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12/01/2013

Corção defende Chesterton de um detrator tardio.


Há talvez três anos, tenho sobre minha mesa uma cópia de um capítulo de um livro de Martin Gardner, matemático americano, morto em 2010. O livro me foi mostrado por um amigo e eu tirei cópia de um capítulo onde o autor faz uma crítica tanto a Chesterton quanto a Belloc, em suas posições críticas à teoria da evolução, que Gardner aborda como se fosse uma teoria científica, e uma verdade absoluta. O livro se intitula Fads and Fallacies in the Name of Science, e em português ganhou o título de Manias e Crendices em Nome da Ciência, Ed. Ibrasa, 1960. O capítulo copiado tem o título “Geologia versus Genesis”.  O mote do texto pode ser aquilatado pela frase: “O golpe que esse livro (Origem das Espécies, de Darwin) fez cair sobre a cristandade produziu uma explosão fácil de se compreender.” Gardner parece desconhecer que a adoção dessa “teoria” por parte dos maiores cientistas evolucionistas é exatamente por causa do golpe e não por causa da veracidade da teoria. O golpe é que acreditando-se na “teoria”, que é na verdade uma religião, não é preciso se acreditar no Genesis, fim último do cientificismo. O valor da “teoria” está na exclusão do Genesis. Mas isso eu já abordei em Por que a academia adota a Evolução?.

No que diz respeito a Belloc e Chesterton, Gardner começa por se referir ao grande debate de Belloc e Wells ficando, claro, do lado de Wells. Inclui aí também Chesterton e sua resposta ao livro de Wells, Outline of History, que se constitui em uma de suas obras-primas, O Homem Eterno. Ao fazer isso, ele diz: “O grande e bom amigo de Belloc, Gilbert Chesterton, raramente tocou na evolução, em seus livros. Quando o fez, sempre escreveu coisas mais ou menos insensatas.” E aí ele fala de O Homem Eterno. A defesa das ideias de Chesterton expressas neste livro, vou deixar para Corção. Quero apenas assinalar que Chesterton escreveu copiosamente contra a teoria da evolução e suas consequências, tanto em livro – A Coisa, por exemplo – quanto em centenas de artigos de jornal. Eu mesmo já pensei em organizar uma coletânea de seus artigos de jornal sobre darwinismo e evolução. Gadner talvez não tivesse bem informado sobre isso.

Mas eis que sou surpreendido por um artigo de jornal de um grande chestertoniano, o maior dos brasileiros: Gustavo Corção. Leio na excelente coletânea, Gustavo Corção Tomista, Org. D. Lourenço Fleichamn, Ed. Permanência, 2012, um artigo intitulado “Um Argumento Infeliz”. Corção comenta uma passagem destacada por Gardner, que supostamente demonstraria as manias e crendices de Chesterton: “Os animais superiores não desenham retratos cada vez melhores; o cão não pinta melhor, no seu estágio avançado, do que em sua forma primitiva de chacal: o cavalo selvagem não foi impressionista, e o cavalo bem tratado não se tornou pós-impressionista... Uma vaca num campo não parece demonstrar nenhum impulso lírico, nem se preocupa comas oportunidades raras de ouvir a cotovia...” Gardner reconhece que Chesterton fala aqui da diferença profunda e essencial que separa os homens dos animais. E para isso, Gadner tem o seguinte contra-argumento: “A resposta simples é que a mesma grande diferença existe também entre um homem e uma criança recém-nascida. A réplica de que a criança se transforma em homem é irrelevante.” Corção, depois de reparar na grande incapacidade de Gardner em perceber que o problema à mão não é de arqueologia ou de etnografia, mas de filosofia, responde: “Não seria esta a resposta de Chesterton ao cientista americano, e sim uma outra, prodigiosamente mais simples. Ele não diria que a grande diferença que existe entre a criança e o homem será vencida quando a criança se transformar em homem. Diria: não existe diferença entre a criança e o homem, a criança é igual, rigorosamente igual ao homem. (...) [Aqueles que subscrevem filosofias nominalistas] consideram apenas aspectos acidentais exteriores, e com eles pretendem especificar o homem, o pássaro e os demais habitantes do universo.” Aponta mais adiante uma outra incapacidade de Gardner: “O cientista americano, preso aos seus hábitos de observador dos fatos empíricos, nem chegou a perceber a que realidade humana, a que definição, se referiam Chesterton e Belloc quando argumentavam contra a filosofia evolucionista.”

Mas no final do artigo de Corção há a emergência do grande chestertoniano que ele é. Ele diz, no último parágrafo: “No fim do capítulo, Martin Gardner lembra aos católicos um excelente conselho tirado de Santo Agostinho, no qual o grande doutor dizia que o cristão deve acautelar-se de falar sobre assuntos científicos que não conheça, porque pode acontecer que algum pagão presente, mais versado no assunto, possa corrigi-lo. Dou o mesmo conselho a Martin Gardner. Descreva os achados das ciências que conhece, mas abstenha-se cuidadosamente de enveredar por caminhos filosóficos, porque pode acontecer que algum leitor menos informado em Astronomia, Geologia, Física, ou Química, tenha estudado alguma coisa de Filosofia, e então perceba, nua e esquálida, a miséria da improvisada filosofia do cientista.”

Eis aí a resposta que eu gostaria de ter dado a Gardner!

Agradeço a Deus por nos ter dado um intelectual como Corção.

12/11/2012

Guia Prático de Teologia: Protestantes, aprendam a ler a Bíblia com o católico Chesterton!

Já está nas bancas do Brasil o segundo número do Guia Prático de Teologia. Nesta edição, Chesterton aparece com um texto extraordinário: Introdução ao livro de Jó. Se os tempos fossem outros, se os cursos de Teologia fossem outros, se a Igreja não tivesse sido atingida pelo tsunami do Concílio Vaticano II, este texto seria estudado, seria tema de dissertações de mestrado, quiçá de teses de doutorado. Mas pela graça de Deus, temos ainda, milagre dos milagres, quem se interesse em publicá-lo para o deleite e edificação dos católicos que sobraram por aí. Os protestantes têm uma oportunidade única de acompanhar como um católico interpreta a Bíblia. Este mesmo católico que fala o seguinte, em outro de seus escritos.

(...) Afinal, quando chego a pensar nisso, todas as outras revoltas contra a Igreja, antes da Revolução e especialmente desde a Reforma, contaram a mesma estranha história. Todo grande herege sempre exibiu a combinação de três extraordinárias características. A primeira é que ele escolhia alguma ideia mística do conjunto harmonioso das ideias místicas da Igreja. A segunda característica é que ele usava aquela única ideia mística contra todas as ideias místicas. A terceira (e a mais singular) é que ele parecia não ter tido nenhuma noção de que sua própria ideia mística favorita era uma ideia mística, pelo menos no sentido de uma ideia misteriosa, dúbia ou dogmática. Com uma estranha e incomum inocência, ele aparentemente sempre considerava esta ideia uma coisa natural. Ele a pressupunha inatacável, mesmo quando a estava usando para atacar ideias similares. O exemplo mais popular e óbvio é a Bíblia. A um pagão imparcial ou a um observador cético, esta deve ter sempre parecido a mais estranha história do mundo; que homens invadindo um templo para destruí-lo, destruindo o altar e expulsando o padre, encontraram lá certos volumes sagrados intitulados “Salmos” ou “Evangelhos”; e (ao invés de jogá-los ao fogo com o resto) começaram a usá-los como oráculos infalíveis para invalidar todos os outros sistemas. Se o altar sagrado e principal está errado, por que os documentos sagrados e secundários estariam certos? Se o padre profanava os Sacramentos, por que não poderia ter profanado as Escrituras? Mesmo assim, demorou muito para que ocorresse àqueles que brandiam esta peça do mobiliário da Igreja para quebrar todo o mobiliário da Igreja, quão profano seria examinar este fragmento do mobiliário. As pessoas se surpreenderam muito, e em algumas partes do mundo ainda estão surpresas, que alguém tenha tido a audácia de fazê-lo. 

Vocês veem ao lado a página inicial da bela edição que o texto ganhou no segundo número do Guia Prático de Teologia. O ensaio toma oito páginas da mais criativa exegese bíblica.

É bom ver Chesterton sendo disponibilizado em bancas de jornal. Ele, que sempre se considerou apenas um jornalista, se alegraria com isso!


17/10/2012

Imparcialidade em discussões religiosas: blog entrevista Chesterton.


Blog do Angueth – Senhor Chesterton, é um prazer encontrá-lo nesta estação ferroviária. Para onde o senhor está indo?

Chesterton – Na verdade, estou aguardando um telegrama de Frances. É que eu esqueci meu destino, mas sei que estou indo para uma palestra no norte da Inglaterra. Passei-lhe um telegrama e aguardo sua resposta.

