28/04/2011

Gustavo Corção, o Chesterton brasileiro

Nota do blog – O título deste post é, na verdade, o título de um post futuro, que ainda vou escrever. Quero mostrar num futuro próximo que nenhum escritor brasileiro, dos poucos que foram influenciados pelo autor inglês, foi tão chestertoniano quanto Gustavo Corção. Não examinarei Três alqueires e uma vaca, que é um livro escrito sobre Chesterton, de uma forma completamente chestertoniana; ou seja, um livro sobre Chesterton, mas não inteiramente biográfico. Um livro que o próprio autor admite ter escrito com Chesterton, a quatro mãos. Quero examinar, sobretudo, A descoberta do outro, o primeiro livro escrito por Corção. Mas quero agora apenas compartilhar com meus leitores este artigo de nosso Chesterton brasileiro sobre o Chesterton inglês. O título do artigo é simplesmente G.K. Chesterton. É um artigo que eu gostaria de ter escrito, tivesse eu a competência de um Corção, pois expressa muito de minha própria experiência com o gigante da rua Fleet.
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Graças à vigilância de Antônio Olinto, na sua “Porta de Livraria” de O Globo, chego ainda a tempo para saudar o centenário de G. K. Chesterton, o incomparável escritor inglês que mais indelevelmente me marcou a alma nos dias em que andei perdido pelo mundo a procurar uma luz, luz de João e Maria, luz de Casa, luz de acolhimento entre as trevas de meu triste exílio. Devo a Chesterton as primeiras alegrias católicas. No seu grande livro, Ortodoxy, onde esteve mais à vontade para atirar nos braços da cruz seu jogo de inebriantes paradoxos, entre outras descobertas maravilhosas do cristianismo, ele nos diz aquilo que Cristo de si mesmo nos escondeu: “There was some one thing that was too great for God to show us when He walked upon our earth; and I have sometimes fancied that it was His mirth.” Tentemos traduzir estas palavras de ouro com que Chesterton fecha sua obra-prima: “Uma coisa houve que era n’Ele grande demais para nos ser mostrada enquanto Ele andou por este mundo, e eu penso às vezes que foi sua alegria”. Ou seu riso. Ou seu júbilo. O termo mirth é aqui intraduzível. E ouso dizer que o grande poeta da língua fechou seu livro-jóia sabendo bem que só podia encerrar com um termo impróprio, tratando-se de coisa que esteve sempre presente e todavia escondida na vida de Jesus.

Outro notável inglês deixou-nos, sobre a poesia, uma definição inesquecível: “poetry is emotion recollected in tranquility”; donde nós tiramos uma definição de liturgia: “liturgy is passion recollected in tranquillity”, cujo teor paradoxal, próprio do Mistério da Fé, parece mostrar, sob as aparências do júbilo e da festa, a dor e o Sangue de nossa Redenção. Fiel a esse espírito, Chesterton não procurou nos seus tão admirados paradoxos fazer acrobacias verbais, e muito menos procurou jogos para agradar os jovens e os imaturos. Pascal, com seu timbre de abismos, não é mais trágico nem mais sério do que Gilbert Keith Chesterton, em cuja obra, como disse atrás, eu tive a felicidade de encontrar no caminho daquilo que Jesus nos escondeu, isto é, das mais puras e vivas alegrias católicas deste mundo. Com um extraordinário vigor do Dom da Ciência, que está na linha da Fé e da Esperança, isto é, das virtudes peregrinas, Chesterton viu que o mundo, e mais fortemente os dias deste século de corrida atrás do vento, está desconcertado, subvertido, de cabeça para baixo, e então, para poder descobrir melhor seus erros e suas malícias, punha-se ele mesmo freqüentemente de pernas para o ar. Sua obra de apologia, assim condicionada, fazia função de revulsivo, de purgativo, e operava inopinadas restaurações nos desconcertos do mundo. O personagem principal de O poeta e os loucos era ágil, nessa ginástica, e, em quase todos os contos dessa série, quem diz loucuras é o sábio, o sisudo, o poeta, o sério; e quem fazia as mais desvairadas loucuras era o homem pausado, equilibrado na representação diplomática dos desvarios do tempo.

Chesterton criou, depois de Edgar Poe e Conan Doyle, o tipo de novela policial em que o genial investigador, longe de ser o esmiuçador sagaz e raciocinante, era o Padre Brown, o Padre Vicente O.F.M., seu amado confessor, que tinha os olhos lavados pela Fé e pelo colírio das lágrimas e assim conseguia, mesmo cochilando, descobrir os meandros da malícia mais pela ingenuidade do que pela sagacidade. Em A Esfera e a Cruz, espécie de romance simbólico e apocalíptico, reaparece o personagem obsessivo de Chesterton, em luta implacável, mas por fim, cordialíssima, com o ateísmo desvairado da época. Na verdade, porém, não é o ateu Tornbull o adversário; não, em A Esfera e a Cruz, o espírito hediondo que Chesterton detesta, como detesta o Diabo, é o liberalismo que pretende evitar o confronto e a luta entre o Bem e o Mal. O personagem mais repugnante da sucessão de figuras que se levantam contra o Combate é o pacifista, contra o qual Chesterton não disfarça sua náusea extrema. Porque Chesterton foi sempre guerreiro. Em tempo e contratempo combateu o bom combate, e guardou a Fé até o momento supremo em que o Padre Vicente, depois de ministrar-lhe a extrema-unção, ajoelhou-se aos pés da cama do agonizante e com piedade profunda beijou a pena que estava à mesa-de-cabeceira, como que a descansá-la também, depois de ter escrito mais de oitenta volumes a serviço de seu Rei e de sua Dama.

Grande falta nos fazem hoje autores como Chesterton, que souberam desarmar, denunciar, desmascarar os ídolos, os ideais dos tempos modernos, que não passam das “antigas virtudes cristãs tornadas loucas” ou perversas.

Na falta dessa leitura saudável, tônica, fortificante, curativa, inebriante do melhor espírito, surgiu em seu lugar, a fazer um sucesso editorial que deveria ruborizar o planeta Terra e empalidecer o planeta Marte, surgiu o repulsivo impostor Teilhard de Chardin, que renega a Fé, abandona os mestres da Companhia de Jesus e da Igreja, para inventar uma gnose tola, de medíocre ciência ensopada com religião ainda pior, graças a cuja fétida composição consegue atrair os espíritos fracos.

Não me canso de agradecer a Deus o fato de ter encontrado Chesterton nos dias de desolação em que, sempre crendo em Deus-Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, das coisas visíveis e invisíveis, não conseguia, entretanto, encontrar a alameda e a porta de Sua Casa. A par de todos os defeitos e imperfeições, tenho a alma muito agradecida, porque desde cedo até tarde, na tarde da vida, deu-me Deus a ventura de sentir a dependência em que vivi, de minha mãe, de meus irmãos, de meus alunos, de meus professores, de todos os que neste longo trajeto que já se aproxima do marco assinalado pelo salmista para os vigorosos, sim, sempre tive a ventura de sentir muito melhor o bem que me fizeram e que especialmente reservo aos que me ajudaram na morte para o mundo. E entre esses reservo um especial lugar no altar que hoje adornei em meu velho coração para lembrar G. K. Chesterton.

O resto desta apologia e deste estudo está no livro Três alqueires e uma vaca, que escrevi quando, graças a Chesterton, entre tantos autores e amigos, consegui passar no vestibular da Casa do Pai, isto é, consegui voltar à Fé e à Igreja de meu batismo. Ave Maria! 

 O Globo 06/06/1974.
Do site Permanência.

25/04/2011

QUEM SÃO OS CONSPIRADORES?

Do livro A Coisa, 1929
G.K. Chesterton

Deparei-me, outro dia, mais ou menos indiretamente, com uma senhora de maneiras educadas e até elegantes, do tipo que seus inimigos chamariam de extravagante e seus amigos de refinada, que por acaso mencionou certa pequena cidade da parte oeste do país, e aduziu, com uma voz sibilante, que ela continha “um ninho de católicos romanos”. Isto aparentemente se referia a uma família que casualmente eu conheço. A senhora então disse, com uma voz alterada de profundo fatalismo: “Só Deus sabe o que é dito e feito atrás daquelas portas fechadas.” 

Ao ouvir essa estimulante especulação, minha mente retrocedeu às minhas lembranças do lar em questão, que estão ligadas principalmente a biscoitos doces e a uma pequena menina que se persuadira firmemente de que eu era capaz de comer um número ilimitado deles. Mas quando eu contrastei essa memória com a visão daquela senhora, ficou repentina e surpreendentemente claro para mim o vasto abismo que ainda se estende entre nós e muitos de nossos compatriotas, e as extraordinárias idéias que sobre nós ainda entretêm pessoas que andam por aí, sem cuidadores ou camisas-de-força, e que aparentemente são, em todos os outros assuntos, sãos. É, sem dúvida, verdade, e teologicamente razoável, dizer que só Deus sabe o que acontece nas casas dos católicos; como o é dizer que só Deus sabe o que se passa na cabeça dos protestantes. Não sei por que as portas dos católicos deveriam estar mais fechadas que as portas dos outros; o hábito não é incomum em pessoas de todas as crenças filosóficas quando se recolhem à noite; e em outras ocasiões, dependendo do clima ou do gosto pessoal. Mas mesmo aqueles que acham difícil acreditar que um católico comum é tão excêntrico a ponto de se trancar na sala de estar, ou de fumar, assim que ele ponha o pé em casa, têm realmente uma idéia obsessiva de que é mais concebível isto de um católico do que de um metodista calvinista ou de um irmão Plymouth.[1] Permanece o sabor rançoso de um tipo de romance sensacionalista acerca de nós; como se fossemos todos nobres estrangeiros ou conspiradores. E o fato realmente interessante é que esse absurdo melodrama pode ser encontrado entre pessoas instruídas; embora, na atualidade, mais em indivíduos instruídos do que numa classe instruída. O mundo ainda nos faz esse elogio louco e imaginativo ao imaginar que somos muito menos comuns do que realmente somos. O argumento, claro, é aquele com o qual estamos exaustivamente acostumados, em milhares de outros aspectos; o argumento de que porque a evidência contra nós não pode ser encontrada, ela deve ser ocultada. É óbvio que os católicos romanos não gritam uns com os outros nas ruas os detalhes do massacre de São Bartolomeu;[2] e a única conclusão que qualquer homem razoável pode tirar é que eles o fazem a portas fechadas. O projeto de por fogo em Londres não é, exceto raramente, proclamado em letras grandes em pôsteres do Universo; então, que conclusão possível pode haver, senão que os sinais são dados em mesas de chá particulares, por meio de um alfabeto simbólico de biscoitos doces? Seria um exagero dizer que é meu hábito diário pular sobre velhos judeus na rua Fleet e arrancar seus dentes; então, dada minha admitida obsessão, resta apenas supor que minha casa é equipada como uma câmara de tortura para esse modo de odontologia medieval. Os crimes católicos não são maquinados em público, então é razoável supor que eles sejam maquinados em privado. Há realmente uma remota terceira alternativa; que eles não sejam maquinados absolutamente; mas é absurdo esperar que nossos compatriotas sugiram uma coisa tão extravagante. 

