vestuário. O único objetivo da educação é fazer-nos ignorar os meros esquemas de educação. Sem educação estamos num perigo horrível e mortal de levar a sério as pessoas instruídas. A última das modas da cultura, o último dos sofismas do anarquismo nos arrebatarão se não formos educados: não saberemos quão antigas são as novas idéias. Pensaremos que a Ciência Cristã[2] é realmente todo o cristianismo e toda a ciência. Pensaremos que as cores artísticas são apenas as cores da arte. O homem deseducado sempre se importará excessivamente com complicações, com novidades, com a moda, com a coisa mais recente. O homem deseducado será sempre um dândi intelectual. Mas o negócio da educação é nos contar a respeito de todas as diversas complicações, de toda a estonteante beleza do passado. A educação impõe-nos conhecer, como disse Arnold,[3] todas as melhores literaturas, todas as mais belas artes, todas as melhores filosofias nacionais. A educação nos impõe conhecê-las todas para que possamos passar sem todas elas.
Outro dia, vi num jornal um surpreendente exemplo de tudo isso. Parece que a Duquesa de Somerset visitou uma escola pública em algum lugar em que as crianças aprendiam contos de fadas, e em seguida ela visitou um orfanato em algum outro lugar e disse que contos de fadas estão repletos de “contra-sensos”, e que seria muito melhor ensinar às crianças sobre Júlio César “ou outros grandes homens”. Aqui temos uma completa incapacidade de distinguir entre o normal e eterno, e o anormal ou acidental. Orfanatos são acidentais e anormais; eles serão todos consumidos pela ira de Deus. Escolas públicas são anormais; encontraremos afinal, espero, algum tipo mais razoável de educação democrática. Duquesas são anormais; elas são um produto peculiar da combinação da velha aristocracia com a nova mulher. Mas o conto de fadas é normal como pão e leite. A civilização muda; mas o conto de fadas nunca muda. Alguns dos detalhes do conto de fadas podem nos parecer estranhos; mas seu espírito é o espírito do folclore; e folclore é, em tradução precisa, a expressão alemã para senso-comum. A ficção, a moderna fantasia e todo aquele mundo excêntrico em que vive a Duquesa de Somerset podem ser descritos em uma frase. A filosofia deles significa coisas ordinárias vistas por pessoas extraordinárias. O conto de fadas significa coisas extraordinárias vistas por pessoas ordinárias. O conto de fadas está repleto de saúde mental. O conto de fadas consegue ser mais são a respeito de um dragão de sete cabeças que a Duquesa de Somerset sobre a escola pública.
Pois todo o negócio dos contos de fadas é simplesmente o antigo e duradouro sistema da educação humana. Um dragão de sete cabeças é, talvez, um monstro muito assustador. Mas uma criança que nunca ouviu falar dele é um monstro muito mais assustador. O mais louco grifo ou quimera não é uma suposição tão extravagante quanto uma escola sem contos de fadas. Através dos comentários superficialmente registrados da Duquesa de Somerset pode-se ler a obscura e extraordinária opinião de que um conto de fadas é algo fantástico, algo artificial, algo da natureza de uma pilhéria. É claro que o diametralmente oposto é verdadeiro. Os contos de fadas são a mais antiga, a mais séria e a mais universal forma de literatura humana. É a escola pública que é fantástica. É o orfanato que é artificial. É a Duquesa de Somerset que é uma pilhéria. Toda a raça humana que vemos andar por todos os lugares é uma raça mentalmente alimentada com contos de fadas tão certamente quanto é uma raça fisicamente alimentada com leite. Se você abolisse os dragões de sete cabeças, você simplesmente aboliria as crianças. Alguns pequenos girinos desumanizados e de cabeças inchadas poderiam permanecer, representando uma lasciva pretensão de infância; mas eles provavelmente morreriam cedo, especialmente se tivessem sido criados à base de Júlio César e sua vida. Algumas partes da vida de Júlio César, se você contasse cada detalhe delas, pareceriam ser um pouco inadequadas para a edificação de crianças; especialmente suas primeiras aventuras. Mas se cada detalhe de sua vida fosse contado, a história começaria com uma vívida descrição do quanto ele gostava de contos de fadas. De alguns dos contos de fadas ele continuou gostando até o fim de sua vida, pois ele era excessivamente supersticioso, como o são todos os homens de grande intelecto que não encontraram uma religião.