Blog do Angueth – O senhor parece estar escrevendo algo neste pedaço de papel.

Chesterton – Estou escrevendo meu artigo semanal para o The Illustrated London News. Tenho de enviá-lo ainda hoje, por telegrama e só consegui encontrar este guardanapo.

Blog do Angueth – Estou então fazendo o senhor perder tempo.

Chesterton – Em absoluto, estava mesmo precisando interromper o trabalho por alguns instantes.

Blog do Angueth – Talvez eu possa assim fazer-lhe algumas perguntas sobre um assunto muito importante?

Chesterton – Certamente.

Blog do Angueth – Como leitor de seus artigos no The Illustrated London News, não posso deixar de notar que o senhor mantém um debate intenso com os céticos e racionalistas que abundam em todos os lugares.

Chesterton – Sim, há uma singular maioria dessa espécie de homens atualmente.

Blog do Angueth – Imagino que o senhor já tenha se defrontado com o arrogante argumento de que, em assuntos de religião e filosofia, quem se associa a uma escola de pensamento ou a um credo, tem automaticamente questionada sua imparcialidade em discussões que envolvem tais assuntos.

Chesterton – Com efeito, este é de fato um argumento comum, embora altamente contraditório.

Blog do Angueth – Como assim?

Chesterton – Bem, agnóstico é aquele homem que não chegou à conclusão alguma sobre qualquer coisa e um homem religioso é aquele que chegou a conclusões muito firmes sobre tudo. A contradição está em considerar o agnóstico imparcial porque ele não chegou à conclusão alguma e o religioso parcial porque ele, ao contrário, chegou a muitas conclusões sobre quase todas as coisas, ou pelo menos, sobre o todo.

Blog do Angueth – De qualquer modo, é curioso ver como esses intelectuais agnósticos ficam às vezes indignados com homens religiosos que ousam contradizê-los em seus assuntos prediletos.

Chesterton – Isto é um fato. Lembro-me de uma vez discutir com um jovem e honesto ateu, que ficou chocado quando questionei algumas de suas suposições, que eram absolutamente sagradas para ele, tais como a proposição não provada da independência da matéria e a improvável proposição de seu poder para dar origem à mente. Ele finalmente recorreu à questão, que formulou com calorosa indignação: “Bem, o senhor pode me dizer sobre algum intelectual, proeminente na ciência ou na filosofia, que aceitou ou aceita a existência de milagres?” Eu disse: “Com prazer. Descartes, Dr. Johnson, Newton, Faraday, Newman, Gladstone, Pasteur, Browning, Brunetière – e tantos quanto o senhor queira.”

Blog do Angueth – Não posso esperar pela resposta do jovem ateu.

Chesterton – Bem, o jovem admiravelmente idealista reagiu extraordinariamente dizendo: “Oh, mas é claro que eles tinham de aceitar a existência de milagres; eles eram cristãos.” Ora, ele primeiramente me desafiou a encontrar um patinho feio, e então ele desqualifica todos os meus patinhos por serem feios. O fato de que todos esses grandes intelectos compartilhavam a visão cristã era de algum modo a prova de que ou eles não eram grandes intelectos ou não compartilhavam aquela visão.

Blog do Angueth – Isto é realmente impressionante!

Chesterton – O argumento se reveste de uma forma charmosamente conveniente: “Todos os homens que contam compartilham de minha conclusão; pois se eles não compartilharem, eles não contam.” Oh, suspeito que o telegrama de Frances acaba de chegar, pelo aceno do telegrafista. Infelizmente, tenho de ir.

Blog do Angueth – Muito obrigado e boa viagem!

Chesterton – Thank you very much.


29/09/2012

A Queda do Homem: blog entrevista Gilbert Keith Chesterton.


Blog do Angueth – Devo agradecer novamente vossa disponibilidade de nos conceder mais uma entrevista.

Chesterton – Curiosamente, há épocas em minha vida que tudo que faço é dar entrevistas, participar de debates e ser saco de pancadas do Sr. Bernard Shaw e do Sr. H.G. Wells.

Blog do Angueth – Sei que certa vez o senhor se irritou com este último senhor acerca de uma discussão sobre o Jardim do Éden e a Queda do Homem.

Chesterton – Eu pertenço, como um produto da evolução biológica (dogma defendido pelo Sr. Wells), à ordem dos paquidermes. Não sou movido minimamente por qualquer irritação.

Blog do Angueth – Mas o que me interessa aqui é o que o senhor pensa sobre a Queda. Como vivemos uma época em que todas as antigas heresias convivem entre nós, há hoje muita gente, mesmo dentro da Igreja Católica, que menospreza a Queda e considera que se deve relativizar a história do Gênesis. Como o senhor mesmo disse certa vez: “a mente do homem moderno é uma curiosa mescla de calvinismo deteriorado e de budismo diluído.” Eu perguntaria então: o que nos ensina a história da Queda do Homem? Que visões podem ser acalentadas por quem nela acredita?

Chesterton – A Queda é uma visão de vida. Ela não é apenas a única visão esclarecedora da vida, mas a única encorajadora. Ela afirma, contra as únicas filosofias alternativas reais, aquelas dos budistas, dos pessimistas e dos prometéicos, que nós usamos impropriamente um mundo bom, e não simplesmente que estamos presos num mundo mau. Ela remete o mal ao uso errado da vontade, e assim declara que ele pode eventualmente ser corrigido pelo correto uso da vontade. Qualquer outro credo, exceto este, é uma forma de rendição ao destino. Um homem que guarda esta visão de vida descobrirá que ela ilumina milhares de coisas; sobre as quais, as éticas evolucionárias não têm nada a dizer. 

Blog do Angueth – O senhor poderia nos dar um exemplo destas coisas iluminadas por esta visão?

Posso dar vários. O colossal contraste entre a inteireza da máquina humana e a contínua corrupção de seus motivos. O fato de que nenhum progresso social parece nos livrar do egoísmo. O fato de que os primeiros, e não o últimos, homens de qualquer escola ou revolução são geralmente os melhores e os mais puros; tal como William Penn foi melhor que um quacker milionário ou Washington melhor do que um magnata americano do petróleo. Aquele provérbio que diz: “O preço da liberdade é a eterna vigilância,” que é propriamente apenas um modo de declarar a verdade do pecado original. Aqueles extremos de bem e mal em que o homem excede a todos os animais pelos padrões do céu e do inferno. Aquele sentido de perda sublime que está em cada verso de toda grande poesia, e em nenhum outro lugar em maior quantidade do que na poesia dos pagãos e céticos: “Miramos o antes e o depois, e nos consumimos pelo que não é”; que clama contra todos os arrogantes e progressistas, das profundezas e abismos do coração partido do homem, de que a felicidade não é somente uma esperança, mas também, em certo estranho sentido, uma memória; e que somos todos reis no exílio.

Blog do Angueth – Mas então, senhor Chesterton, o correto entendimento da Queda é um antídoto contra o maniqueísmo, contra o panteísmo e, de quebra, o fundamento de nossa esperança?

Chesterton – Talvez possamos afirmar isto!

Blog do AnguethThank you very much! Say thanks to Mrs. Chesterton for the wonderful tea!

11/09/2012

50 anos de Vaticano II: blog entrevista Gilbert Keith Chesterton.

Blog do Angueth – Sabemos que aggiornamento foi a palavra de ordem do Concílio Vaticano II. Esta palavra foi usada para indicar atualização, adaptação, conformação da Igreja aos novos tempos, aos tempos modernos, ao século XX. Este conceito fundamentou a afirmação, na melhor das hipóteses, ufanista de Paulo VI, que disse, ao fim do concílio: “A religião de Deus que se fez homem se encontrou com a religião (pois é uma religião) do homem que se faz Deus.” Sabemos também que em nome deste aggiornamento a Igreja foi varrida por um tsunami de proporções apocalípticas. O senhor, como grande católico e defensor da Igreja, como um erudito de primeira grandeza, como defensor fidei, certamente não se furtará a nos dar sua opinião sobre tão importante tema eclesial moderno. Would you please share your thoughts with us? (Desculpem-me, mas o homem é inglês!)

Chesterton – Embora não conheça este “Blog do Angueth”, nem saiba o que seja um blog, exceto talvez um parente distante de Frances, que tenha perdido um g em seu nome (Frances Blogg, esposa de Chesterton), reconheço que a pergunta é importante e que sua resposta é ainda mais importante.