Ora, essa misteriosa ilusão, ainda muito mais comum do que muitos supõem, mesmo na Inglaterra, e que se estende a todo o interior dos EUA, é por acaso outro exemplo do que sugeri em um ensaio anterior; o fato de que aqueles que estão sempre bisbilhotando e procurando por coisas secretas sobre nós, nunca nem mesmo notaram as coisas mais evidentes sobre eles mesmos. Temos apenas de nos perguntar o que seria dito se realmente confessássemos alguma conspiração tão descaradamente como metade de nossos acusadores fez. O que seria dito, tanto nos EUA quanto na Europa, se realmente tivéssemos nos comportado como uma sociedade secreta, em lugares onde os grupos de nossos inimigos não podem nem mesmo negar que são, eles próprios, sociedades secretas? O que aconteceria se o Congresso Católico de Glasgow ou Leeds realmente consistissem inteiramente de delegados encapuzados de capa e capuz brancos, todos com suas faces cobertas e seus nomes desconhecidos, a observarem pelas frestas de suas apavorantes máscaras brancas? Contudo, esta era, até muito recentemente, a rígida rotina da grande organização americana empenhada em destruir o catolicismo; uma organização que recentemente ameaçou tomar o governo dos EUA. O que seria dito, se realmente houvesse uma coisa definida, reconhecida e inteiramente desconhecida, chamada de Sociedade Secreta dos Católicos; tal como tem havido, desde há muito tempo, uma reconhecida, mas desconhecida Sociedade Secreta dos Maçons? Ouso dizer que muito do que está envolvido em tais coisas é apenas tolice inofensiva. Mas se tivéssemos feito tais coisas, teriam nossos críticos dito que elas eram apenas tolices inofensivas? Suponha que começássemos a disseminar a Fé por meio de um movimento chamado “Know Nothing”[Nada conhecemos],[3] porque tivéssemos o hábito de balançar nossas cabeças, dar de ombros e jurar que nada conhecíamos da Fé que intencionávamos propagar. Suponha que nossa veneração pela dignidade de São Pedro fosse total e completamente uma veneração pela negação de São Pedro; e que a usássemos como um tipo de motto ou senha para o juramento de que não conhecíamos Cristo. Contudo, esta era reconhecidamente a política de todo um movimento político nos EUA, que objetivava destruir a cidadania dos católicos. Suponha que a Máfia e todas as associações secretas de assassinos do Continente estivessem trabalhando notoriamente para o lado católico, e não para o outro lado. Será que nos deixariam sossegados por isso? O mundo não ressoaria com denuncias indignadas acerca da desgraça de nossa conduta, e de uma traição que nunca deveria ser esquecida? Contudo, essas coisas são feitas constantemente, e a intervalos regulares, e inclusive nos dias que correm, por partidos anti-católicos; e nunca é considerado necessário lembrá-las, ou dizer uma palavra de desculpa, nos escritos de qualquer partidário anti-católico. É apenas nosso modo jesuítico que nos faz ousar olhar sobre as cercas, quando todo mundo está apenas roubando cavalos. 

Em resumo, o que eu disse recentemente sobre fanatismo é ainda mais verdadeiro sobre coisas secretas. Quanto a haver algo meramente antiquado acerca de certo tipo de estreiteza doutrinal, esta se encontra muito mais em Dayton, Tennesse,[4] do que em Louvain ou Roma. E da mesma forma, quanto a haver algo antiquado sobre todas essas farsas de máscaras e mantos, elas têm sido muito mais características da Ku Klux Klan do que dos Jesuítas. Em verdade, esse tipo de protestante é uma figura de melodrama ultrapassado, em duplo sentido e em duplo aspecto. É antiquado nos complôs que ele nos atribui e naqueles que ele próprio pratica.  

Em relação à sua prática, é provável que o mundo a descobrirá muito antes dele. O anticlerical continuará encenando solenemente as trapaças de Cagliostro,[5] como um médium ainda venda os olhos à luz do dia; e abrirá sua boca em palavras de mistério muito depois de todos no mundo estiverem completamente iluminados a respeito dos Illuminati.[6] E embora a comicidade quase imbecil daquela sociedade americana, que parece consistir inteiramente de começar tantas palavras quanto possível com KL, tenha sido atenuada por uma reação de sanidade relativa, não tenho dúvidas de que há ainda muitos nobres companheiros nórdicos saudando-se pelo feliz segredo de serem um Kláguia ou um Klimperador, muito tempo depois que todo mundo parou de se klinteressar por isso. Sob o aspecto político, o poder de tais conspirações foi praticamente desarticulado em ambos os Continentes; na Itália, pelos fascistas e nos EUA, por um conjunto de governadores razoáveis e de espírito público de ambos os partidos políticos. Mas a questão de interesse histórico permanece: a de que as mesmas pessoas que nos acusavam de mistificação e mistério é que envolveram todas as suas atividades secularizadas com mistérios e mistificações muito mais fantásticas; a de que eles nem sequer tiveram a hombridade de lutar contra um antigo ritual com a aparência de uma simplicidade republicana, mas se gabaram de ocultar tudo numa espécie de complexidade cômica; mesmo quando não havia nada a ocultar. Hoje, movimentos com a Ku Klux Klan têm muito pouco a ocultar ou que valha a pena ocultar; e é portanto provável que nossa curiosidade romântica sobre eles seja muito menor que a imperecível curiosidade romântica deles sobre nós. A senhora protestante continuará ressentindo-se do fato de que Deus não compartilhe com ela Seu conhecimento do extraordinário significado do chá com biscoitos doces no lar católico. Mas nós provavelmente sentiremos cada vez menos interesse por qualquer coisa que os Kláguias fazem a portas fechadas [closed doors] – ou talvez eu devesse dizer, portas klechadas (klosed doors).



[1] A Irmandade Plymouth era uma seita milenarista que surgiu em Plymouth, Inglaterra, nos anos 1830. (N. do T.)
[2] O massacre de São Bartolomeu foi o assassinato de protestantes, por católicos franceses, que começou no dia de São Bartolomeu do ano de 1572. (N. do T.)
[3] Partido Americano, ou Know Nothing, anti-católico e anti-imigração, formado apenas por homens protestantes.  Este partido floresceu em meados do século XIX, nos EUA, e se opunha fortemente à imigração de católicos irlandeses e alemães. (N. do T.)
[4] Cidade onde, em 1925, aconteceu o julgamento de um professor de biologia, John Scopes, acusado de infringir uma lei estadual que proibia o ensino da teoria da evolução. (N. do T.)
[5] Conde Alessandro Cagliostro (1743-1795) foi o nome assumido pelo siciliano Giuseppe Balsamo, que ganhou notoriedade como alquimista e vendedor de drogas e poções. (N. do T.)
[6] Seita secreta criada, em 1776, por Adam Weishaupt, um obscuro professor de filosofia da Universidade de Ingolstadt, na Bavária. Acredita-se que os Illuminati tiveram participação decisiva na Revolução Francesa e em todo o movimento hoje conhecido como iluminismo. Para isto, ver, por exemplo, Libido Dominandi – Sexual Liberation and Political Control, de E. Michael Jones, Editora Saint Augustine, 2000. (N. do T.)

20/04/2011

No Sangue

Nota do blog: não custa nada, nesta Semana Santa de 2011, lembrar o valor do Sangue de Nosso Senhor. Acompanhemos o grande Corção, que rastreia este Sangue e o traz até nós, sem deixar de nos alertar acerca do sofrimento da Igreja, de seu sangramento, nestes tempos de modernismo extremo.
Gustavo Corção


Desde os primeiros anos de sua peregrinação na terra, "entre as aflições dos homens e as consolações de Deus", a Igreja sempre marcou uma especial devoção pelo Sangue de nossa salvação. Já o Apóstolo em Hebreus IX, 22 diz: "É com sangue que quase todas as coisas se purificam e sem efusão de sangue não há salvação". 

Mas foi no tormentoso século XIV que Catarina de Sena, nas cartas e nas lições ditadas aos seus discípulos, pôs uma singular ênfase na riqueza de significações do Sangue, sim, uma ênfase marcante no Sangue! Transcrevemos a seguir algumas amostras de sua pregação colhidas ao acaso no livro Sainte Catherine de Sienne vous parle do Pe. S. Bezin O.P., ed. L´Abeille, Lyon, 1941: "Corramos, então, corramos todos cristãos fiéis, atraídos pelo odor do Sangue" (pág. 251). "Inebriemo-nos do Sangue de Jesus crucificado já que o temos ao nosso alcance. Não nos deixemos morrer de sede. Não nos contentemos com pouco, mas tomemos muito para nos embriagarmos e nos afastarmos de nós mesmos". "Nós não fomos resgatados por preço de ouro, nem somente por amor mas pelo Sangue". "Não há outra maneira de saciar o homem: somente neste Sangue poderá alguém se desalterar". "Este Sangue é nosso, foi derramado para nós, ninguém nô-lo pode tirar a não ser nós mesmos" (pág. 252). 

Folheando o epistolário de Santa Catarina de Sena em seis volumes (Le Lettere di S. Catarina de Siena, Casa Editrice Marzocco, Firenze 1947) não resistimos ao desejo de transcrever mais este grito da Dolce Mama: "Caminho sobre o sangue dos mártires, o sangue dos mártires ferve e convida os vivos a serem fortes". 

Tenho a firme convicção de que Santa Catarina de Sena falava com esta obsessiva insistência por uma razão muito simples e muito extraordinária: a vigésima terceira filha do tintureiro Benincasas via o Sangue do nosso Salvador em todos os sinais sagrados da Igreja. Quando por exemplo ela procurava seu confessor Frei Raimundo de Capua costumava dizer: "Vou-me ao Sangue".

De bom grado ficaria aqui a contar histórias da dolce mama Catarina; mas o encontro marcado deste artigo me obriga a seguir o roteiro que deixa quinhentos anos para trás a santa padroeira da Itália. 

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Foi efetivamente no século XIX, no longo e glorioso pontificado de Pio IX, que o preciosíssimo Sangue de Jesus teve no calendário da Igreja o lugar que merecia. Pio IX, caro leitor, foi o grande Papa que sempre combateu os graves erros de seu tempo sem nenhuma transigência e acomodação à mentalidade contemporânea. E não somente denunciou os erros de uma "civilização" apóstata, como também nos ensinou o modo de combatê-los. 

