29/03/2010

A PAZ E O PAPADO

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929

Gilbert Keith Chesterton

Há um famoso ditado que a alguns parece falta de reverência, embora de fato seja um esteio de uma parte importante da religião: “Se Deus não existisse, seria necessário inventá-Lo.” Isso não é totalmente diferente de algumas das ousadas questões com que Santo Tomás de Aquino inicia sua grande defesa da fé. Alguns dos modernos críticos de sua fé, especialmente seus críticos protestantes, cometeram um erro divertido, por causa de sua ignorância do latim e do antigo uso da palavra DIVUS, e acusaram os católicos de descreverem o Papa como Deus. Os católicos, preciso dizer, estão tão próximos a chamar o Papa de Deus quanto de chamar um gafanhoto de Papa. Mas há um sentido em que eles realmente reconhecem uma correspondência eterna entre a posição do Rei dos Reis no universo e a do seu Vigário no mundo, como a correspondência entre uma coisa real e sua sombra; uma similaridade parecida com a similaridade imperfeita e defeituosa entre Deus e a imagem de Deus. E entre as coincidências dessa comparação pode ser colocado o caso deste epigrama. O mundo se encontrará mais e mais na posição em que mesmo os políticos e os homens práticos se pegarão dizendo: “Se o Papa não existisse, seria necessário inventá-lo.”

Não é de todo impossível que eles possam realmente tentar inventá-lo. A verdade é que milhares deles já teriam aceitado o Papa desde que ele não fosse chamado Papa. Acredito firmemente que seria muito possível, nessa questão e em muitas outras, pregar uma espécie de peça piedosa e prática em grande número de hereges e pagãos. Imagino que seria muito factível descrever com precisão, mas em termos abstratos, a idéia geral de um cargo ou obrigação que corresponda exatamente à posição do Papa na história, e que fosse aceitável em termos éticos e sociais por muitos protestantes e livre-pensadores; até que descobrissem, com uma reação de ira e assombro que eles foram levados a aceitar a arbitragem internacional do Papa. Suponha que alguém apresentasse a antiga idéia como se fosse uma nova idéia; suponha que se dissesse: “Proponho que seja erguido em alguma cidade central, na parte mais civilizada de nossa civilização o gabinete de uma autoridade permanente para representar a paz e a base do entendimento de todas as nações circundantes; que ele seja, pela natureza de seu cargo, posto a parte de todos e, mesmo assim, que ele jure considerar os acertos e os erros de todos; que ele seja colocado lá como um juiz para elucidar uma lei ética e um sistema de relações sociais; que ele seja de certo tipo e treinado de certa maneira, diferente da que encoraje as ambições ordinárias da glória militar ou mesmo dos elos da tradição tribal; que ele seja protegido, por um sentimento especial, da pressão de reis e príncipes; que ele jure, de forma especial, considerar os homens como homens.” Não são poucos já, e logo serão muito mais, os que seriam perfeitamente capazes de propor tal instituição internacional ideal; há também muitos que suporiam realmente, em sua inocência, que isso nunca tivesse sido tentado antes.

É verdade que até agora muitos de tais reformadores recuariam ante a idéia de uma instituição ser um indivíduo. Mas mesmo esse preconceito está enfraquecendo pelo desgaste da experiência política real. Podemos estar ligados, como muitos de nós estamos, ao ideal democrático; mas muitos de nós já percebemos que a democracia direta, a única democracia verdadeira que satisfaz o verdadeiro democrata, é uma coisa aplicável a algumas coisas e não a outras; e ela não é absolutamente aplicável à uma questão como esta. A voz real de uma vasta civilização internacional, ou de uma vasta religião, não será, de qualquer forma, as vozes e clamores distintos e articulados de todos os milhões de fiéis. Não seria o povo o herdeiro de um Papa destronado; seria algum sínodo ou grupo de bispos. Não é uma alternativa entre monarquia e democracia, mas uma alternativa entre monarquia e oligarquia. E, sendo eu um dos democratas idealistas, não tenho a menor hesitação em minha escolha entre as duas formas anteriores de privilégio. Um monarca é um homem, mas uma oligarquia não são homens; são poucos homens formando um grupo pequeno o suficiente para ser irresponsável. Um homem na posição de um Papa, a menos que seja literalmente louco, deve ser responsável. Mas aristocratas podem sempre jogar a responsabilidade uns nos outros; e ainda criar uma sociedade corporativa cuja visão do resto do mundo seja completamente obscurecida. Estas são conclusões a que estão chegando muitas pessoas no mundo; e muitos estariam ainda mais assombrados e horrorizados em descobrir aonde levam essas conclusões. Mas o ponto de discussão aqui é que mesmo se nossa civilização não redescobrir a necessidade do Papado, é extremamente provável que, cedo ou tarde, ela tentará suprir a necessidade com algo parecido com o Papado; mesmo se tentar fazê-lo por conta própria. Esta será realmente uma situação irônica. O mundo moderno estabelecerá um novo Anti-Papa, mesmo considerando que, como no romance de D. Benson, o Anti-Papa tenha o caráter de um Anticristo.[1]