A Igreja não pode mudar com os tempos; simplesmente porque os tempos não mudam. A Igreja pode apenas manter-se firme ao longo dos tempos, apodrecer e feder com os tempos. No mundo econômico e social em si nada há exceto aquele tipo de atividade que é chamada degeneração; o fenecimento das elevadas flores da liberdade e sua decomposição no solo aborígene da escravidão. Desse modo, o mundo está em grande medida no mesmo estágio que estava no começo da Idade das Trevas. E a Igreja tem o mesmo papel que teve no começo da Idade das Trevas; o de salvar toda a luz e liberdade que ela puder salvar, o de resistir a queda vertiginosa do mundo e o de esperar por dias melhores. Tal é o que uma Igreja real certamente faria; mas uma Igreja real poderia ser capaz de fazer mais. Poderia fazer das idades das trevas mais que um tempo de semear; poderia fazer delas o exato reverso das trevas. Poderia apresentar seu ideal mais humano, ao modo de um contraste tão súbito e atrativo à tendência desumana dos tempos, que inspirasse repentinamente os homens a uma das revoluções morais da história; de modo a que os homens ainda viventes não experimentassem a morte antes de terem visto a justiça retornar.

Não desejamos, como dizem os jornais, uma Igreja que mude com os tempos. Desejamos uma Igreja que mude o mundo. Desejamos que ela mova o mundo de muitas coisas em direção às quais ele agora se encaminha; por exemplo, o Estado Servil. É por este teste que a história realmente julgará qualquer igreja, seja ela a Igreja real ou não.

Blog do Angueth – Thank you very much!


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Nota do blog: Já escrevi aqui o que penso sobre as posições de Chesterton acerca do Concílio Vaticano II, tivesse ele vivido os tempos pós-conciliares. O texto acima apareceu num artigo do grande católico inglês, no jornal New Witness, sobre se a Igreja deve mudar com os tempos ou não. Para quem sabe ler, a conclusão sobre a posição dele em relação ao CVII é óbvia!

03/09/2012

Hoje é a festa de São Pio X e Chesterton fala sobre o grande Papa.


São Pio X morreu no dia 20 de agosto de 1914. No dia 29 de agosto do mesmo ano, Chesterton escreve um artigo no Illustrated London News intitulado “O Camponês que se Tornou Papa”. Abaixo os trechos mais significativos dessa homenagem que o futuro católico (sua conversão foi em 1922), então anglicano, presta ao grande Papa do Catecismo, ao Papa que identificou, analisou, desmascarou e anatematizou a monstruosa heresia do modernismo. Sabe-se que São Pio X morreu profundamente desgostoso pela guerra que apenas começava. No fundo, ele sabia o banho de sangue que se seguiria, ao qual Chesterton alude no final do artigo.

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Dentre as muitas expressões verdadeiras e tocantes de respeito pela tragédia do Vaticano [a morte de São Pio X], muitos comentaram sobre o fato de que o falecido Papa era por nascimento um camponês. Contudo, poucos ou ninguém, penso eu, tiraram desse fato sua mais interessante ou mesmo tremenda conclusão. Pois a verdade é que o velho papado é praticamente e única autoridade na Europa em que isto poderia ter acontecido. É o mais antigo, imensuravelmente o mais antigo, trono na Europa; e o único a que um camponês poderia ascender. Esta é a única monarquia eletiva no mundo; e aquela a qual qualquer camponês pode ainda ser eleito.

Aqueles que mais o admiravam, admiravam sua simplicidade e sanidade de um camponês. Aqueles que mais murmuravam contra ele, reclamavam da obstinação e relutância de um camponês. Mas por esta razão exatamente, está claro que a instituição representativa mais antiga da Europa está funcionando: quando todas as outras já sucumbiram.

O Papa nunca pretendeu ter um intelecto extraordinário; mas ele professava estar certo: e ele estava. Todos os ateus honestos, todos os calvinistas honestos, todos os homens honestos que dizem algo, ou acreditam ou negam algo, terá razão em agradecer suas estrelas (um hábito pagão) pelo camponês naquele elevado lugar. Ele matou a heresia que afirma que ter duas cabeças é melhor que ter uma; quando elas crescem no mesmo pescoço. Ele matou a ideia pragmática de comer o bolo e o ter ao mesmo tempo. Ele permitiu que se concordasse ou discordasse de seu credo; mas não que o adulterasse. É exatamente o que qualquer camponês de qualquer colina ou planície da face da terra faria. Mas há algo mais nele que não existe num camponês ordinário. Por todo este tempo ele chorou por nossas lágrimas; e partiu seu coração por nosso banho de sangue.
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São Pio X, rogai por nós!

09/07/2012

Todos os Caminhos Levam a Roma: meus trechos preferidos.


Permitam-me destacar, dentre muitos trechos geniais do livro recém-traduzido de Chesterton (publicado pela Editora Oratório), alguns que são meus favoritos. Destaco três que me tocam mais fundo.

Uma característica comum pertence a todas as escolas de pensamento que são chamadas de liberais; sua eloquência termina com certa espécie de silêncio que não está muito longe do sono. Um sinal distingue todas as inovações e insurreições extremas do intelectualismo moderno; uma nota é aparente em todas as novas e revolucionárias religiões que varreram recentemente o mundo; e essa nota é o tédio. Elas são excessivamente simples para serem verdadeiras. E, enquanto isso, qualquer camponês católico, ao segurar uma pequena conta do Rosário em seus dedos, pode estar consciente, não de uma eternidade, mas de um complexo, quase um conflito, de eternidades; como, por exemplo, nas relações de Nosso Senhor e Nossa Senhora, nas da paternidade e da infância de Deus, nas da maternidade e da infância de Maria. Pensamentos desse tipo têm, num sentido sobrenatural, algo análogo ao sexo; eles dão cria. São férteis e se multiplicam; e não há fim para eles. Eles têm inúmeros aspectos; mas o aspecto que concerne aqui ao argumento é este: que uma religião que é rica neste sentido sempre tem um número de ideias na reserva. Além das ideias que estão sendo aplicadas a um problema ou período particular, há um número de férteis campos de pensamento que ainda não estão, nesse sentido, cultivados. Onde uma nova teoria, inventada para atender a um novo problema, rapidamente perece com o problema, as coisas antigas estão sempre à espera de outros problemas, quando estes, por sua vez, se tornarem novos. Um novo movimento católico é geralmente um movimento que enfatiza alguma ideia católica que só estava negligenciada no sentido de que não era até então especialmente necessária; mas quando aparecer a necessidade, nada mais pode atendê-la. Em outras palavras, o único modo de atender a todas as necessidades humanas do futuro é tomar posse de todos os pensamentos católicos do passado; e o único modo de fazer isso é realmente tornar-se católico.” (Pag. 36-37.)

Quando eu li o Penny Catechism[1] pela primeira vez, minha mente foi atraída por uma expressão que parecia resumir e definir exatamente, num contexto e plano mais elevados, algo que tentara perceber e expressar por meio de todas as minhas lutas contra as seitas e escolas de minha juventude. Era a afirmação de que os dois pecados contra a esperança são a presunção e o desespero. Ela se refere, é claro, a mais alta de todas as esperanças, e assim ao mais profundo de todos os desesperos; mas todos sabemos que esses mistérios resplandecentes têm sombras na terra abaixo. E o que é verdade sobre a mais mística esperança, é exatamente verdade sobre a mais ordinária alegria e coragem humanas. As heresias que atacaram a felicidade humana em minha época foram todas variações seja da presunção, seja do desespero; que, nas controvérsias da cultura moderna, são chamadas de otimismo e pessimismo. E se eu quisesse escrever uma autobiografia numa única sentença (e espero que nunca escreva uma mais longa que esta),[2] deveria dizer que minha vida literária tem se estendido desde o tempo em que os homens estavam perdendo a felicidade pelo desespero, até um tempo em que eles a estão perdendo pela presunção. Eu começava a pensar por mim mesmo no tempo em que todo pensamento levava pretensamente ao desespero, ou ao que é chamado pessimismo. Como os outros indivíduos que mencionei, eu era simplesmente um reacionário, porque meu pensamento era simplesmente uma reação; mas era uma reação que, naqueles dias, eu me contentava em chamar de otimismo.” (Pag. 45-46.) 

Outro dia, um conhecido escritor, muito bem informado em outros assuntos, disse que a Igreja Católica é uma eterna inimiga das novas ideias. Provavelmente não lhe ocorreu que sua própria observação não é exatamente uma nova ideia. É uma daquelas noções que os católicos têm de refutar continuamente, porque é uma ideia muito antiga. Na realidade, aqueles que reclamam que o catolicismo não diz nada novo, raramente pensam que seja necessário dizer alguma coisa nova sobre o catolicismo. De fato, o estudo real da História mostrará que isso é curiosamente contrário aos fatos. Na medida em que as ideias são realmente ideias, e na medida em que tais ideias são novas, os católicos sofreram continuamente por apoiarem-nas quando ainda novas; quando eram muito novas para encontrar alguém que as apoiasse. O católico foi não só o pioneiro na área, mas o único; e até hoje não houve ninguém que compreendesse o que se tinha descoberto lá.” (Pag. 72.)