Em 9 de novembro de 1846 Pio IX lançou com a encíclica Qui Pluribus, seu primeiro brado de alerta; mais tarde, em 8 de dezembro de 1864, publicou a encíclica Quanta Cura, à qual anexou o famoso Syllabus que catalogava as proposições errôneas que a Igreja condenava, e que ainda hoje, onde ela estiver, una e santa, continua a condenar. Todas essas publicações foram firmadas na santa intolerância, sem a qual não há nem pode haver catolicismo fiel a Deus e marcado pelo Sangue de nosso Salvador. 

Essa pregação desencadeou a fúria dos anarquistas italianos (carbonários) que, comandados por Garibaldi e Mazzini, conseguiram expulsar de Roma o Papa para júbilo de todos os revolucionários da época, e de todos os liberais que, desde então, fizeram tudo para lançar à execração pública até hoje as encíclicas de Pio IX, principalmente o Syllabus. 

Os soldados franceses e pontifícios conseguem dominar a fúria dos carbonários, e com o apoio deles o Papa volta a Roma. 

Em ação de graças por essa vitória contra os inimigos da Igreja, Pio IX teve a idéia de marcar no calendário católico uma data litúrgica que ficou até anteontem fixada no dia 1o. de julho, sendo o mês inteiro consagrado ao Preciosíssimo Sangue. Até anteontem a festa do Preciosísismo Sangue era considerada "duples de primeira classe". 

Será preciso dizer aos nossos leitores que no atual calendário da liturgia alterada, reformada ou deformada "para se acomodar à mentalidade contemporânea" da Igreja pós-conciliar, foi suprimida a festa do Preciosíssimo Sangue? E por quê? Primeiro, por alguma razão que comandou todo o conjunto frenético das reformas. Creio eu entretanto que a "Igreja Conciliar" e "Pós-conciliar" sente uma aversão sistemática pelo caráter de luta, de vitória e de sangue que destoa, para eles, de todas as aberturas e de todos os ecumenismos. Ocorre-me a idéia de associar a supressão do culto do Preciosíssimo Sangue, ao silêncio sepulcral da Hierarquia na data do quarto centenário da miraculosa vitória de Lepanto. Que eu saiba, em 7 de outubro de 1971 só manifestou júbilo nessa data, aqui no Brasil, a excelente publicação o Catolicismo. Para caracterizar ainda melhor esse silêncio, tivemos uma notícia singular: por ordem superior a Santa Sé, com certo alarde, devolveu os troféus, digo melhor, as relíquias daquela vitória, aos turcos. "Que turcos?" perguntou-me aflito e divertido Ariano Suassuna a quem contava eu a história de tão cômica e trágica devolução. 

Decididamente a "nova Igreja" que pretende eclipsar a Igreja Católica, não gosta de soldados, não gosta de lutas e não gosta de sangue e também não gosta de odiar o mal como Santa Catarina recomendava: "Deveis odiar o mal com os dentes". Daí o frenesi de concessões e de ecumenismos agora adotados pelas hierarquias em contradição formal com a Doutrina imutável da Igreja. 

Ao menos resta-nos um proveito nesta supressão da data litúrgica escolhida para a comemoração do Preciosíssimo Sangue. Que proveito? O de tornar cada dia mais evidente que a chamada "Igreja pós-conciliar" opõe-se sistematicamente à Tradição Católica, colocando os fiéis numa alternativa estapafúrdia: recusar as "novidades" que vêm de Roma ou acatar todos os atos, ditos e feitos do Papa reinante e para isto renegar o Depósito sagrado e os ensinamentos que a Igreja por seus 254 papas nos legou como tão bem disseram os Cardeais Ottaviani e Bacci no Breve Exame Crítico do Novo Ordo dirigido ao Papa Paulo VI no dia de Corpus Domini, em 1969. Eles disseram que as reformas litúrgicas pós-conciliares "... põem cada católico na trágica necessidade de escolher". Eu já escolhi. 

O Globo, 13/7/78

O último artigo entregue por Gustavo Corção ao GLOBO foi publicado com o noticiário sobre sua morte. Este texto, embora estivesse concluído, só foi encaminhado à redação após a morte do escritor, por seus colaboradores.

19/04/2011

Enfim, notícias boas!

Em meio a tantas notícias extraordinariamente graves para nós católicos, em meio a tantos dissabores com a Igreja pós-conciliar, em meio a tantos absurdos saídos da boca de padres modernistas e de tantos “leigos católicos” hereges, é sempre bom assinalar as notícias boas, as que trazem um refrigério para a alma.

E nada há de mais importante para leigos e clérigos católicos que a publicação de obras realmente católicas. Tendo plena consciência de minha própria ignorância, sabendo com clareza o quanto tenho de estudar para me elevar à altura de uma defesa efetiva da Igreja e de sua doutrina, num mundo cada vez mais descristianizado, não posso deixar de festejar a notícia da publicação de tantas obras importantes, como a que nos dá Sidney Silveira.

Aos leigos cabe, hoje mais que em qualquer outro tempo, o pesado fardo, de defender a Fé, que um dia cobriu como um manto sagrado toda a civilização ocidental, que a construiu. E defender a Fé é muito diferente de ter fé. O leigo que se aventurar neste nobre ofício terá de estudar (e rezar) muito e, o que torna a coisa muito mais difícil, solitariamente. Para isto é imprescindível a disponibilidade de obras fundamentais de referência. Não posso deixar de louvar, neste sentido, o esforço de Sidney Silveira, Carlos Nougué e da editora É Realizações.

Que Nossa Senhora nos dê a graça de podermos, com o auxílio destas e outras obras que caiam em nossas mãos, ser capazes de defender a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, perante um mundo pagão, cientificista, ateu, new age, tornado irracional pelo racionalismo, panteísta, gnóstico e anti-católico.  

Que Deus ajude Sidney e Carlos em seus esforços.

17/04/2011

Obrigado, professor Angueth!

Nota do blog: Um leitor me envia o texto abaixo, com a seguinte nota prévia: 

Caro professor, venho por meio deste, lhe agradecer por ‘tudo’ que o senhor fez por mim. Como não tenho meios melhores de agradecer ao senhor, faço duas coisas: Rezo sempre pela sua alma e, agora, quero lhe escrever um texto de agradecimento. Ora, queria que o senhor publicasse em seu blog, não para nos elevar, mas para as almas saberem que quem anda pela luz da igreja terá bons frutos e jamais andará pela escuridão. Apenas peço ao senhor que me coloque como anônimo, pois não importa de quem é o texto, mas se ele fala à verdade. Faço isso, mais uma vez, não para nos elevar, mas para o bem das almas, pois ‘amo a Deus e a alma’ (Santo Agostinho, solilóquios). Que Nossa Senhora lhe guie sempre! Graduando em filosofia.

De minha parte, agradeço a Santa Catarina de Sena e a Nossa Senhora, Mãe de Deus, por este modesto blog poder ajudar alguns a se aproximarem da Santa Igreja de Cristo.  
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Nasci no seio de uma família católica que sempre me educou com maestria angelical e celestial! Desde pequeno tive uma educação Católica bem séria e cheia de alegria. Porém nunca tivemos condições de bancar uma escola particular, que era o desejo de minha mãe, pois que sabia que boa coisa em escola pública não ia encontrar. Ora, ingressei em uma escola pública do meu bairro, onde não se tinha uma educação, mas se via mais uma desordenação de caráter de alunos. Lembro-me que aqueles que tinham um comportamento errado não recebiam punições, mas sim, mais "bajulação" da professora. Lembro-me também que a minha primeira professora foi uma "Protestante". Ela criticava a Igreja Católica sempre, todas as aulas. Tratava Nossa querida Mãe, Nossa Senhora, como uma insignificante (que Deus a perdoe!); O papa como um homem que só queria riqueza e poder (Que Nossa Senhora a perdoe!), e toda a doutrina católica como doutrina de Satanás (Rezemos por sua alma!). Assim como o filho, quando criança, se deixa levar pela confiança que tem em sua mãe, assim o aluno, quando criança (e infelizmente, no Brasil, quando adulto também) confia de maneira "cega" em sua professora. Por isso concordava, em minha simples inocência, com as coisas que ela falava. Eis aí o grande mal que o protestantismo fez em minha vida. Iniciou-me numa caminhada para o ateísmo. 

Os tempos foram passando e da minha fé fui me afastando! No ensino médio encontrei um professor de Filosofia, ficamos muito amigos, que era católico. Que me mostrou o caminho de novo, e não só, me mostrou a crise na Igreja! Daí em diante, fui estudar os santos. Através dele "conheci" o professor Olavo de carvalho, Orlando Fedelli, etc. Comecei a estudar, a respirar a doutrina católica, ou seja, o amor de Deus. Além disso, resolvi me dedicar ao estudo da filosofia. Entrei na Universidade, no curso de filosofia, com uma expectativa muito grande. A universidade me fez mal, pois me tornei novamente como aquela criança que confia no mestre. Lá não amadureci intelectualmente, retrocedi. Ali se respirava: ateísmo, comunismo, agnosticismo, liberalismo, abortismo, ódio a Nosso Senhor Jesus Cristo et carterva. Deixei-me levar pelas opiniões de certos professores. Estava, mais uma vez, caminhando para o ateísmo. Até que, através deste meu professor e amigo, conheci o seu blog, mais ainda, conheci Chesterton. Comecei a ler seus artigos e suas traduções sobre Chesterton. Daí, percebi o buraco em que tinha caído, mas também como poderia sair dele. Chesterton com certeza está no céu! Vi nele uma total confiança em Deus. Era um homem, se você perceber, através de seus escritos, sua personalidade; ele vivia em uma tranqüila confiança e certeza. Mostrava sua total confiança na Santa Igreja e, por isso, em Deus. Oh! Ensinou-me a viver, podemos assim dizer. Também conheço Lewis. Que me ensinou a simplicidade do Cristianismo. Tolkien, também! 

Recentemente, estava lendo um livro, Jesus e os Filósofos, que me fez ter algumas dúvidas  em relação a subordinação da razão a Deus! Não entendi muito, mas com a ajuda do professor Angueth, dei a Deus o que tinha de mais precioso e que mais valorizava: a razão que Ele mesmo me deu. E ainda segui o conselho do professor em estudar Santo Tomás, que me faz um grande bem! Hoje entendo a minha fé, mas procuro praticá-la! E agradeço, também, o senhor por isso! 