A questão é que os homens tentarão colocar algum tipo de poder moral fora do alcance dos poderes materiais. A fraqueza de muitas tentativas valorosas, bem intencionadas e atuais de justiça internacional é que o conselho internacional dificilmente pode evitar ser meramente um microcosmos ou um modelo do mundo externo, com todas as pequenas e grandes coisas, inclusive as coisas excessivamente grandes. Suponha que em trocas internacionais do futuro alguma potência, digamos a Suécia, seja considerada injusta ou problemática. Se a Suécia for poderosa na Europa, ela será poderosa no conselho da Europa. Se a Suécia for muito poderosa na Europa, ela será muito poderosa no conselho da Europa. E porque ela é a própria coisa irresistível, ela é a própria coisa a ser resistida; ou, de qualquer forma, a ser restringida. Não vejo como a Europa possa escapar desse dilema lógico, exceto se descobrir novamente uma autoridade que seja puramente moral e que seja a guardiã reconhecida de uma moralidade. Pode ser dito sensatamente que mesmo aqueles dedicados a essa tarefa podem nem sempre praticar o que professam. Mas os outros governantes do mundo nunca estão obrigados a professá-lo.

Muitas vezes na história, especialmente na história medieval, o Papado interveio no interesse da paz e da humanidade; tal como os grandes santos se jogavam entre espadas e adagas de facções em luta. Mas se não houvesse um Papado, algum santo, ou a Igreja Católica, o mundo, abandonado à sua própria sorte, certamente não teria substituído credos teológicos por abstrações sociais. Em geral, a humanidade esteve longe de ser humanitária. Se o mundo fosse abandonado à própria sorte, digamos na era do feudalismo, todas as decisões teriam sido rígida e brutalmente na linha do feudalismo. Havia apenas uma instituição humana que existira antes do feudalismo. Havia apenas uma instituição que podia possivelmente trazer consigo alguma débil memória da República e da Lei romanas. Se o mundo tivesse sido abandonado à sua própria sorte na época da Renascença e da política italiana do Príncipe, ele teria se organizado inteiramente ao modo da glorificação dos príncipes. Havia apenas uma instituição que podia a qualquer momento ser forçada a repetir: “Não coloque sua confiança em príncipes.” Tivesse ela ausente, o único resultado teria sido que o famoso acordo de CUJUS REGIO EJUS RELIGIO teria sido todo REGIO com muito pouca RELIGIO. E então, nossos dias atuais têm seus dogmas inconscientes e seus preconceitos universais; e precisamos uma separação especial, sagrada e, o que parece a muitos, inumana que esteja acima de nós, para ver além.

Sei que se abusou deste ideal como de nenhum outro; digo apenas que mesmo aqueles que mais denunciaram a realidade provavelmente começarão de novo a busca pelo ideal. Mas, de fato, não proponho que qualquer tribunal espiritual deveria agir como um tribunal comum ou que a ele seja dado poderes de interferência prática nos governos nacionais. Tenho firme convicção de que tal tribunal não deveria nunca aceitar qualquer envolvimento material. Tampouco desejo, nesta questão, que qualquer tribunal secular agora constituído no interesse da paz internacional interfira com a nacionalidade ou com a liberdade local. Preferiria muito mais dar tal poder a um papa do que a políticos e diplomatas do tipo daqueles a quem o mundo está entregue. Mas não desejo dá-lo a ninguém e a autoridade em questão não deseja aceitá-lo de ninguém. A coisa de que falo é puramente moral e não pode existir sem certa lealdade moral; é uma espécie de atmosfera ou mesmo de um sentimento de afeição. Não há espaço para descrever aqui a maneira em que tal elo popular se desenvolve; mas não há a mínima dúvida de que ele já se desenvolveu em torno do centro religioso de nossa civilização; e não é provável que cresça de novo, exceto se ele se dirigir a um padrão de humildade e caridade muito mais alto que o padrão ordinário do mundo. Os homens não sentem afeição pelos imperadores dos outros, ou mesmo pelos políticos dos outros; sabe-se que a afeição deles se esfriou até mesmo em relação aos seus próprios políticos. Não vejo nenhuma perspectiva de qualquer núcleo positivo de amizade, exceto em certo entusiasmo por algo que move as partes mais íntimas da natureza moral do homem; algo que pode nos unir não por ser inteiramente internacional (como dizem os arrogantes), mas por ser universalmente humano. Os homens não conseguem concordar sobre o nada, tanto quanto não conseguem discordar sobre o nada. E algo amplo o suficiente para proporcionar tal acordo deve ser ele mesmo maior que o mundo.