[1] Catecismo da Doutrina Cristã em forma de perguntas e respostas. Chamado Penny Catechism porque custava apenas um penny (centavo da moeda inglesa).
[2] Felizmente, este desejo de Chesterton não se cumpriu e ele, pouco antes de morrer, nos deixou sua Autobiografia, publicada postumamente em 1936, ano de sua morte.

11/01/2012

Perseguição da Religião

Gilbert Keith Chesterton
The Illustrated London News, 8 de março de 1924


Nota do blog: Chesterton nunca foi um mero crítico literário, embora seja autor do que há de melhor em termos de crítica literária na Inglaterra do início do século XX. Ele sempre fazia de sua crítica ― crítica cultural, de idéias ― um instrumento de luta contra as concepções que considerava destrutivas ao ser humano. Vivendo numa época herdeira de todo o racionalismo dos séculos XVIII e XIX e de todo o cientificismo fin de siècle, e ao mesmo tempo belle époque, ele usava toda a sua extraordinária capacidade para chamar a atenção de seus leitores para o quão irracionais eram aquelas noções modernas que surgiam dos melhores cérebros de então. Neste artigo, ele se defronta com um conhecido adversário de idéias, o Sr. Bernard Shaw, e sua crítica se concentra numa longa peça teatral escrita pelo famoso dramaturgo inglês.


Muitos de nós sentimos algo por demais fascinante, para não dizer alarmante, sobre a situação do homem que é encarcerado num asilo de loucos por oito anos por ser religioso, ou por ter um razoável interesse pela palavra “paralelogramo,” e pela idéia do fim do mundo. A perseguição da ciência pela religião é algo de que ouvimos muito, e muito mais do que é historicamente correto. Mas, de qualquer modo, isso praticamente acabou. A perseguição da religião pela ciência talvez tenha proporcionalmente apenas começado; mas já está em ação em não se sabe quantos casos obscuros de pedantismo e crueldade. Os místicos serão muito provavelmente os mártires quando os psicólogos forem os reis. Mas há aí um paradoxo envolvido que é ainda mais peculiar. Não é que apenas qualquer coisa religiosa deva ser perseguida sob a alegação de que não seja racional. É também que qualquer coisa irracional deva ser tolerada contanto que seja também irreligiosa. É tão somente loucura defender a religião; já não é mais loucura negar a razão. Se fosse, todos os professores de pragmatismo estariam encarcerados. Os próprios incidentes desse caso permitem uma ilustração. Um homem pode ser representado como louco ou como construindo uma charada mística com a palavra “paralelogramo”. Mas um homem não é considerado louco porque diz que linhas paralelas sempre se encontram. Nossos pais o teriam chamado de louco desvairado, por negar algo auto-evidente e proferir uma contradição em termos. Nós meramente o chamamos de matemático das novas escolas da relatividade ou da quarta dimensão. O homem que dizia: “Dois e dois pode ser cinco nas estrelas fixas” era um louco; e louco mesmo sendo um erudito. Eu de bom grado admito que homens de ciência não tenham o monopólio desse colapso mental. Mas certamente o homem que fosse capaz de falar como se as estrelas fossem fixas, e os números não, estaria sofrendo um completo colapso mental. O mesmo acontece com a outra forma de insanidade alegada nesse caso. É muito menor loucura esperar o fim do mundo para breve do que esperar o Super-homem para breve. Ainda assim, quantos evolucionistas fervorosos de nosso tempo escreveram seriamente como se o Super-homem fosse surgir na próxima semana? As coisas chegam realmente ao fim; e uma coisa projetada é geralmente reexaminada pelo projetista quando chega ao fim. Um homem que planta uma azaléia a vê florescer e fenecer e manifesta-se sobre o experimento; e não há nada irracional com um dia de julgamento, pressupondo um projeto. Mas não há nada no mundo a mostrar que uma azaléia por si mesma desenvolver-se-á em uma super-azaléia com todas as cores do arco-íris, apenas porque essa seria uma planta superior. O Super-homem foi apenas e tão somente um fantasma evocado do vazio pela imaginação de um louco; um homem literalmente louco chamado Nietzsche. Mesmo assim, quão vívida essa visão completamente absurda se tornou para muitos de nossa hesitante e débil geração! E a coisa mais estranha de todas é que tenham sido assim enfeitiçados alguns dos melhores cérebros. Eles também têm sua palavra sagrada “paralelogramo,” como, por exemplo, a palavra sagrada “Mesopotâmia”; mas, enquanto poucos são os soldados que querem voltar à Mesopotâmia,[1] há evidentemente sábios que desejam voltar a Matusalém.[2]

Desnecessário dizer que não estou discutindo se o Sr. Bernard Shaw tem um parafuso a menos na cabeça; estou apenas enfatizando que há muito mais parafusos faltantes no Hall da Ciência do que na igreja paroquial, ou mesmo na capela revivalista.[3] Ao contrário, é meu desejo aqui penetrar para além das esquisitices do experimento dramático do Sr. Bernard Shaw, e considerar se a idéia em si é de fato tão sã quanto é certamente séria. O Sr. Shaw tem sido submetido à crítica por duas classes de críticos. A primeira é composta daqueles que dizem que não sabem o que ele quer dizer, e consideram necessário inferir que ele não diz nada. A segunda é composta daqueles que pensam que sabem o que ele quer dizer, e consideram necessário concordar com ele. Poucos são os que parecem perceber que é bem possível entender completamente o ele diz e discordar dele totalmente. Mas, com efeito, é somente levando-o a sério que alguém consegue discordar dele seriamente. O homem que diz que todas as peças de Shaw não têm sentido está oferecendo valoroso apoio ao homem que diz que todas elas fazem sentido. Por confessar sua inabilidade de fazer delas algum nexo, ele está se impedindo de discutir com aquele que delas faz o nexo para tudo. Ele é como um homem que deveria defender o cristianismo contra a “Vie de Jésu”, de Renan, dizendo que agradece a Deus por não entender francês. Ou é como o homem que deveria responder a uma denúncia política detalhada dizendo que o sujeito balbuciou tão rápido que o impediu de entender. Seria impossível fazer uma homenagem maior à verdade de uma filosofia do que dizer que ninguém a entende, exceto uns poucos que a consideram verdadeira. Seria impossível fazer um elogio maior ao Sr. Shaw do que sugerir que ele ilude os estúpidos e convence os sábios. Todavia essa é exatamente a impressão que é necessariamente deixada se meramente se ridiculariza a excentricidade, ou extravagância, ou a extraordinária extensão, ou outra característica fantástica, mas meramente externa, de uma obra como “De volta a Matusalém (Um Pentateuco Metabiológico)”.[4] Tenho tentado sempre fazer, portanto, em minhas críticas o que o Sr. Shaw faz em prefácios, e discutir a doutrina que é a espinha dorsal de toda a questão. Pois o Sr. Shaw, de todos os homens do mundo, não deixa a seus críticos o menor direito de alegar que não entenderam o que ele diz; pois ele explica elaboradamente tudo de antemão. Único dentre os mais fantásticos fabulistas, ele não somente adorna a fábula com uma moral, mas realmente coloca a moral antes da fábula.

O prefácio a esta peça particular trata,[5] em primeiro lugar, de uma questão mais particular; sobre o que o Sr. Shaw parece-me provar completamente seu ponto de vista; o de que a versão darwinista da evolução não se assemelha, no mais enfático sentido da frase, à vida. É impossível acreditar que a vida seja tão separada da vontade, como se conclui da noção de que a seleção natural produz toda a variedade da natureza. Ela é uma excessiva confluência fortuita de animais, tal como uma confluência fortuita de átomos. Nesse sentido, cada capítulo da “Origem das Espécies” pode ser precisamente descrito como um capítulo de acidentes. A seleção natural é a coisa mais artificial que podemos conceber. É um eterno incidente. Mas não é somente verdade que a seleção natural não seja absolutamente natural; é também verdade ― e esta é toda a questão sobre ela ― que ela não é absolutamente seleção. Ninguém seleciona; e o nada não pode selecionar. Parece-me, no sentido mais luminoso e amplo, uma questão de senso comum dizer que, se não houve um claro projeto desde cima, então houve um obscuro projeto vindo desde baixo; e é muito possível, claro, que ambos existiram. Toda essa parte preliminar do prefácio e do argumento é razoável e solidamente fundamentado; porque ele está tratando de uma teoria definida e dando razões para se discordar dessa teoria. Em outras palavras, ele está tentando fazer em relação a Darwin o que estou tentando fazer em relação a Shaw.