Caro professor, essas palavras podem não ter tanta importância pra certas pessoas, mas têm sim para Deus! Não porque são minhas, muito longe disso, mas porque por causa de "seus" esforços o céu um dia pode fazer festa! 

Sem mais palavras! 
Salve Maria!

13/04/2011

Chesterton and me

Nota do blog - O pessoal da Chesterton Review, revista publicada pelo Institute for Faith and Culture, me pediu para escrever um texto curto, para ser publicado na seção de cartas da próxima edição da revista, sobre a influência que Chesterton teve em minha reaproximação da Igreja. Eis aqui o texto que enviei para a revista. Deixo-o na língua de Shakespeare ... e de Chesterton. Espero não tê-la maltratado muito.

This is a little story on how Chesterton can influence people still today. It all began with Father Brown. I do not remember which short story I read first, but after this, I have read them all. The next thing I remember is the final paragraph of the Introduction to Heretics: “So, gradually and inevitably, to-day, to-morrow, or the next day, there comes back the conviction that the monk was right after all, and that all depends on what is the philosophy of Light.  Only what we might have discussed under the gas-lamp, we now must discuss in the dark.” Yes, the monk was right; he has been right all along. 

With Heretics I realized, guided by Chesterton, the superiority of Christianity, not only over other religions, but over other philosophies, over other metaphysics, and mainly, over all current cultural fads. Armed with those chestertonian weapons I then read Orthodoxy, which consolidated the Christian view I needed to re-approximate to the Church, the Catholic Church, without any shred of doubt, be it philosophical or doctrinal; “there comes back the conviction that the monk was right after all”. Then came the other books, which I am still reading and re-reading and translating to Portuguese. 

Chesterton has a very important role in my re-conversion to Catholicism. With him at my side, I could retake my early life devotion without any contradiction with the most basic metaphysical principles. I think that is what he called common sense. Chesterton reestablished the common sense in me, for what I am forever grateful to him. 

This gratefulness made me feel the responsibility to present Chesterton to my fellow countrymen, to set them free from all the cultural garbage that is flying around; cultural garbage that existed in Chesterton’s time and against which he fought so hardly and so brilliantly.  It is interesting to observe, from e-mails I received from readers of my blog, how strong and effective the influence of Chesterton can be, especially among young adults, most of them university students. Once they are exposed to Chesterton’s essays, articles and books, it is difficult for them to avoid being infected by the chestertonian common sense; no surprise he is called “the apostle of common sense”. 

Thus Chesterton has been for me not only an intellectual adventure (to read and translate him) but also a spiritual journey to the core of the Faith: “there comes back the conviction that the monk was right after all”. 

06/04/2011

Como Nossa Senhora converteu Chesterton

Nota do tradutor: Na volta de uma viagem à Terra Santa, Chesterton teve uma espécie de revelação, frente a uma imagem de Nossa Senhora, dois anos antes de sua conversão nominal ao catolicismo. Seu registro deste episódio é o pequeno trecho abaixo.

Os homens precisam de uma imagem, única, colorida e de claros contornos, uma imagem a ser trazida instantaneamente à imaginação, quando o que é católico precisa ser distinguido do que alega ser cristão ou mesmo do que é, em certo sentido, cristão. Dificilmente consigo lembrar uma ocasião em que a imagem de Nossa Senhora não se impusesse à minha imaginação de forma definitiva, à simples menção ou pensamento sobre essas coisas. Eu estava muito distante dessas coisas, e então com dúvidas sobre elas; e por isso, discutindo com o mundo sobre elas, e comigo mesmo contra elas; pois esta é a condição antes da conversão. Mas mesmo que a figura estivesse distante, ou fosse obscura e misteriosa, ou fosse um escândalo para meus contemporâneos, ou fosse um desafio para mim – nunca duvidei que esta figura fosse o símbolo da Fé; que ela incorporava, como um ser humano ainda somente humano, tudo o que A Coisa tinha a dizer para a humanidade. No momento em que me lembrava da Igreja Católica, lembrava-me dela; quando tentava esquecer a Igreja Católica, eu tentava esquecê-la; quando finalmente percebi que o que era mais nobre que meu destino, o mais livre e o mais difícil de meus atos de liberdade, foi em frente à pequena imagem dela, dourada e muito brilhante, no porto de Brindisi, que eu prometi a coisa que eu iria fazer, se eu retornasse ao meu próprio país.  

Aviso sobre a palestra de lançamento de Hereges

Para quem não pôde assistir a palestra de lançamento de Hereges, por mim proferida ontem (05/04), o editor do livro avisa que em breve disponibizará o vídeo no YouTube. Quando isto acontecer, avisarei a todos.

04/04/2011

Irmã Lúcia: o Terço é oração eucarística!

A oração do Rosário ou Terço é, depois da Sagrada Liturgia Eucarística, a que mais nos une com Deus, pela riqueza das orações de que se compõe, todas elas vindas do Céu, ditadas pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo. 

A Glória, que rezamos em todos os mistérios, foi ditada pelo Pai aos Anjos, quando os enviou a cantá-la junto do Seu Verbo recém-nascido, e é um hino à Trindade. 

O Pai-Nosso foi-nos ditado pelo Filho, e é uma oração dirigida ao Pai. 

A Ave-Maria é, toda ela, impregnada de sentido Trinitário e Eucarístico: As primeiras foram ditadas pelo Pai ao Anjo, quando O enviou a anunciar o mistério da Encarnação do Verbo.

 “Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco”: Sois cheia de graça porque em Ti reside a fonte da mesma Graça. É pela Tua união com a Santíssima Trindade, que Tu és cheia de graça.

Movida pelo Espírito Santo, disse Santa Isabel: “Bendita sois Vós, entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”: Se sois bendita, é porque é bendito o fruto do vosso ventre, Jesus. 

A Igreja, também movida pelo Espírito Santo, acrescentou: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte”: Isto é também uma oração, dirigida a Deus através de Maria: Porque sois Mãe de Deus, roga por nós. 

É oração trinitária, sim, porque Maria foi o primeiro Templo vivo da Santíssima Trindade: “O Espírito Santo descerá sobre Ti, — O Pai Te cobrirá com a Sua sombra, — E o Filho, que de Ti nascer, será chamado o Filho do Altíssimo”. 

Maria é o primeiro Sacrário vivo onde o Pai encerrou o Seu Verbo. O Seu Coração Imaculado é a primeira custódia que O guardou. O Seu regaço e os Seus braços foram o primeiro altar e o primeiro trono sobre o qual o Filho de Deus, feito homem, foi adorado. — Aí O adoraram os Anjos, os Pastores e os sábios da terra. Maria é a primeira que tomou em Suas mãos, puras e imaculadas, o Filho de Deus; o conduziu ao Templo, para oferecê-Lo ao Pai, como vítima pela salvação do mundo. 

Assim, a oração do Terço é, depois da Sagrada Liturgia Eucarística, a que mais nos introduz no mistério íntimo da Santíssima Trindade e da Eucaristia; a que mais nos traz ao espírito os mistérios da Fé, da Esperança e da Caridade. 

Ela é o pão espiritual das almas; Quem não ora, definha e morre. É na oração que nos encontramos com Deus, e é nesse encontro que Ele nos comunica a Fé, a Esperança e a Caridade: virtudes estas sem as quais não nos salvaremos. 

O Terço é a oração dos pobres e dos ricos, dos sábios e dos ignorantes; Tirar às almas esta devoção, é tirar-lhes o pão espiritual de cada dia. O Terço é a que sustenta a pequenina chama da Fé, que ainda de todo se não apagou em muitas consciências. Mesmo para aquelas almas que rezam sem meditar, o simples ato de tomar o Terço para rezar é já um lembrarem-se de Deus, do Sobrenatural. A simples recordação dos mistérios, em cada dezena, é mais um raio de luz a sustentar, nas almas, a mecha que ainda fumega. 

Por isso o Demônio lhe tem feito tanta guerra! E o pior é que tem conseguido iludir e enganar almas cheias de responsabilidade, pelo lugar que ocupam! 


Trecho do Pequeno tratado da Irmã Lúcia, sobre a natureza e recitação do Terço.
A Associação de Fátima


01/04/2011

Aviso aos leitores

Alguns leitores me perguntam se vou continuar a tradução de A Coisa, de Chesterton. Elas recomeçarão em breve. Talvez no final da semana que vem já teremos mais um capítulo traduzido. Adianto também que, terminada esta tradução, pretendo procurar uma editora que se interesse em publicar o livro. Caso eu não encontre, considerarei publicá-lo por meio do Clube de Autores.

Depois de A Coisa, penso em traduzir a Autobiografia de Chesterton. Vamos ver. De qualquer forma, rezem por mim.

29/03/2011

Um decreto que convida?

Leio no FratresInUnun uma intervenção de Frei Charles Morerod, pela foto um sujeito muito simpático, sobre o recente decreto da Santa Sé sobre a reforma dos estudos filosóficos em instituições eclesiásticas. Notícia alvissareira, dadas as informações que temos do nível destes estudos nos seminários espalhados pelo mundo. 

Frei Morerod analisa, em sua intervenção, a importância da filosofia para o estudo da teologia. Não sou filósofo e não li o decreto, mas algumas coisas me parecem merecer um comentário.

A primeira delas é que, segundo Frei Morerod: “O Decreto de Reforma dos estudos eclesiásticos de Filosofia convida os filósofos a ‘recuperar com força a vocação original da filosofia: a busca do verdadeiro e sua dimensão sapiencial e metafísica” (§ 3).’” Duas observações são oportunas: um decreto não convida, decreta, senão não seria um decreto e sim um convite. Além disso, do jeito que estão as coisas, como convencer os filósofos modernos de que existe o verdadeiro? Aqui não basta um convite, mesmo que seja da Santa Sé.

No final da intervenção, Frei Morerod parece mudar de assunto: da teologia para a catequese e aí as coisas se complicam enormemente. Ele diz: “Por exemplo, a catequese é frequentemente confrontada com perguntas sobre a relação entre a evolução das espécies e a estória bíblica da criação. As tentativas de passar diretamente da teologia à biologia são pouco frutuosas. É necessária uma mediação filosófica.” Duas observações se impõem. A primeira delas é que a evolução das espécies não pode se confrontar com a catequese, pois esta teoria não passa de um “wishfull thinking”. Esta teoria é apenas especulação e não ciência (Ver aqui, aqui e aqui). Assim, toda vez que ela tentar se confrontar com a catequese, o catequista tem de solicitar provas desta teoria e só depois discutir alguma coisa.[1] A segunda observação a ser feita é que se fatos – fatos reais e não ciência podre – se contrapusessem à catequese não haveria mediação filosófica que resolvesse a questão. Ocorre que nenhum fato científico verdadeiro, nestes dois milênios de catolicismo, se contrapôs à catequese católica. Na verdade, o que se precisa são de exegetas muito bem preparados para nos orientar – a nós pobres católicos leigos – em como interpretar as passagens bíblicas segundo a Tradição da Igreja. Ou seja, a Igreja não pode cair nesta esparrela do cientificismo moderno (sobre cientificismo ver aqui); para lutar contra isto temos a Tradição.