[1] O dom da profecia é aqui exercido por Chesterton em seu mais alto grau. A proposta de um governo mundial, gestada há pelo menos dois séculos é, na verdade, a versão demoníaca do Anti-Papa. Ela vem para suprir a necessidade um Papa realmente atuante, que existiu por séculos e que possibilitou o desenvolvimento da Civilização Ocidental. Agora esta civilização recorre à versão demoníaca para continuar existindo. A ONU, que seguiu à Liga das Nações, é uma primeira versão desta monstruosidade. (N. do T.)


Do livro “A Coisa” ver A lógica e o tênis, Por que sou católico, A máscara do agnóstico, Um pensamento simples, A Revolta contra as Idéias, As superstições do protestante, Raízes da sanidade, Inge versus Barnes, O que pensamos a respeito, O que é “A Coisa”?, Um artigo comum, O otimista como um suicida

25/03/2010

Olavo de Carvalho e eu

Respondo, com este post, a um leitor que me faz alguns questionamentos sobre minha opinião a respeito de Olavo de Carvalho. É uma cobrança não rara que me fazem. Aproveito então a oportunidade para esclarecer aos interessados. Quem se interessar acesse os todos os comentários ao post O Estado Servil.

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Caro Pedro,

Você diz que confiro um valor salvacionista à obra do Olavo de Carvalho. Se faço isso, faço-o apenas sob o ponto de vista de que quem não se desfizer da carga esquerdista que pesa sobre todos nós, não poderá ser salvo; e isto é doutrina católica clara. A obra do Olavo é, para a solução deste problema, um recurso único no Brasil atual.

Algumas observações sobre a expressão “obra do Olavo”:

1. Sou incompetente para julgar toda a obra dele. Ela é muito vasta para meus conhecimentos atuais: ela cobre muitos campos e é muita areia para meu caminhãozinho.

2. Como ele ainda está vivo (e espero que continue por muito tempo) sua obra é uma obra em evolução, uma obra inacabada. A evolução é claramente notável para mim que o acompanho há quase 15 anos.

3. Algumas coisas já dão para afirmar sobre ele, sob meu ponto de vista: é o maior pensador brasileiro vivo, pela amplitude de seus interesses, pela fundamentação de sua análise e pelo vácuo acadêmico que se criou em torno dele (tomo isso como admissão acadêmica de sua importância); é o maior polemista (no bom sentido) que conheci nestas paragens; é um grande professor de filosofia; é o melhor colunista e o melhor correspondente internacional de todos os jornais brasileiros (parabéns ao Diário do Comércio de SP por mantê-lo dentre seus colunistas); ninguém entende mais, no Brasil, da dominação islâmica do que ele; ninguém entende mais, no Brasil, de governo global e tendências globalizantes, do que ele; ninguém tem uma crítica tão procedente sobre a falsa autoridade da ciência e nem sobre a instrumentalização da ciência pela burocracia estatal.

Disso tudo, dá para notar que eu não considero Olavo só inteligente e erudito; ele é muito mais que isso.

Você afirma que ele conduz seus alunos de filosofia a erros gnósticos. Bem, eu sou aluno dele em seu curso de filosofia, ministrado pela Internet. Não identifiquei, até agora, nada disso. Seu curso é simplesmente EXCEPCIONAL. Não nego que ele admire Leibniz e Schelling, como você diz. Ele admira muitos outros filósofos e despreza outros tantos. Não nego que algumas de suas afirmações, se tomadas em separado, podem levar alguns a considerá-lo gnóstico, genoniano, schuoniano, etc.

Sobre Olavo conduzir alguém à boa doutrina ou não, digo que não conheço autoridade eclesial no Brasil que entenda mais de doutrina católica que Olavo. Tome aí todos os cardeais, bispos, padres, etc.; mais que ele ninguém entende. Ademais, em suas aulas de filosofia, ele comenta, interpreta e ensina aspectos e características da doutrina católica. Você poderia me perguntar se o considero um católico modelo. Eu diria que NÃO! Acho que nem ele se considera assim.

Tampouco considero Olavo um ativista político, como você o faz. Você diz que ele não propõe o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Disso eu não sei, mas me cite um cardeal, um bispo, um padre, em qualquer lugar do mundo, que o proponha (fora, claro, da ala tradicionalista da Igreja). Cite-me um papa pós-conciliar que propôs tal coisa.