A noção do Sr. Shaw não pretende ser absurda, mas é absurda; não digo isso como uma ofensa, mas no exato sentido em que tenho dito que as pessoas mais razoáveis teriam considerado absurdo o moderno discurso sobre pragmatismo e paralelismo. Qualquer pessoa racional, e especialmente qualquer pessoa racionalista, o teria considerado irracional. Qualquer cético, de Lucrécio ou Luciano, a Hume ou Huxley, teria considerado muito mais racional dizer que o mundo estivesse chegando ao seu final dentro de cem anos do que dizer que a vida de um homem não tivesse seu fim dentro de trezentos anos. A mera escala, o mero escopo das modernas profecias teria parecido completamente desequilibrado e extravagante a todas as filosofias da história da civilização. Penso que eles estavam certos; mas não somente por causa de algo externamente extravagante acerca da escala ou do escopo. O que é artificial sobre essa filosofia é que ela não aceitará a única norma que ela consegue afinal obter; aquela que Aristóteles chamou a medida de todas as coisas. Uma boa e feliz humanidade é, falando humanamente, a idéia pela qual testamos as idéias políticas e sociais; é o teste; é, nesse sentido, o ideal. Essa religião futurista não a aceitará como normal e prosseguirá caçando um novo “normal” que nunca conseguirá encontrar. Não pode nunca encontrá-lo porque não pode nunca fixá-lo. É óbvio, claro, que um ideal permanente é absolutamente necessário para algo como progresso ou reforma. Não se pode reformar o que é eternamente informe; e não se pode marchar em direção ao que está sempre em movimento. Que sentido tem o progressista garantir que as crianças do futuro terão melhores sapatos, quando o profeta já está dizendo que elas não terão pés? Pode parecer uma comparação maluca dizer que as crianças não terão pés. Mas é muito menos maluco do que dizer que as pessoas não terão filhos. E é realmente parte desse esquema futurista que a nova geração nasça madura, sem passar pela infância. Esse é um excelente modelo de trabalho para toda a questão. Para nós, um mundo sem crianças não seria um mundo melhor, mas um mundo muito pior. Não seria uma Utopia impossível, mas simplesmente um intolerável pesadelo. E isso simplesmente porque mantemos em nosso horizonte o que os loucos evolucionistas perderam de vista, que não pode haver nada mais ideal do que o ideal; e a única coisa que afeta a humanidade como um ideal é que é inteiramente humano ser divino. Para alguns de nós isso está fixado por uma divina humanidade, e mesmo por uma criança divina.  



[1] Referência à Campanha da Mesopotâmia, da I Grande Guerra, ocorrida em 1914 onde hoje é o Iraque, em que tropas aliadas (principalmente inglesas) enfrentaram as tropas das potências centrais, principalmente do Império Otomano. (N. do T.)
[2] Referência à peça de Bernard Shaw, “De volta a Matusalém”. Ver nota 4, a seguir. (N. do T.)
[3] O Revivalismo foi um movimento nascido no século XVIII, principalmente nos EUA, e pregava, por meio de ministros itinerantes, o perdão do pecado pessoal pela fé a Jesus Cristo, a responsabilidade pessoal por uma disciplina pessoal de oração, a leitura da Bíblia e apoio a uma igreja.  Tal movimento foi uma reação, dentro mesmo do protestantismo, às principais denominações, que davam muito ênfase ao ritual, a uma exatidão doutrinal, em detrimento à experiência religiosa pessoal. (N. do T.)
[4] Obra de Bernard Shaw escrita logo depois da I Grande Guerra, e publicada em 1921, composta de um Prefácio e cinco peças: No Princípio: 4004 a.C. (No Jardim do Éden); O Evangelho dos Irmãos Barnabás: Hoje em Dia; A Coisa Acontece: 2170 d.C; A Tragédia de um Cavalheiro Ancião: 3000 d.C; Tão Longe Quanto o Pensamento Pode Alcançar: 31.920 d.C. Chesterton faz uma primeira menção a esta peça, e faz a ela algumas críticas, em seu artigo de 16 de julho de 1921, no The Illustrated London News. (N. do T.)
[5] No prefácio da peça “De Volta a Matusalém”, Shaw fala do generalizado desalento e pobreza na Europa depois da I Grande Guerra e relaciona essas questões aos governos ineptos. As sociedades primitivas e simples, ele diz, eram facilmente governadas, ao passo que as sociedades civilizadas do século XX são tão complexas que aprender a governá-las adequadamente não poderia ser conseguido no período de uma vida humana. Pessoas com suficiente experiência para tal estão próximas da senilidade e da morte. A solução de Shaw é a longevidade aprimorada: devemos aprender a viver mais; um homem de cem anos deveria estar antes da meia idade. Essa mudança, Shaw prediz, acontecerá por meio da Evolução Criativa (mudanças evolucionárias que ocorrem porque são necessárias ou desejadas ― ponto de vista de Lamarque ― e não como o resultado da seleção natural darwinista) sob a influência da Força Vital (conceito criado por Henri Bergson, segundo o qual um impulso vital, ou uma força vital, gerou as variações que, durante o curso da evolução, produziu novas espécies). Shaw diz que estes são os nomes por ele escolhidos para o que as igrejas chamam de Providência e os cientistas chamam de adaptação funcional e seleção natural (dentre outros nomes) e dá os devidos créditos a Henri Bergson. Contudo ele usa ambos os termos em “Homem e Super-homem” que foi escrito nove anos antes do trabalho de Bergson ser publicado. Shaw também elabora, no prefácio, uma teoria da educação, o método pedagógico homeopático, que consistia em mentir para os estudantes até que estes fossem capazes de perceber as mentiras e discutir com os professores. (N. do T.)

05/12/2011

Sobre ler, e ser incapaz de fazê-lo.

Gilbert Keith Chesterton
The Illustrated London News, 8 de dezembro de 1928


Ninguém muito interessado em Literatura demonstra grande interesse pela leitura. O desprezo manifestado pelo iletrado, as regulamentações exclusivas contra classes e raças iletradas, parecerá sempre divertido a quem se recorda de algumas das grandes memórias preservadas em cartas. Homero teria fracassado nos testes educacionais da imigração americana; mas apenas isto não resolve a enfadonha questão de prioridade entre Homero e a Srta. Ella Wheeler Wilcox.[1] São Francisco, que realmente encorajava os homens a serem iletrados, provavelmente serviu mais de inspiração para cartas do que o falecido Sr. Carnegie, que bombardeava as pessoas com livros que ele era incapaz de ler ou entender.[2] Alguns de nós, portanto, têm sempre ficado em dúvida sobre o valor deste teste mecânico. No caso americano, o teste somente exclui fazendeiros, e pode admitir falsificadores. Nas condições gerais européias, ele deliberadamente exagera o tipo de condições que produzem lixo, jargão e clichês jornalísticos, e despreza o tipo de condições que produzem o Livro de Jó ou a Canção de Roland. Então, quando nossos críticos alardearam a auto-evidente superioridade de pessoas perpetuamente ocupadas em ler e escrever, prestamos as devidas homenagens àquelas artes humanas, mas duvidamos se o mero crescimento indefinido delas teria sido sempre um sinal de sabedoria e autodeterminação social. Mas ultimamente uma nova questão tem começado a ocupar minha mente cética e incrédula. Ela surge depois, e em separado, da dúvida sobre se as pessoas que estão lendo mais estão necessariamente pensando mais.

Mas, as pessoas estão lendo mais? Se estão, o fato é apenas um fato em certo sentido e relação, e carece ser consideravelmente modificado pela percepção de outros fatos, e estes são os fatos que nunca são percebidos. É uma verdade que, em certo sentido, as coisas estão sendo cada vez mais facilitadas em relação à leitura. Mas isto acontece às vezes não porque haja uma explosão de bens, mas porque há uma escassez deles. Toda essa aberta e sonora publicidade pode ser mais um modo de persuadir indivíduos relutantes a ler do que um modo de satisfazer ávidos indivíduos com a leitura. A matéria para leitura tem ficado muito mais barata, em mais de um sentido do termo. Mas não prova que um livro é um best-seller o fato de que o livreiro o tenha colocado na caixa “qualquer livro por R$5”. Os indivíduos baixam os preços dos bens para se livrarem deles, tanto quanto para agradarem um público ansioso por adquiri-los; as coisas são baratas às vezes porque ninguém as comprariam se fossem caras. Mas aparte esta patente, embora muito esquecida, verdade econômica, há razões especiais para se duvidar da autenticidade do aumento geral da leitura. Suspeito fortemente que os sólidos caracteres tipográficos nos jornais são muito menos reais do que foram algum tempo atrás. Suspeito que os próprios homens de jornal também suspeitem disso. Isso explica o que de outra forma é completamente inexplicável: a loucura delirante das manchetes.