Frei Morerod se equivoca ainda em dizer: “O catequista que trata da evolução é tentado a desqualificar a Bíblia como Palavra de Deus, ou a fechar-se num fundamentalismo que nega a verdade das descobertas científicas.” O Frei coloca a teoria da evolução como descoberta científica e isto ela nunca foi. Além do mais, a evolução não deve ser tema de catequese, a meu ver. Tenho aqui em mãos o Catecismo Maior de São Pio X e não vejo nada nele que toca na questão da evolução. Ou seja, não podemos admitir que uma conjectura científica muito pouco lógica possa se confrontar com verdades eternas da Doutrina Católica.

A parte filosófica da intervenção do Frei Morerod parece-me fraca. Dou um exemplo apenas, já que meus conhecimentos filosóficos são muito modestos. O frei diz a certa altura: “Um problema crucial para a teologia é a possibilidade de falar de Deus por meio de palavras plasmadas para descrever o mundo: não temos outras expressões à nossa disposição.” Aqui, sinto o (mau) cheiro de Wittgenstein e outros filósofos da linguagem, que chegaram à brilhante conclusão de que as palavras não servem para nada. Eles não notaram, claro, que para chegarem a esta conclusão usaram as famigeradas ... palavras. Ora, se Deus mesmo feito homem, se a Segunda Pessoa da Trindade, quando na terra, se o Logos Divino, usou exatamente “as palavras plasmadas para descrever o mundo” para nos ensinar tudo sobre Seu Pai, sobre a relação de Deus com o homem e, sobretudo, sobre a relação do homem com Deus, por que então o homem moderno acha que as palavras já não são suficientes para a teologia, que é o discurso sobre Deus? Se Deus as considera suficiente, não seria um orgulho extremo achá-las algo defeituosas? Todavia, deixo este assunto para gente mais competente que eu, gente do talante do tomista Sidney Silveira do ContraImpugnantes.

Como última observação, fico a imaginar se não seria importante a Santa Sé se lembrar – não sei se o novo decreto faz menção a isto – da monumental encíclica de Leão XIII,  Aeterni Patris, sobre o estudo da filosofia tomista nos seminários de então. Desta encíclica retiro o trecho que encerrará este post: “Se refletirmos sobre a maldade de nossos tempos e entendermos bem a razão do que acontece em campo público e privado, descobriremos certamente que a causa geradora dos males que nos afligem e nos ameaçam está nas doutrinas culpadas que foram ensinadas sobre as realidades divinas e humanas, primeiramente pelas escolas filosóficas e, depois, se infiltraram em todas as camadas da sociedade e foram geralmente acolhidas.” (Grifo meu)

[1] Lembro-me aqui de uma passagem de Três Alqueires e Uma Vaca, de Gustavo Corção: “O evolucionismo é uma doutrina pela qual o universo irá até as últimas conseqüências, obstinadamente, como o esquartejador. Os gênios das espécies vivem a esquartejar porcos e cavalos, e os praticantes dessa esquisita religião são indivíduos que estão impacientes por serem também esquartejados.” (Grifo meu)

28/03/2011

Mais uma repercussão do livro que escrevi

O livro que escrevi tem nova repercussão (ver outras repercussões aqui). Agora é na revista Literatura: Conhecimento Prático. Ao pessoal da revista meu muito obrigado.

25/03/2011

Hereges à venda

O blog está fechando, com este lançamento, um ciclo. Não, o lançamento não é do blog, é da Editora Ecclesiae. Mas o blog começou com um texto, que é o último parágrafo da Introdução a Hereges. Isto foi em 12 de agosto de 2005. Com este pequeno trecho começou também meu interesse mais profundo por Chesterton, o que, em última análise, me levou a traduzir o grande escritor inglês. O trecho continua sendo para mim um dos que mais me impactaram em tudo que já li de Chesterton. “Então, gradualmente, hoje, amanhã, ou depois de amanhã, forma-se a convicção de que o monge estava certo, afinal, e que tudo depende de qual é a filosofia da Luz. Mas o que podíamos discutir sob a lâmpada a gás temos, agora, de discutir no escuro.” O monge estava certo; ele sempre esteve. É o espírito da Idade Média julgando os tempos modernos.

Hereges teve para mim mais impacto que Ortodoxia. O combate travado em Hereges é o nosso combate, o combate atual, o combate eterno que um católico terá de enfrentar. Hereges é a luta de um cruzado moderno contra as profanações da Terra Santa.

Estou feliz por fechar um ciclo de quase 6 anos do blog com tal lançamento. Agradeço à Editora Ecclesiae por ter se aventurado a publicar Chesterton no Brasil. Não deixem de comprar o livro. Ele é excepcional!

23/03/2011

Que bom!

Que bom ser budista, e meditar serenamente, a fim de se sentir bem!
Que bom ser ambientalista new age, abraçar árvores, nadar em cachoeiras maravilhosas para descarregar as energias negativas!
Que bom ser espírita e acreditar que voltaremos por aqui várias vezes, de forma que agora podemos viver uma vida cheia de prazeres!
Que bom ser ateu, pois devemos aproveitar a vida ao máximo; nada teremos depois!
Que bom não acreditar no Inferno, e confiar que um Deus banana vai nos perdoar de tudo que fizemos e nos mandar logo para o paraíso!
Que bom acreditar que a Queda é apenas metafórica, apenas uma historinha de criança, sem consequências práticas!
Que bom ser pagão cientificista e acreditar que a Ciência vai nos salvar!
Que bom ser relativista e acreditar que as verdades são criações de nossa imaginação!
Que bom ser protestante e interpretar as Escrituras segundo nossas paixões!

“Duro” mesmo é ser católico, pela graça de Deus, e ter de sofrer tudo isto, pelo amor que Nosso Senhor teve por nós. Peço-Te, meu Deus, que eu possa estar à altura deste amor. Faça-me, Deus, capaz de passar por tudo isto, por amor a Seu Filho, que morreu na cruz por nós!

22/03/2011

Leituras Quaresmais: A prática da mortificação cristã

Nota: Todas as práticas de mortificação que reunimos aqui são recolhidas dos exemplos dos santos, especialmente Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Santa Teresa, São Francisco de Sales, São João Berchmans, ou são recomendadas por reconhecidos mestres da vida espiritual, como o Venerável Louis de Blois, Rodriguez, Scaramelli, Abade Allemand, Abade Hamon, Abade Dubois, etc.

Artigo 1 – Objeto da mortificação cristã

A mortificação cristã tem por fim neutralizar as influências malignas que o pecado original ainda exerce nas nossas almas, inclusive depois que o batismo as regenerou. Nossa regeneração em Cristo, ainda que tenha anulado completamente o pecado em nós, nos deixa sem embargo muito longe da retidão e da paz originais. O Concílio de Trento reconhece que a concupiscência, ou seja, o triplo apetite da carne, dos olhos e do orgulho, se deixa sentir em nós, inclusive depois do batismo, a fim de excitar-nos às gloriosas lutas da vida cristã (Conc. Trid., Sess. 5, Decretum de pecc. orig.).

A Escritura logo chama esta tripla concupiscência de “homem velho“, oposto ao “homem novo” que é Jesus que vive em nós e nós mesmos que vivemos em Jesus, como “carne” ou natureza caída, oposta ao “espírito” ou natureza regenerada pela graça sobrenatural. Este velho homem ou esta carne, ou seja, o homem inteiro com sua dupla vida moral e física, deve ser, não digo aniquilado, porque é coisa impossível enquanto dure a vida presente, mas sim mortificado, ou seja, reduzido praticamente à impotência, à inércia e à esterilidade de um morto; há que impedir-lhe que dê seu fruto, que é o pecado, e anular sua ação em toda a nossa vida moral.

A mortificação cristã deve, portanto, abraçar o homem inteiro, estender-se a todas as esferas de atividade nas quais a natureza é capaz de mover-se. Tal é o objeto da virtude de mortificação. Vamos indicar sua prática, recorrendo sucessivamente às manifestações múltiplas de atividade em que se traduz em nós:

I) A atividade orgânica ou a vida corporal;

II) A atividade sensível, que se exerce seja sob a forma do conhecimento sensível pelos sentidos exteriores ou pela imaginação, seja sob a forma de apetite sensível ou de paixão;

III) A atividade racional e livre, princípio de nossos pensamentos e de nossos juízos, e das determinações de nossa vontade;

IV) Consideraremos a manifestação exterior da vida de nossa alma, ou nossas ações exteriores;

V) E, finalmente, o intercâmbio de nossas relações com o próximo.

Artigo 2 – Exercício da mortificação cristã

A. Mortificação do corpo

1º Limite-se, tanto quanto possa, em matéria de alimentos, ao estritamente necessário. Medite estas palavras que Santo Agostinho dirigia a Deus: “Me ensinastes, oh meu Deus, a pegar os alimentos somente como remédios. Ah, Senhor!, aqui quem dentre nós não vai além do limite? Se há um só, declaro que este homem é grande e que deve grandemente glorificar vosso nome” (Confissões, liv. X, cap. 31);

2º Roga a Deus com freqüência, roga-lhe a cada dia que lhe impeça, com Sua graça, de transpassar os limites da necessidade, ou deixar-se levar pelo atrativo do prazer;

3º Não pegue nada entre as refeições, a menos que haja alguma necessidade ou razões de conveniência;

4º Pratique a abstinência e o jejum, mas pratique-os somente sob obediência e com discrição;

5º Não lhe está proibido saborear alguma satisfação corporal, mas faça-o com uma intenção pura e bendizendo a Deus;

6º Regule seu sono, evitando nisto toda relaxação ou molície, sobretudo pela manhã. Se pode, fixe-se uma hora para deitar-se e levantar-se, e obrigue-se a ela energicamente;

7º Em geral, não descanse senão na medida do necessário; entregue-se generosamente ao trabalho, e não meça esforços e penas. Tenha cuidado para não extenuar seu corpo, mas guarde-se também de agradá-lo: quando sentir que ele está disposto a rebelar-se, por pouco que seja, trate-o como a um escravo;

8º Se sente alguma ligeira indisposição, evite irritar-se com os demais por seu mau humor; deixe aos seus irmãos o cuidado de queixar-se; pelo que lhe cabe, seja paciente e mudo como o divino Cordeiro que levou verdadeiramente todas as nossas enfermidades;

9º Guarde-se de pedir uma dispensa ou revogação à sua ordem do dia pelo mínimo mal-estar. “Há que fugir como da peste de toda dispensa em matéria de regras“, escrevia São João Berchmans;

10º Receba docilmente, e suporte humilde, paciente e perseverantemente a mortificação penosa que se chama doença.