Temos aqui, então, um curioso exemplo de uma pessoa tomando erradamente uma atmosfera social temporária como se fosse a eterna sanidade. Pois, para começar, mesmo na simples questão do fato físico, os contos de fadas são um quadro da vida permanente da grande massa da espécie humana muito mais realista que a mais realista ficção. A maior parte da ficção realista trata das modernas cidades – isto é, de um curto período de transição, no menor recanto do menor dos quatro continentes. Os contos de fadas tratam daquela vida do campo, do casebre e do palácio, daquelas relações simples com a raposa e com o rei, que são realmente a experiência do maior número de homens durante o maior número de séculos. O fazendeiro real, na maior parte dos lugares reais, manda seus três filhos procurarem a própria sorte; ele sabe excepcionalmente bem que eles não a encontrarão com ele. O rei real, da maioria das casas reais da terra, está realmente pronto a oferecer a algum excêntrico aventureiro “a metade de seu reino”. Seu reino é, para começar, tão excepcionalmente pequeno que a divisão não parece anormal. Mesmo nestas questões físicas, o conto de fadas parece incrível apenas porque estamos numa posição algo excepcional. Parece-nos incrível porque a grande civilização que construímos é uma coisa especialista, singular e algo mórbida. Em resumo, ele nos parece incrível porque nós próprios logo nos tornaremos incríveis.
No mesmo jornal, ou em algum outro similar, deparo-me com outro exemplo da mesmíssima falta de educação ampla e de senso de proporção histórico. Outra senhora, de análoga posição social, escreveu, no Daily Telegraph, sugerindo que as crianças das escolas públicas deveriam ser desencorajadas a se vestirem – ou melhor, que seus pais deveriam ser desencorajados a vesti-las – de modo sofisticamente extravagante, com laços, veludos e fitas. Ela insistia que os garotos de Eton ou Harrow[4] deviam se vestir com sobriedade, de preto e branco, ou cinza. Mas ela não percebe que isso acontece apenas porque, neste momento, a moda da aristocracia é se vestir com sobriedade, de preto e branco, ou cinza. Um garoto de Eton se veste sobriamente, não porque isto seja viril, mas porque está na moda. E ela não parece ter consciência de que, há não mais de um século, toda a aristocracia se vestia com laços, veludos e fitas. Os pais de crianças pobres estão novamente fazendo a coisa humana normal. Estão vestindo suas crianças como os cavalheiros se vestiam ontem, e como podem estar se vestindo amanhã.
[1] Os três erres se referem às palavras, em inglês, relativas às supostas três habilidades básicas de uma educação orientada: reading [leitura], writing [escrita], arithmetic [aritmética]. As palavras, embora não comecem todas com “r”, têm um fonema forte que envolve esta letra. (N. do T.)
[2] Religião fundada em 1866 por Mary Baker Eddy. Seus adeptos acreditam que o homem e o universo são coisas espirituais em si e que o mal e o erro são produtos da existência material. Ver Chesterton e a Ciência Cristã. (N. do T.)
[3] Matthew Arnold foi escritor e crítico cultural inglês. Foi um dos mais influentes escritores ingleses do século XIX. (N. do T.)
[4] Escolas particulares da alta nobreza inglesa. Eton foi fundada no século XV e Harrow no século XVI. (N. do T.)
2 comentários:
Excelente artigo! Mais uma vez parabéns professor. Se não fosse suas traduções de Chesterton esse autor estaria ainda mais desconhecido entre nós...
THE DIABOLIST
Gilbert Keith Chesterton
http://amigocruz.blogspot.com/
Retirei da Revista a Ordem.
Abraço em Cristo!
Angueth, há bastante tempo não lia seu blog. Mas quando li esta tradução, quase me emocionei. O que Chesterton diz neste texto é o que tenho sentido desde a infância e é o que tenho tentado verbalizar sem qualquer êxito. Creio que se a humanidade parasse de se opor ao verdadeiro racionalismo, o racionalismo das crianças, ela seria mais pragmática.
Confesso! Eu nunca faria uma tradução melhor do presente texto. Meus parabéns!
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