O jornalista coloca as coisas mais excêntricas em letras grandes, no topo da coluna, simplesmente porque ele duvida que elas sejam lidas se as colocar no meio da coluna. Assim, há todo tipo de detalhes triviais, mas a miúdo verdadeiros, muito naturais em qualquer artigo descritivo, que parecem rematada idiotice quando impressos em maiúsculas, como se fossem o título do artigo. O jornalista mais tradicional, escrevendo sua peça descritiva, se contentava em tratar dessas coisas de forma leve, sabendo que elas, pelo menos, seriam lidas em seus devidos lugares e seriam apreciadas pelo que valessem. Não é necessariamente pedante ou ridículo dizer, no curso de uma longa e ampla descrição de uma Coroação ou de um jogo de cricket, que a Duquesa da Água Parada pareceu se divertir quando um menino desentupidor de calhas fazia piruetas a sua frente, ou que o Bispo de Martelo Maldito aplaudiu entusiasticamente as rebatidas de sua antiga escola. Ao dar uma descrição longa e casual de tais coisas, um homem pode muito bem tanto mencionar a Duquesa quanto o clima, ou perceber o Bispo tanto quanto o menino. A execrável vulgaridade que se nos vociferam os jornais vem, agora, do novo hábito de transferir até os menores detalhes das letras menores para as maiores, colocando a Duquesa e o Bispo na primeira linha, como se eles fossem revoluções na Rússia ou terremotos no Japão. É quando lemos nas manchetes, “Menino de rua ganha um sorriso da Duquesa” ou “Bispo aplaude rebatedor”, que nos contorcemos e rangemos os dentes na mesa do café da manhã e juramos nunca mais abrir um jornal novamente.

Da mesma forma, o antigo repórter parlamentar tinha suas falhas e fraquezas, mas, para fazê-lo justiça, quando introduzia um parentético toque de algo pitoresco, ao dizer que o Sr. Chamberlain ajeitou sua orquídea[3] ou que o Sr. Gladstone[4] ajustou gravemente seu queixo em seu colarinho gladstone[5], ele o fazia como coisa incidental, à parte de uma peça de prosa descritiva geral, que tratava de todo tipo de outras considerações, todas adequadamente impressas em proporção às suas relevâncias – ou melhor, às suas irrelevâncias. Não teria sido culpa sua se alguém arrancasse algumas frases descritivas casuais de seu contexto e aumentasse de dez vezes o tamanho da referência aos colarinhos ou às orquídeas na primeira linha do jornal. Não teria sido sua culpa se alguém tivesse feito isso; mas, de fato, ninguém o fazia. Nos velhos tempos, quando o Sr. T. P. O’Connor,[6] para citar o exemplo mais brilhante, escrevia suas peças parlamentares pitorescas sobre o grande duelo entre a Orquídea e o Colarinho, nem ele, nem ninguém, jamais pensou em colocar estes detalhes pitorescos em cada título dos artigos. A razão era muito simples. Todo mundo sabia que íamos ler o artigo – quando era um artigo do Sr. T. P. O’Connor. Não é mais seguro que leremos o artigo de alguém. Portanto, se o jornalista está particularmente ansioso para que seu comentário sobre o colarinho ou sua figura de estilo sobre a orquídea seja percebido pelo leitor do jornal, ele tem de colocá-lo em letras grandes, bem no topo da página.

Tudo isso me faz lembrar pessoas retornando às cartilhas de alfabetização e à celebrada frase “O Dado É de Didi”.[7] Isso não me parece um aprimoramento na leitura, mas ao contrário, um recuo à incapacidade de leitura. As coisas que devem ser lidas realmente têm de ser impressas exatamente como costumavam ser impressas para crianças. Elas têm de ser impressas em letras maiúsculas muito claras; e tudo que for para ser percebido deve ser impresso em letras muito grandes.[8] Ora, isso não é o que as pessoas que realmente sabem ler descreveriam como o prazer da Leitura. Talvez isso possa ser comparado à moderna ciência da telegrafia. Mas não é saber ler prosa coerente e culta, dada a devida importância que as coisas maiores e menores têm no equilíbrio geral da composição. Essa é, ao contrário, uma evidência de que as pessoas estão realmente lendo cada vez menos; recuando, ao que parece, mais e mais das distantes luzes da alfabetização, de tal forma que somente sinais muito grandes ou os mais brilhantes flashes conseguem alcançá-los.

Não raro, lemos lendas de perseguições do passado; de perseguições em que os homens eram forçados a ler livros proibidos em segredo. Em comparação com aquelas leituras secretas, pergunto-me sobre o quanto há, hoje, de uma secreta recusa da leitura. Contam-nos de homens que iam para criptas e cavernas para ocultar o fato de que estavam lendo o Missal ou a Bíblia. Pergunto-me se muitas pessoas não estão, agora, trancadas em gabinetes e bibliotecas, ocultando o fato de que não estão lendo o jornal. Atualmente, supõe-se que todos nós lemos, como antes era suposto, talvez, que muitos de nós não sabíamos ler. Mas suspeito que em ambos os casos haja segredos e surpresas. Suspeito que há muitos homens inteligentes, que hoje caminham por nossas ruas, que passam dias, ou mesmo semanas, sem ler jornais, mas que conseguem manter uma impressão geral de conhecimento fundada inteiramente em boatos. De fato, eles realmente recebem os jornais como seus felizes antepassados recebiam os épicos e os romances, meramente por tradição e repetição oral. Tenho a impressão que inumeráveis pessoas hoje não lêem mais jornais, como, no passado, nunca leram os clássicos, embora eles possam se unir em coro na louvação de ambos. E os jornais estão gritando, como demagogos, cada vez mais alto, porque seus ouvintes estão cada vez mais surdos.



[1] Ella Wheeler Wilcox (1850-1919) foi uma poetisa americana muito popular. (N. do T.)
[2]Chesterton refere-se aqui ao magnata e filantropo americano, Andrew Carnegie (1835-1919), que financiou, com sua imensa fortuna, além de outras coisas, uma rede de bibliotecas nos EUA. (N. do T.)
[3] Joseph Chamberlain (1836-1914), estadista inglês, usava uma orquídea na lapela de seu paletó. (N. do T.)
[4] Hebert John Gladstone (1854-1930), estadista inglês. (N. do T.)
[5] Colarinho com as pontas dobradas para fora. (N. do T.)
[6] Thomas P. O’Connor (1848-1929), jornalista, editor e político nacionalista irlandês. (N. do T.)
[7] A frase original em inglês é a famosa The Cat Sat On The Mat. (N. do T.)
[8] Chesterton devota todo um capítulo em seu livro, Hereges, ao tema da mídia de jornal em sua época. O assunto das letras grandes das manchetes e títulos de artigos mereceu alguns dos melhores trechos do livro, como este: “Os editores usam esse alfabeto gigante ao tratar com os leitores, pela mesma exata razão que pais e professoras usam um alfabeto gigante similar ao ensinar as crianças a soletrar.” (N. do T.)

04/09/2011

Chesterton versus Nietzsche: leitor sugere e blog acata.

Um leitor anônimo, que depois se identificou por email, sugere, por meio de um comentário ao post Há 80 anos, Chesterton “picava” Clarence Darrow em mil pedaços num debate atualíssimo, o seguinte: “Honraria mais Chesterton (e ele merece) se confrontado com Nietzsche, por exemplo. Melhoria o "nível" do debate. Fica a respeitosa sugestão.
 
Sugestão feita, sugestão aceita. Vou tentar listar abaixo alguns trechos de Chesterton em que ele debate com Nietzsche e seus discípulos. Uma palavra prévia: a honra é toda de Nietzsche, não de Chesterton.

Nietzsche morreu em 1900 e Chesterton começou a escrever profissionalmente um pouco depois disso. Assim, ele não poderia ter debatido diretamente com o filósofo alemão. Contudo, ele percebeu bem a natureza maligna de sua filosofia e a debateu com todos os seus defensores, principalmente Shaw e Wells, mas não só. Vamos aos poucos trechos que escolhi.

Em Hereges, no capítulo dedicado a Bernard Shaw, Chesterton diz, por exemplo:

“Um sentimento de superioridade nos mantém calmos e práticos; os meros fatos fariam nossos joelhos tremerem com temor religioso. É o fato de que cada instante de vida consciente é um prodígio inimaginável. É o fato de que cada face nas ruas tem a incrível imprevisibilidade de um conto de fadas. A coisa que impede um homem de perceber isso não é qualquer clareza mental ou experiência, é simplesmente o hábito das comparações pedantes e fastidiosas entre uma coisa e outra. O Sr. Shaw – do lado prático, um dos homens vivos mais humanos – é, neste sentido, desumano. Ele foi até mesmo infectado, em algum grau, com a principal fraqueza intelectual de seu novo mestre, Nietzsche: a estranha noção de que quanto maior e mais forte fosse um homem, mais ele desprezaria as outras coisas. Quanto maior e mais forte é um homem, mais ele se prostra diante de um molusco.”