B. Mortificação dos sentidos, da imaginação e das paixões

1º Feche seus olhos, diante de tudo e sempre, a todo espetáculo perigoso, e inclusive tenha a valentia de fechá-los a todo espetáculo vão e inútil. Veja sem olhar; não se fixe em ninguém para discernir sua beleza ou feiúra;

2º Tenha seus ouvidos fechados às palavras bajuladoras, aos louvores, às seduções, aos maus conselhos, às maledicências, às zombarias que ferem, às indiscrições, à crítica malévola, às suspeitas comunicadas, a toda palavra que possa causar o menor esfriamento entre duas almas;

3º Se o sentido do olfato tem que sofrer algo por conseqüência de certas doenças ou debilidades do próximo, longe de queixar-se disso, suporte-o com uma santa alegria;

4º No que concerne à qualidade dos alimentos, seja muito respeitoso do conselho de Nosso Senhor: “Comei o que vos for apresentado”. “Comer o que é bom sem comprazer-se nisto, o que é mau sem mostrar aversão, e mostrar-se indiferente tanto em um como no outro, esta é a verdadeira mortificação”, dizia São Francisco de Sales;

5º Ofereça a Deus suas comidas, imponha-se na mesa uma pequena privação: por exemplo, negue-se um grão de sal, um copo de vinho, uma guloseima, etc.; os demais não o perceberão, mas Deus o terá em conta;

6º Se o que lhe apresentam excita vivamente seu atrativo, pense no fel e no vinagre que apresentaram a Nosso Senhor na cruz: isto não lhe impedirá de saborear o manjar, mas servirá de contrapeso ao prazer;

7º Há que evitar todo contato sensual, toda carícia em que se poria certa paixão, em que se buscaria ou onde se teria um gozo principalmente sensível;

8º Prescinda de ir aquecer-se, a menos que lhe seja necessário para evitar-lhe uma indisposição;

9º Suporte tudo o que aflige naturalmente a carne; especialmente o frio do inverno, o calor do verão, a dureza da cama e todas as incomodidades do gênero. Faça boa cara em todos os tempos, sorria a todas as temperaturas. Diga com o profeta: “Frio, calor, chuva, bendizei ao Senhor“. Felizes somos se podemos chegar a dizer com gosto esta frase tão familiar a São Francisco de Sales: “Nunca estou melhor do que quando não estou bem”;

10º Mortifique sua imaginação quando lhe seduz com a isca de um posto brilhante, quando se entristece com a perspectiva de um futuro sombrio, quando se irrita com a recordação de uma palavra ou de um ato que o ofendeu;

11º Se sente em você a necessidade de sonhar, mortifique-a sem piedade;

12º Mortifique-se com o maior cuidado sobre o ponto da impaciência, da irritação ou da ira;

13º Examine a fundo seus desejos, e submeta-os ao controle da razão e da fé: você não deseja mais uma vida longa que uma vida santa? prazer e bem-estar sem tristeza nem dores, vitórias sem combates, êxitos sem contrariedades, aplausos sem críticas, uma vida cômoda e tranquila sem cruzes de nenhum tipo, ou seja, uma vida completamente oposta à de nosso divino Salvador?

14º Tenha cuidado de não contrair certos costumes que, sem ser positivamente maus, podem chegar a ser funestos, tais como o costume de leituras frívolas, dos jogos de azar, etc.;

15º Trate de conhecer seu defeito dominante, e quando o tiver conhecido, persiga-o até suas últimas pregas. Por isso, submeta-se com boa vontade ao que poderia ter de monótono e de entediado na prática do exame particular;

16º Não lhe está proibido ter bom coração e mostrá-lo, mas fique atento para o perigo de exceder o justo meio. Combata energicamente os afetos demasiado naturais, as amizades particulares, e todas as sensibilidades moles do coração.

C. Mortificação do espírito e da vontade

1º Mortifique seu espírito proibindo-lhe todas as imaginações vãs, todos os pensamentos inúteis ou alheios que fazem perder o tempo, dissipam a alma, e provocam o desgosto do trabalho e das coisas sérias;

2º Deve distanciar de seu espírito todo pensamento de tristeza e de inquietude. O pensamento do que poderá suceder no futuro não deve preocupá-lo. Quanto aos maus pensamentos que o molestam, deve fazer deles, distanciando-os, matéria para exercer a paciência. Se são involuntários, não serão para você senão uma ocasião de méritos;

3º Evite a teimosia em suas idéias, e a obstinação em seus sentimentos. Deixe prevalecer de boa vontade o juízo dos demais, salvo quando se trate de matérias em que você tem o dever de pronunciar-se e falar;

4º Mortifique o órgão natural de seu espírito, ou seja, a língua. Exerça-se de boa vontade no silêncio, seja porque sua Regra o prescreve, seja porque você o impõe espontaneamente;

5º Prefira escutar os demais do que falar você mesmo; mas, sem embargo, fale quando convenha, evitando tanto o excesso de falar demasiado, que impede os demais de expressar seus pensamentos, como o de falar demasiado pouco, que denota indiferença, que fere ao que dizem os demais;

6º Não interrompa nunca quem fala, e não corte com uma resposta precipitada quem lhe pergunta;

7º Tenha um tom de voz sempre moderado, nunca brusco nem cortante. Evite os “muito”, os “extremamente”, os “horrivelmente”, etc.: não seja exagerado em seu falar;

8º Ame a simplicidade e a retidão. A simulação, os rodeios, os equívocos calculados que certas pessoas piedosas se permitem sem escrúpulo, desacreditam muito a piedade;

9º Abstenha-se cuidadosamente de toda palavra grosseira, trivial ou inclusive ociosa, pois Nosso Senhor nos adverte que nos pedirá conta delas no dia do Juízo;

10º Acima de tudo, mortifique sua vontade; é o ponto decisivo. Adapte-a constantemente ao que sabe ser do beneplácito divino e da ordem da Providência, sem ter nenhuma conta nem de seus gostos nem de suas aversões. Submeta-se inclusive a seus inferiores nas coisas que não interessam para a glória de Deus e os deveres de seu cargo;

11º Considere a menor desobediência às ordens, inclusive aos desejos de seus Superiores, como dirigida a Deus;

12º Lembre-se de que praticará a maior de todas as mortificações quando amar ser humilhado e quando tiver a mais perfeita obediência àqueles a quem Deus quer que se submeta;

13º Ame ser esquecido e ser tido por nada: é o conselho de São João da Cruz, é o conselho da Imitação: não fale apenas de si mesmo nem para bem nem para mal, mas busque pelo silêncio fazer-se esquecer;

14º Diante de uma humilhação ou repreensão, se sente tentado a murmurar? Diga como Davi: “Melhor assim! É-me bom ser humilhado!”;

15º Não entretenha desejos frívolos: “Desejo poucas coisas, e o pouco que desejo, o desejo pouco”, dizia São Francisco;

16º Aceite com a mais perfeita resignação as mortificações chamadas de Providência, as cruzes e os trabalhos unidos ao estado em que a Providência o pôs. “Quanto menos há de nossa eleição, mais há de beneplácito divino“, dizia São Francisco de Sales. Queríamos escolher nossas cruzes, ter outra distinta da nossa, levar uma cruz pesada que tivesse ao menos algum brilho, antes que uma cruz ligeira que cansa por sua continuidade: Ilusão! Devemos levar nossa cruz, e não outra, e o mérito disto não se encontra em sua qualidade, mas na perfeição com que a levamos;

17º Não se deixe turbar pelas tentações, pelos escrúpulos, pelas aridezes espirituais: “o que se faz durante a sequidão é mais meritório diante de Deus do que o que se faz durante a consolação”, dizia o santo bispo de Genebra;

18º Não devemos entristecer-nos demasiado por nossas misérias, senão mais bem humilhar-nos. Humilhar-se é uma coisa boa, que poucas pessoas compreendem; inquietar-se e impacientar-se é uma coisa que todo o mundo conhece e que é má, porque nesta espécie de inquietude e de despeito o amor próprio tem sempre a maior parte;

19º Desconfiemos igualmente da timidez e do desânimo, que fazem perder as energias, e da presunção, que nada mais é do que o orgulho em ação. Trabalhemos como se tudo dependesse de nossos esforços, mas permaneçamos humildes como se nosso trabalho fosse inútil.

D. Mortificações que há de se praticar em nossas ações exteriores

1º Deve ser o mais exato possível em observar todos os pontos de sua regra de vida, obedecer sem demora, lembrando-se de São João Berchmans, que dizia: “Minha maior penitência é seguir a vida comum”; “Fazer o maior caso das menores coisas, tal é o meu lema”; “Antes morrer que violar uma só de minhas regras!”;

2º No exercício de seus deveres de estado, trate de estar muito contente com tudo o que parece feito de propósito para desagradá-lo e molestá-lo, lembrando-se também aqui da frase de São Francisco de Sales: “Nunca estou melhor do que quando não estou bem”;

3º Não conceda jamais um momento à preguiça; da manhã à noite, esteja ocupado sem descanso;

4º Se sua vida se passa dedicada, ao menos em partes, ao estudo, aplique os seguintes conselhos de Santo Tomás de Aquino aos seus alunos: “Não se contentem em receber superficialmente o que lêem ou escutam, mas tratem de penetrar e aprofundar seu sentido. – Não fiquem nunca com dúvidas sobre o que podem saber com certeza. – Trabalhem com uma santa avidez em enriquecer seu espírito; classifiquem com ordem em sua memória todos os conhecimentos que possam adquirir. – Sem embargo, não tratem de penetrar os mistérios que estão acima de sua inteligência”;

5º Ocupe-se unicamente da ação presente, sem voltar-se ao que precedeu nem adiantar-se pelo pensamento ao que vem a seguir; diga com São Francisco: “Enquanto faço isto, não estou obrigado a fazer outra coisa”; “Apressemo-nos com bondade: será tão logo tanto quanto esteja bom”;

6º Seja modesto em sua compostura. Nenhum porte era tão perfeito como o de São Francisco; tinha sempre a cabeça direita, evitando igualmente a ligeireza que a gira em todos os sentidos, a negligência que a inclina adiante e o humor orgulhoso e altivo que a levanta para trás. Seu rosto estava sempre tranqüilo, livre de toda preocupação, sempre alegre, sereno e aberto, sem ter, sem embargo, uma jovialidade indiscreta, sem risadas ruidosas, imoderadas ou demasiado freqüentes. Quando se encontrava só mantinha-se em tão boa compostura como diante de uma grande assembléia. Não cruzava as pernas, não apoiava a cabeça no encosto. Quando rezava, ficava imóvel como uma coluna. Quando a natureza lhe sugeria seus gostos, não a escutava em absoluto;

7º Considere a limpeza e a ordem como uma virtude, e a sujeira e a desordem como um vício: evite os vestidos sujos, manchados ou rasgados. Por outra parte, considere como um vício ainda maior o luxo e o mundanismo. Faça de modo que ao ver sua vestimenta e adereços, ninguém diga: está desarrumado; nem: está elegante; mas que todo o mundo possa dizer: está decente.

E. Mortificações para praticar em nossas relações com o próximo

1º Suporte os defeitos do próximo: faltas de educação, de espírito, de caráter. Suporte tudo o que nele lhe desagrada: seu modo de andar, sua atitude, seu tom de voz, seu sotaque, e todo o resto;

2º Suporte tudo a todos e suporte até o fim e cristãmente. Não se deixe levar jamais por essas impaciências tão orgulhosas que fazem dizer: Que posso fazer de tal ou qual? Em que me concerne o que diz? Para que preciso o afeto, a benevolência ou a cortesia de uma criatura qualquer, e desta em particular? Nada é menos segundo Deus que estes desprendimentos altaneiros e estas indiferenças depreciativas; melhor seria, certamente, uma impaciência;

3º Encontra-se tentado a irar-se? Pelo amor a Jesus, seja manso. De vingar-se? Devolva bem ao mal. Diz-se que o segredo de chegar ao coração de Santa Teresa, era fazer-lhe algum mal. De mostrar a alguém uma cara má? Sorria com bondade. De evitar seu encontro? Busque-o por virtude. De falar mal dele? Fale bem. De falar-lhe com dureza? Fale doce e cordialmente;

4º Ame fazer o elogio de seus irmãos, sobretudo daqueles a quem sua inveja se dirige mais naturalmente;

5º Não diga acuidades em detrimento da caridade;

6º Se alguém se permite em sua presença palavras pouco convenientes, ou mantém conversações próprias para danificar a reputação do próximo, poderá às vezes repreender com doçura a quem fala, mas mais freqüentemente será melhor distanciar habilmente a conversação ou manifestar por um gesto de descontentamento ou de desatenção querida que o que se está dizendo o desagrada;

7º Quando lhe custar fazer um favor, ofereça-se a fazê-lo: terá duplo mérito;

8º Tenha horror de apresentar-se diante de si mesmo ou dos demais como uma vítima. Longe de exagerar suas cargas, esforce-se em encontrá-las leves. O são em realidade muito mais freqüentemente do que parece, e o seriam sempre se tivesse um pouco mais de virtude.

Conclusão

Em geral, saiba negar à natureza o que ela pede sem necessidade.

Saiba fazê-la dar o que ela nega sem razão. Seus progressos na virtude, disse o autor da Imitação de Cristo, serão proporcionais à violência que saiba fazer-se.

Dizia o santo Bispo de Genebra: “Há que morrer a fim de que Deus viva em nós: porque é impossível chegar à união da alma com Deus por outro caminho que não o da mortificação. Estas palavras: Há que morrer! são duras, mas serão seguidas de uma grande doçura, porque não se morre a si mesmo senão para unir-se a Deus por esta morte”.

Quisera Deus que pudéssemos aplicar-nos com pleno direito as seguintes palavras de São Paulo: “Em todas as coisas sofremos a tribulação… Trazemos sempre em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste também em nossos corpos” (2 Cor. 4, 10).

Livre-tradução do Artigo “La mortificación cristiana” do Cardeal Desidério José Mercier (1851-1926) publicado em “Cuadernos de La Reja” número 2 do Seminário Internacional Nossa Senhora Corredentora da FSSPX. Publicado em: Fraternidade Sacerdotal São Pio X.

19/03/2011

A vida de São José

Rev. Alban Butler (1711-73) – Vol. III – Março – A Vida dos Santos, 1866.

O GLORIOSO São José era descendente direto dos grandes reis da tribo de Judá, e dos mais ilustres patriarcas; mas sua verdadeira glória consistiu em sua humildade e virtude. A história de sua vida não foi escrita por homens, mas suas ações principais foram registradas pelo próprio Espírito Santo. Deus delegou-lhe a educação de seu divino Filho, manifestado na carne. Para este fim, ele esposou a Virgem Maria. É um erro evidente de alguns autores considerar que, de uma ex-mulher, ele fosse pai de São Tiago Menor, e de outros que nos evangelhos são referidos como irmãos do Senhor: pois havia apenas primos-primeiros de Cristo, os filhos de Maria, irmã da Virgem Santíssima, esposa de Alfeu, que ainda vivia no tempo da crucificação do Redentor. São Jerônimo assegura-nos[1] que São José sempre preservou sua castidade virginal; e é de fé que nada contrário a isto jamais ocorreu em relação à sua casta esposa, a Virgem Maria Santíssima. Ele lhe foi dado pelo céu para ser o protetor de sua castidade, para defendê-la de calúnias na ocasião do nascimento do Filho de Deus, e para assisti-la na educação d’Ele, em sua caminhada, fatigas e perseguições. Quão imensa foi a pureza e santidade daquele que foi escolhido como guardião da mais imaculada Virgem! Este homem santo parece ter desconhecido, por tempo considerável, o grande mistério da Encarnação, que fora nela forjado pelo Espírito Santo. Consciente, contudo, de seu próprio comportamento casto em relação a ela, era natural que uma grande preocupação surgisse em seu interior, ao descobrir que, não obstante a santidade do comportamento dela, com toda a certeza ela estava grávida. Mas sendo um homem justo, como as Escrituras o chamam, e conseqüentemente possuidor de todas as virtudes, especialmente a caridade e a mansidão em relação ao próximo, ele estava determinado a deixá-la em segredo, sem condená-la ou acusá-la, entregando tudo a Deus. Estas suas perfeitas disposições foram tão aceitáveis a Deus, o amante da justiça, caridade e paz, que antes que ele executasse o planejado, Ele enviou um anjo do céu, não para repreender qualquer coisa de sua santa conduta, mas para dissipar todas as suas dúvidas e temores, revelando-lhe o adorável mistério. Quão felizes seríamos se fossemos tão delicados em tudo que se relacionasse à reputação do próximo; tão livres de maus pensamentos ou suspeições, qualquer que fosse a certeza que fundamentasse nossas conjecturas ou nossos sentidos; tão controlados em usar nossa língua! Cometemos estas faltas somente porque, em nossos corações, somos desprovidos daquela verdadeira caridade e simplicidade da qual São José nos deu tão eminente exemplo naquela ocasião.

Podemos admirar em secreta contemplação, com que devoção, respeito e delicadeza ele contemplava e adorava o primeiro de todos os homens, o recém-nascido Salvador do mundo, e com que fidelidade ele se desincumbia de suas duas responsabilidades, a educação de Jesus e a guarda de sua santa mãe. “Ele foi verdadeiramente o servo fiel e prudente,” diz São Bernardo,[2] “a quem nosso Senhor nomeou para o chefe do lar, o conforto e apoio de Sua mãe, Seu padrasto, e o mais fiel colaborador na execução de seus mais profundos conselhos na terra.” “Que felicidade,” diz o mesmo padre, “não somente ver Jesus Cristo, mas também ouvi-Lo, carregá-Lo em seus braços, levá-Lo a lugares, abraçá-Lo e acariciá-Lo, alimentá-Lo, compartilhar todos os grandes segredos que eram ocultados dos príncipes deste mundo.”

“Oh, assombrosa elevação! Oh, incomparável dignidade!” clama o piedoso Gerson,[3] numa devota alocução a São José, “que a mãe de Deus, rainha dos céus, o chame de senhor; que o próprio Deus feito homem o chame de pai e obedeça suas ordens. Oh, gloriosa Tríade na terra, Jesus, Maria e José, que família mais querida à gloriosa Trindade nos céus, Pai, Filho e Espírito Santo! Nada é tão grande na terra, tão bom, tão excelente.” Em meio a estas graças extraordinárias, que coisa há mais maravilhosa que sua humildade! Ele oculta seus privilégios, vive como um homem obscuro, não escreve nada acerca dos grandes mistérios de Deus, não indaga mais nada sobre os mistérios de Deus, deixando a Deus a decisão de manifestá-los em Seu próprio tempo, procura cumprir a ordem da providência a seu respeito, sem interferir com qualquer coisa, exceto a que lhe diz respeito. Embora descendente da família real que tivera uma longa possessão do trono da Judéia, ele se contenta com sua condição de mecânico e artesão,[4] de cujo trabalho tira o sustento para manter a si próprio, a sua esposa e a seu divino filho.

Seríamos ingratos a este grande santo se não lembrássemos que é a ele, como instrumento de Deus, que devemos a preservação do menino Jesus do ciúme e da malícia de Herodes, manifestada na matança dos Inocentes. Um anjo, que lhe apareceu em sonho, ordenou-lhe que levantasse, tomasse o menino Jesus, fugisse com ele para o Egito e ficasse lá até que lhe fosse ordenado que voltasse. Esta repentina e inesperada fuga deve ter causado muitos inconvenientes e sofrimentos a José, numa viagem tão longa, com uma criança pequena e uma virgem delicada, grande parte do caminho sendo através de desertos e em meio a estranhos; mesmo assim, ele não alegou nenhuma desculpa, nada perguntando acerca do momento do retorno. S. Crisóstomo observa que Deus trata assim todos os seus servos, enviando-lhes freqüentes provas, para livrar seus corações da ferrugem do amor-próprio, mas entremeando períodos de consolação.[5] “José”, diz ele, “está ansioso ao ver a Virgem com o filho; um anjo remove o temor; ele regozija-se com o nascimento da criança, mas um grande temor sucede; o rei furioso procura destruir a criança e toda a cidade está em alvoroço para tirar sua vida. Isto é seguido por uma nova alegria, a adoração dos Magos: uma nova tristeza então surge; ele recebe a ordem de fugir para um país estrangeiro e desconhecido, sem auxílio ou alguém conhecido.” É a opinião dos Padres da Igreja, que com a presença do menino Jesus, todos os oráculos daquele país supersticioso ficaram mudos, e as estátuas de seus deuses estremeceram e, em muitos lugares, caíram por terra, de acordo com Isaías 19: E as estátuas egípcias estremecerão diante d’Ele.[6] Os Padres também atribuem a esta divina visita as graças derramadas naquele país, que fez dele, por muitos anos, um campo fértil de santos.[7]