“E agora me lembro que o Sr. H.G. Wells realmente escreveu um divertido romance sobre homens que tinham o tamanho de árvores; e que aqui, de novo, ele me parece ter sido vítima desse vago relativismo. “O Alimento dos Deuses” é, como na peça do Sr. Bernard Shaw, em essência um estudo da idéia do Super-homem. E se abre, penso eu, mesmo sob o véu de uma alegoria semi-pantomímica, ao mesmo ataque intelectual. Não se pode esperar que tenhamos qualquer consideração por uma grande criatura a não ser que se conforme, de alguma maneira, aos nossos padrões. Pois se ultrapassa nossos padrões de grandeza, não podemos sequer chamá-la de grande. Nietzsche resumiu tudo o que é interessante na idéia do Super-homem quando disse: ‘O homem é uma coisa que tem de ser superada.’ Mas a própria palavra “superada” implica a existência de um padrão a nós comum e a coisa nos superando. Se o Super-homem é mais másculo que os homens, estes vão, claro, deificá-lo mais cedo ou mais tarde, mesmo que aconteça que o matem primeiro. Mas se ele é simplesmente mais super-másculo, eles podem lhe ser indiferentes como o seriam com uma monstruosidade aparente e despropositada. Ele deve se submeter ao nosso teste mesmo que seja para nos apavorar. A mera força ou tamanho são, em si, um padrão; mas sozinhos nunca farão os homens pensar que um homem seja superior. Os gigantes, nos antigos e sábios contos de fadas, são canalhas. Super-homens, se não forem bons homens, são canalhas.”

“Sem dúvida há uma melhor e mais antiga forma de adoração do herói. Mas o herói antigo era um ser que, como Aquiles, era mais humano que a própria humanidade. O Super-homem de Nietzsche é frio e sem amigos. Aquiles gosta tão loucamente de seus amigos que massacra exércitos na agonia de seu luto. O triste César do Sr. Shaw diz no seu desolado orgulho, “Aquele que nunca teve esperança nunca pode se desesperar.” O Homem-Deus do passado responde de sua horrível colina, “Há dor semelhante à minha dor?[1] Um grande homem não é um homem tão forte que menospreze outro homem; é um homem tão forte que o preza mais. E quando Nietzsche diz, “Eu lhe dou um novo mandamento, ‘seja duro’”, ele estava, na realidade, dizendo, “Eu lhe dou um novo mandamento, ‘esteja morto’.” Sensibilidade é a definição da vida.”

“Essa fuga da brutal vivacidade e variedade dos homens comuns é, claro, uma coisa perfeitamente razoável e desculpável, desde que não se aspire a qualquer nível de superioridade. Quando ela chama a si mesma de aristocracia, esteticismo, ou uma superioridade em relação à burguesia é que sua fraqueza tem de ser justamente salientada. Fastio é o mais perdoável dos vícios; mas a mais imperdoável das virtudes. Nietzsche, que representa mais proeminentemente essa alegação pretensiosa de fastio, apresenta em algum lugar uma descrição – uma poderosa descrição no sentido puramente literário – do desgosto e desdém que o consome ao olhar pessoas comuns com seus rostos comuns, suas vozes comuns e suas mentes comuns. Como já disse, essa atitude é quase bela se pudermos considerá-la patética. A aristocracia de Nietzsche possui toda a sacralidade que pertence ao fraco. Quando nos faz sentir que não pode suportar os inumeráveis rostos, as incessantes vozes, a massacrante onipresença característica da multidão, ele terá a compreensão de qualquer um que tenha estado doente num trem ou cansado num ônibus. Todo homem odeia a humanidade quando se sente menos que um homem. Todo homem já teve seus olhos cegados pela humanidade como por uma neblina, já teve a humanidade em suas narinas como um fedor sufocante. Mas quando Nietzsche demonstra a incrível falta de bom-humor e de imaginação para nos instar que acreditemos que sua aristocracia é uma aristocracia de músculos fortes ou uma aristocracia de vontades fortes, é preciso enfatizar a verdade. É uma aristocracia de nervos fracos.”

No capítulo sobre a aristocracia e sua representação literária, Chesterton diz no mesmo livro, de forma esplêndida:

Se alguém deseja encontrar um argumento realmente efetivo, abrangente e permanente a favor da aristocracia, descrito de maneira correta e sincera, faça-o ler, não os modernos filósofos conservadores, nem mesmo Nietzsche, faço-o ler as Bow Bells Novelettes.[2] Nietzsche e as Bow Bells Novelettes têm obviamente o mesmo caráter; ambos adoram o homem alto, de bigodes crespos e corpo hercúleo, e ambos adoram-no de uma maneira algo feminina e histérica. Mesmo aqui, contudo, a novellete facilmente mantém sua superioridade filosófica, porque atribui ao homem forte aquelas virtudes que comumente lhe pertencem, tais como indolência, brandura, uma benevolência assaz despreocupada e um grande desgosto em ferir o mais fraco. Nietzsche, ao contrário, atribui ao homem forte aquele desdém para com a fraqueza que somente existe entre inválidos. Não é, contudo, dos méritos secundários do grande filósofo alemão, mas dos méritos primários das Bow Bells Novelletes que pretendo agora falar.” 


“Todos devem ter notado nos mais recentes escritores a sobrevivência de um assaz dolorido modo de piedade. Eles não mais honram todos os homens, como São Paulo e outros democratas místicos. Não seria muito dizer que eles desprezam todos os homens; quase sempre (para fazê-los justiça) inclusive eles mesmos. Mas eles se apiedam, em certo sentido, de todos os homens, e particularmente daqueles que são dignos de piedade; atualmente eles estendem este sentimento quase desproporcionalmente a todos os animais. Essa compaixão pelos homens tem também a mancha de sua conexão histórica com a caridade cristã; e mesmo no caso dos animais, com o exemplo de muitos santos cristãos. Nada indica que um novo recuo de tais religiões sentimentais não libertará os homens até da obrigação de se apiedarem da dor do mundo. Não apenas Nietzsche, mas muitos neo-pagãos seguindo suas idéias, sugeriram tal insensibilidade como a mais alta pureza intelectual. E tendo lido muitos poemas modernos sobre o Homem do Futuro, feito de aço e iluminado com nada mais cálido do que o fogo verde, não tenho dificuldade de imaginar uma literatura que se orgulhasse de um desapego impiedoso e metálico. Então, talvez, fosse vagamente conjeturado que a última das virtudes cristãs morrera. Mas enquanto elas viveram, houve cristãos.”

Em seus 30 anos de The Illustrated London News, Chesterton frequentemente se referia a Nietzsche e seus asseclas, contra os quais ele sempre oferecia o senso comum tomista e a doutrina católica. Deixo aqui, para terminar, um trecho de um artigo no ILN, de 8 de março de 1924, intitulado Perseguição da Religião:

“É muito menor loucura esperar o fim do mundo para breve do que esperar o Super-homem para breve. Ainda assim, quantos evolucionistas fervorosos de nosso tempo escreveram seriamente como se o Super-homem fosse surgir na próxima semana? As coisas chegam realmente ao fim; e uma coisa projetada é geralmente reexaminada pelo projetista quando chega ao fim. Um homem que planta uma azaléia a vê florescer e fenecer e manifesta-se sobre o experimento; e não há nada irracional com um dia de julgamento, pressupondo um projeto. Mas não há nada no mundo a mostrar que uma azaléia por si mesma desenvolver-se-á em uma super-azaléia com todas as cores do arco-íris, apenas porque essa seria uma planta superior. O Super-homem foi apenas e tão somente um fantasma evocado do vazio pela imaginação de um louco; um homem literalmente louco chamado Nietzsche. Mesmo assim, quão vívida essa visão completamente absurda se tornou para muitos de nossa hesitante e débil geração! E a coisa mais estranha de todas é que tenham sido assim enfeitiçados alguns dos melhores cérebros.”


[1] Lamentações, 1:12. (N. do T.)
[2] Bow Bells Novelettes eram histórias curtas, melodramáticas, sensacionalistas e de grande sucesso, escritas por John Dicks para atingir a classe trabalhadora da Inglaterra vitoriana. (N. do T.)

26/08/2011

Chaucer versus Stevenson


Gilbert Keith Chesterton
The Illustrated London News, 8 de novembro de 1919

 
Nota inicial: Chesterton foi um dos críticos literários mais importantes das letras inglesas do início do século XX. Ele escreveu obras sobre Browning (1903), Dickens (1906 e 1911), Shaw (1909), Stevenson (1927), Chaucer (1932); escreveu também vários ensaios sobre a literatura vitoriana. Foi também um grande defensor da Idade Média, tendo escrito um livro sobre uma imaginária re-implantação dos valores e instituições medievais na Inglaterra vitoriana (A Volta de D. Quixote). As referências à Idade Média em suas obras são abundantes. Vislumbres de sua visão sobre esta época aparecem nas suas duas biografias mais famosas: a de São Francisco de Assis, de quem era devoto e a de Santo Tomás de Aquino. Vemos neste simples texto de jornal um gigante se levantando contra um minúsculo crítico, esmagando a pretensa e soberba crítica feita à Idade Média, crítica que se serviu de referências literárias muito caras a Chesterton. O grande escritor mostra que o crítico não conhece quem ele cita. Chesterton coloca as obras de Chaucer e Steveson na perspectiva escolhida pelo crítico e mostra o quanto os dois refletiam as visões de suas respectivas épocas e o quanto a época de Chaucer foi muito mais feliz e luminosa que a de Stevenson.