Depois da morte do rei Herodes, que foi informada a São José por meio de uma visão, Deus ordenou-lhe o retorno, com a criança e a mãe, para a terra de Israel, ordem que nosso santo prontamente obedeceu. Mas quando ele chegou à Judéia, sabendo que Arquelau sucedera Herodes naquela parte do país, temendo que ele tivesse sido infectado pelos vícios de seu pai – crueldade e ambição – ele temeu, por isso, lá se estabelecer, como ele teria, de resto, feito, pelas facilidades de educação da criança. E assim, sendo orientado por Deus em nova visão, ele se fixou nos domínios do irmão de Arquelau, Herodes Antipas, na Galiléia, em sua residência anterior, em Nazaré, onde as maravilhosas ocorrências do nascimento de Nosso Senhor eram menos conhecidas. São José, sendo um austero observante da Lei Mosaica, em conformidade com ela, anualmente visitava Jerusalém para celebrar a páscoa. Arquelau, tendo sido banido por Augusto, e a Judéia tendo se tornado uma província romana, José não tinha, agora, nada a temer em Jerusalém. Nosso Salvador, tendo completado doze anos de idade, acompanhou seus pais até lá; os quais, tendo realizado as cerimônias usuais da celebração, estavam agora retornando, com muitos de seus vizinhos e conhecidos, para a Galiléia. Sem nunca duvidarem que Jesus se unira ao grupo com algum amigo, viajaram durante todo dia sem procurar por Ele, antes que descobrissem que Ele não viajara com eles. Mas quando caiu a noite e eles não conseguiram obter nenhuma notícia d’Ele entre parentes e conhecidos, eles, na mais profunda aflição, retornaram com a máxima urgência a Jerusalém; onde, depois de uma busca ansiosa de três dias, eles O encontraram no templo, entre doutores da lei, ouvindo seus discursos e argüindo-os de forma a causar grande admiração a todos que O ouviam, deixando-os impressionados com a maturidade de Sua compreensão: tampouco seus pais ficaram menos surpresos na ocasião. E quando sua mãe contou-lhe a aflição e o afinco com que Lhe procuraram, e para expressar sua tristeza por aquela privação, embora de curta duração, de sua presença, disse a Ele: “Filho, por que procedestes assim conosco? Eis que seu pai e eu andávamos angustiados à tua procura;” ela recebeu como resposta que, sendo o Messias e Filho de Deus, enviado por seu Pai ao mundo para redimi-lo, Ele deve cuidar das coisas do Pai, as mesmas pelas quais Ele fora enviado ao mundo; e portanto, era muito provável que eles O encontrassem na casa de Seu Pai: dando a entender que sua aparição em público naquela ocasião era para manifestar a honra de Seu Pai, e para preparar os príncipes dos judeus para recebê-lo como seu Messias; advertindo-os, a partir dos profetas, acerca do tempo de Sua vinda. Mas, embora permanecendo assim no templo sem o conhecimento de seus pais, Ele tenha feito algo sem a permissão deles, em obediência ao Seu Pai celeste, em todas as outras coisas, Ele lhes foi obediente, retornando com eles para Nazaré, e lá vivendo numa obediente sujeição a eles.

Aelred, nosso compatriota, abade de Rieval, em seu sermão sobre a perda do menino Jesus no templo, observa que essa Sua conduta em relação a Seus pais é uma verdadeira representação do que ele nos mostra, quando ele, não raro, se afasta de nós por um curto período para nos fazer procurá-Lo com mais afinco. Ele assim descreve os sentimentos de Seus santos pais naquela ocasião:[8] “Consideremos o que era a felicidade daquele abençoado grupo, no caminho de Jerusalém, a quem foi dado contemplar Sua face, ouvir Suas doces palavras, ver n’Ele os sinais da sabedoria e virtude divinas; e em suas conversações receber a influência de Suas verdades que salvam e de Seus exemplos. Os velhos e os jovens O admiravam. Creio que os meninos de Sua idade ficavam atônitos com a gravidade de suas maneiras e palavras. Creio que tais raios de graça lançados de Seu abençoado semblante atraiam os olhos, ouvidos e corações de todos. E quantas lágrimas eles não derramavam quando estavam longe d’Ele?” Ele continua, considerando qual deve ter sido o desconsolo dos pais quando eles O perderam; quais foram seus sentimentos e quão veemente fora sua procura: mas que alegria quando eles O encontraram novamente! “Revela-me”, diz ele, “Oh, minha Senhora. Oh, Mãe de meu Deus, quais foram seus sentimentos, seu assombro e sua alegria quando a senhora O viu novamente, sentado, não entre meninos, mas no meio de doutores da lei: quando a senhora viu os olhos de todos fixados n’Ele, os ouvidos de todos O escutando, grandes e pequenos, instruídos ou não, atentos somente em suas palavras e movimentos. A senhora diz então: encontrei Quem eu amo. Eu O abraçarei e não O deixarei mais se afastar de mim. Abrace-O, doce Senhora, segure-O firme; lance-se ao Seu pescoço, demore em seu peito, e compense os três dias de ausência multiplicando os gozos de vosso atual desfrute d’Ele. Diga-Lhe que a senhora e Seu pai o procuraram em aflição. Por que se afligiram?, não por temor que Ele ficasse com fome ou necessitasse de algo, pois vocês sabiam que Ele era Deus: mas creio que vocês se afligiram por se verem privados dos gozos de Sua presença, mesmo por um curto período; pois o Senhor Jesus é tão doce para aqueles que O experimentam, que a mais mínima ausência é um motivo da maior aflição para eles.” Esse mistério é um emblema da alma devota, que Jesus por vezes se afastando e deixando-a na secura, a faça procurá-Lo com mais fervor. Mas, acima de tudo, quão fervorosamente não deve a alma que perdeu a Deus pelo pecado procurá-Lo novamente, e quão amargamente ela não deve deplorar sua extrema infelicidade!

Como nenhuma outra menção é feita a São José, ele deve ter morrido antes das bodas de Caná e do começo do ministério de nosso divino Salvador. Não podemos duvidar que ele tenha tido a felicidade da presença de Jesus e Maria em sua morte, rezando ao seu lado, assistindo-o e confortando-o nos seus últimos momentos. Por isso, ele é particularmente invocado pela grande graça de uma morte feliz e pela presença de Jesus nesta hora tremenda. A Igreja lê a história do patriarca José no seu dia, este que era chamado o salvador do Egito, que ele livrou de uma fome fatal; e foi nomeado o mestre fiel da casa de Putephar, do faraó e seu reino. Mas nosso grande santo foi escolhido por Deus como o salvador da vida do verdadeiro Salvador das almas dos homens, resgatando-O da tirania de Herodes. Ele está agora glorificado nos céus, como o guardião e mantenedor de seu Senhor na terra. Como o faraó dizia aos egípcios em suas tribulações: “Ide a José;” que nós confiantemente nos dirijamos à mediação dele, a quem Deus, feito homem, esteve sujeito e obediente na terra.

O devoto Gerson expressou a mais calorosa devoção a São José, que ele empenhou-se em promover por cartas e sermões. Ele compôs um ofício em sua honra, e escreveu sua vida em doze poemas, chamados Josefina. Ele engrandeceu todas as circunstâncias de sua vida através de piedosas afeições e meditações. Santa Teresa o escolheu o principal patrono de sua ordem. No sexto capítulo de sua vida, ela escreveu assim: “Escolhi o glorioso São José para meu patrono, e me recomendo singularmente a sua intercessão em todas as coisas. Não me lembro de ter suplicado a Deus alguma coisa por seu intermédio que eu não tivesse conseguido. Nunca conheci alguém que, por sua invocação, não tenha muito avançado na virtude: pois ele assiste de uma forma maravilhosa todos que se dirigem a ele.” São Francisco de Sales, ao longo de seus “dezenove entretenimentos”, recomendava grandemente a devoção a São José, e exaltava seus méritos, principalmente sua virgindade, humildade, constância e coragem. Os sírios e outras igrejas orientais celebram sua festa em 20 de julho; a Igreja ocidental, em 19 de março. O papa Gregório XV, em 1621, e Urbano VIII, em 1642, ordenou manter esta data como feriado de guarda.

A Sagrada Família de Jesus, Maria e José, nos apresenta o mais perfeito modelo de convivência na terra. Como aqueles dois serafins, Maria e José, viviam em sua pobre casa! Eles sempre desfrutavam da presença de Jesus, sempre se abrasando no mais ardente amor por Ele, inviolavelmente ligados à Sua sagrada Pessoa, sempre ocupados e vivendo apenas por Ele. Quantos foram seus êxtases em contemplá-Lo, qual foi sua devoção em ouvi-Lo, e seu gozo em possuí-Lo! Oh, vida celestial! Oh, antecipação da beatitude celestial! Oh, convívio divino! Podemos imitá-los, e compartilhar algum grau dessas vantagens, ao conversar freqüentemente com Jesus, e ao contemplar sua mais amigável bondade, acendendo o fogo de Seu divino amor em nosso peito. Os efeitos desse amor, se ele for sincero, aparecerá necessariamente na adoção de Seu espírito, na imitação de Seu exemplo e virtudes; e em nosso esforço em caminhar continuamente na presença divina, encontrando Deus em todos os lugares, e na consideração de todo o tempo perdido que não dedicamos a Deus, ou à Sua honra.

[1] L. adv. Helvid. c. 9.
[2] Hom. 2. super missus est, n. 16. p. 742.
[3] Serm de Nativ.
[4] Isto aparece em: Mat 23:55; S. Justino (Dial. n. 89. ed. Ben. p. 186.); S. Ambrósio (in Luc. p. 3.). Theodoreto (b. 3. Hist. c. 18.) diz que ele trabalhou em madeira, como carpinteiro. S. Hilário (in Matt. c. 14. p. 17.) e S. Pedro Chrisólogo (Serm. 48.) dizem que ele trabalhava em ferro como ferreiro; provavelmente ele trabalhou tanto em ferro quanto em madeira; opinião esposada por S. Justino, que diz: “Ele e Jesus fabricavam arados e parelhas de bois”.
[5] Hom. 8. in Matt. t. 7. p. 123. ed. Ben.
[6] Isto é afirmado por: S. Atanásio (1. de Incarn.); Eusébio (Demonstrat. Evang. l. 6. c. 20.); S. Cirilo (Cat. 10.); S. Ambrósio (in Ps. 118. Octon. 5.); S. Jerônimo (in Isai. 19.); S. Crisóstomo e St. Cyril of Alexandria, (in Isai.); Sozomeno, (l. 5. c. 20.); etc.
[7] Ver, Vidas dos Santos Padres do Deserto.
[8] Bibl. Patr. t. 13.