Algo que só pode ser considerado uma extraordinária explosão ocorreu no Daily News outro dia. Foi um protesto contra o crescente esclarecimento dos novos estudantes de História, que estão apresentando uma versão mais humana da Idade Média. O problema intitulou-se “Bons e Velhos Tempos” e começou com a denúncia do Deão da Catedral de São Paulo, Dr. Inge,[1] que dissera que as pessoas na era medieval foram provavelmente mais felizes ou alegres do que somos hoje. Alguns podem dizer que não seria difícil ser mais alegre que o Dr. Inge. Mas como considero que o Dr. Inge está errado em todo tipo de coisas, da Nova Teologia ao antigo ponto de vista oriental sobre o trabalho, divirto-me naturalmente quando ele está sendo especialmente caluniado por uma coisa sobre a qual ele está certo. O autor do artigo prossegue descrevendo suas impressões sobre a Idade Média, que são muito parecidas com as impressões de Catherine Morland[2] sobre “Os Mistérios de Udolpho”, cheios de gritos, correntes e escuridão. Ele diz que os trabalhadores eram servos; e invoca Stevenson para provar que os homens medievais estavam repletos de “um choroso medo da morte”. Finalmente, ele faz uma curiosa concessão, de que um solitário homem medieval pode ter sido feliz: “Miller, de Chaucer, pode ter sido feliz, mas, por outro lado, Miller era um bêbado.”

 Este é seguramente o exemplo mais infeliz que o crítico poderia escolher para provar sua tese. Terá ele lido algo de Chaucer? Sustentará ele seriamente que todos em Chaucer são completamente miseráveis, exceto Miller? O Cavaleiro, o Cura, a Prioresa, para não dizer o Monge e a Esposa de Bath, eram todos completamente miseráveis, ou mesmo excepcionalmente miseráveis? Ou o Cavaleiro, o Cura e a Prioresa eram todos bêbados? São o Cozinheiro e o Capitão-de-mar mais sinistros em Stevenson? Fico feliz tanto em dizer que gastei muito tempo glorificando Stevenson, quanto em afirmar que não gastei tempo algum polemizando com o Dr. Inge. Sinto-me estranho tanto em opor-me àquele quanto em apoiar este. Mas como uma simples questão de fato histórico, parece-me muito claro que, se Stevenson realmente falou isto como uma crítica geral à Idade Média, Stevenson estava inteiramente errado. Sugerir que os homens medievais estavam enfraquecidos pelo medo da morte (em qualquer sentido não varonil) não é apenas inconsistente com os fatos sobre eles, mas é inconsistente com todas as outras acusações contra eles. O crítico que condena nossos infelizes pais fala, ao mesmo tempo, sobre luta e escravidão; geralmente expande esta crítica a uma visão de guerra universal; insiste que aqueles homens sangravam por estéreis votos de superstição e lutavam uns com os outros por fantásticas questões de etiqueta; zomba de seus esportes por terem sido rudes e perigosos, e de sua religião, por ter sido militante e repleta de mártires; reclama igualmente da frívola mortalidade das competições e da fanática mortalidade das cruzadas; e então ele resume tudo, num movimento de sublime consistência, dizendo que aqueles homens eram fracos que temiam a morte.

A verdade é que a alegria de Stevenson foi muito mais louvável que a alegria de Chaucer; precisamente porque Chaucer viveu num mundo muito mais alegre, e vinha de uma tradição muito mais alegre. Stevenson viveu num mundo mais mórbido, e vinha de uma tradição muito mais mórbida. Terá o crítico, que fala sobre as trevas da Idade Média, considerado seriamente pelo que os antepassados imediatos de Stevenson substituíram aquelas trevas? Deveremos nós dançar com prazer ante a emancipação que substituiu a triste figura da Prioresa pela alegre figura de Thrawn Janet?[3] Os Homens Felizes de Gordon Darnaway[4] eram mais felizes que os Homens Felizes de Robin Hood? Foi uma grande glória para Stevenson que ele não tenha sido esmagado pelo credo calvinista de seus antepassados, ou pela ausência de credo ainda mais vazia e fatalista de seus contemporâneos. Mas qualquer um com uma percepção de tais coisas sentirá que a sanidade de Stevenson foi uma luta; ao passo que em Chaucer a sanidade era um estado. A sanidade de Stevenson era realmente peculiar a Stevenson; sendo parcialmente uma esplêndida reação da sanidade moral contra a insanidade física. A sanidade de Chaucer era a sanidade da época de Chaucer. Pois a Idade Média, como tudo o mais, teve seus altos e baixos; e as coisas não iam tão bem quando os feitos de São Luis estavam sendo escritos como quanto quando eles estavam sendo realizados. Nosso severo crítico, contudo, não se perturba por nenhuma dessas sutis distinções; ele as denomina, com um abrangente sarcasmo, “Os Bons e Velhos Tempos”, e parece supor que admiramos tudo, de Vortingern[5] a Valois.[6] As idéias de Stevenson são, todavia, uma questão mais interessante; e penso ser óbvio que elas foram, neste caso, tão individuais quanto um pesadelo. A noção de Stevenson sobre o medievalismo é que era uma ilusão. Foi uma ilusão muito artística; porque ele era um grande artista. Mas lemos nela seu próprio puritanismo imaginativo, pois este era o único entusiasmo teológico que ele jamais conheceu. Ele iluminou os grandes edifícios góticos com uma espécie de luz infernal que luzia desde baixo, tal que as sombras eram caprichosas, mas falsas. Ele projetou um luar calvinista sobre as ruínas católicas.

O resto é mera questão de História; e ninguém tem de se meter a fim de impedir que a História seja aprimoradamente escrita. É tão falso descrever uma cidade medieval, e dizer que os trabalhadores eram servos, quanto dizer que os arautos eram padres, ou que os monges eram cavaleiros, ou que os arcos eram armas de fogo. Isto simplesmente não é factual; desconhece toda a história dos contratos, das guildas, do crescimento das cidades muradas; de metade dos mais formidáveis fatos da Idade Média. Havia servos na Idade Média; mas a servidão era simplesmente resquício do estado servil da antiguidade pagã. A peculiar realização do medievalismo não foi a servidão, mas a dissolução da servidão. Mas os artesãos das cooperativas não eram servos, em nenhum sentido ou por qualquer argumento. Eles eram sindicalistas comerciais, cujos sindicatos eram mais ricos, mais responsáveis, mais reconhecidos pelo Estado, e mais respeitados como contribuintes da cultura, do que são hoje nossos próprios sindicatos. Eles exigiam um bom pagamento, como fazem os nossos sindicatos; eles também exigiam um bom trabalho do artesão, o que os nossos sindicatos não conseguem fazer.

Esta saudável visão da idade das guildas não é romântica; é realista. A visão sombria de tal época é que é romântica. Um mundo contendo nada mais que caça às bruxas e barões maldosos seria um lugar ruim de se viver; mas ninguém nele viveu. Um mundo de guildas e camponeses gradualmente emancipados era um lugar, longe do perfeito, para se viver; tinha defeitos reais que podem ser discutidos de forma justa, incluindo seus méritos. Mas este era um mundo real; e será necessário mais que um grito tardio dos Bons e Velhos Tempos da rainha Vitória para impedir que uma nova geração considere aquele mundo real verdadeiramente interessante.


[1] William Ralph Inge (1860-1954) foi um prelado anglicano, deão da Catedral de São Paulo, em Londres, de 1911 a 1934. Seu pessimismo lhe valeu o título de “Deão Soturno”. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[2] Ingênua heroína de “Abadia de Northanger”, obra de Jane Austen, que gostava de romances góticos de terror, tal como “Os Mistérios de Udolpho”, de Ann Radcliffe. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[3] A Prioresa é a personagem mais vívida e amante da vida da obra Canterbury Tales, de Chaucer. Thrawn Janet é uma velha feia, com ares de bruxa, que dá título a um conto de Stevenson; possuída pelo demônio, ela se enforca. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[4] Ver The Merry Men and Other Tales, de Stevenson. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[5] Guerreiro do século V, líder dos antigos britânicos. (N. do T.)
[6] Casa real francesa, ramo da dinastia capetinga. Reinou na França do século XIV ao século XV (N. do T.)