Sobre a auto-declaração de catolicismo do Olavo ela é claríssima em muitas ocasiões: ele inicia seu programa semanal de rádio fazendo uma oração à Virgem Santíssima e a São Padre Pio. No curso de filosofia, ele declara permanentemente ser católico apostólico romano. Ele declara sua obediência ao Papa, apesar de não perder oportunidade de enfatizar a crise da Igreja e de criticar algumas declarações papais. Além disso, a base de todo o seu ensinamento filosófico é a CONFISSÃO. Seu modelo de confissão é Santo Agostinho. Segundo ele, quem não for capaz de fazer uma confissão perfeita, não só não obterá o perdão de Deus, mas não será capaz de nenhum conhecimento filosófico.

Você comenta sobre anúncios da maçonaria no site do Olavo. Bem eu já vi anúncios semelhantes em muitos sites catolicíssimos. Esses anúncios são incontroláveis. Não creio que o Olavo transija com a maçonaria.

Antes de finalizar, devo dizer que discordo do Olavo em muitas coisas. O problema é que para verbalizar uma discordância com um intelectual da estirpe do Olavo, a pessoa tem de pensar muito, tem de estudar muito, tem de afinar seu arsenal intelectual como alguém afinaria um Stradivarius. Tomar uma ou outra afirmação, um ou outro artigo, um ou outro trecho de livro de sua autoria e discordar ou desgostar é fácil. Colocar no papel a crítica, os pontos falhos, as deficiências do pensamento dele, enfim debater com ele no nível em que ele se encontra, isto é outra história.

Para finalizar, não sou olaviano, no sentido pejorativo que tem hoje esta palavra. Não tomo suas palavras como a última expressão do oráculo, nem como ordem que deve ser colocada em prática. Não participo de discussões vãs pelo Orkut sobre as virtudes e defeitos do Olavo. Mas quando Olavo emite uma opinião, expressa o resultado de uma análise, conclui sobre algo, eu o ouço com muitíssima atenção. Ele não é qualquer um. Ele é um pensador, da mais alta casta. Se você disser que olaviano é quem o admira e lhe é grato, bem aí eu sou olaviano, sem nenhuma restrição. Quem toma o Olavo como guru, como a última palavra sobre tudo – ou seja, um olaviano, segundo o sentido pejorativo do termo – peca contra o primeiro Mandamento da Lei de Deus, peca por idolatria. Neste caso, concordo com você, este olaviano não pode ser católico, não por causa do Olavo, mas por causa de Deus.

Agradeço a oportunidade que você me deu de falar sobre este assunto, pois muita gente andava me cobrando uma opinião.

19/03/2010

O Estado Servil

Hilaire Belloc

TRADUÇÃO: Guilherme Ferreira Araújo.

Nota do blogueiro: Começamos o projeto de tradução d’O Estado Servil, de Hilaire Belloc. Que Nossa Senhora nos ilumine e seu casto esposo, São José, nos proteja.

“...Se não restaurarmos a Instituição da Propriedade, não poderemos escapar de restaurar a Instituição da Escravidão; não há terceira via.”

Sumário

INTRODUÇÃO

O TEMA DESTE LIVRO: — Ele foi escrito para sustentar a tese de que a sociedade industrial tal como a conhecemos tenderá ao restabelecimento da escravidão — As seções nas quais o livro será dividido.

SEÇÃO I

DEFINIÇÕES: — O que é a riqueza e por que ela é necessária ao homem — Como é produzida — O significado das palavras Capital, Proletariado, Propriedade, Meios de Produção — A definição de Estado Capitalista — A definição de ESTADO SERVIL — O que ele é e o que não é — O restabelecimento do status em lugar do contrato — A servidão não é uma questão de grau, mas de estado. — Resumo dessas definições.

SEÇÃO II

NOSSA CIVILICAÇÃO FOI ORIGINALMENTE SERVIL: — a instituição servil na antiguidade pagã — Sua característica fundamental — Uma sociedade pagã a tomou por certa — A instituição é desarranjada pelo advento da Igreja de Cristo.

SEÇÃO III

COMO A INSTITUIÇÃO SERVIL FOI DISSOLVIDA DURANTE UM CERTO TEMPO: — O efeito subconsciente da Fé nessa questão — Os principais elementos da economia da sociedade pagã — A Vila — A transformação do escravo agrícola no servo cristão — Próximo ao camponês cristão — A construção correspondente do ESTADO DISTRIBUTIVO por toda a Cristandade — Ela está quase completa no fim da Idade Média — “Não foram as máquinas que tiraram nossa liberdade, mas a perda do intelecto livre”.

SEÇÃO IV

COMO O ESTADO DISTRIBUTIVO DEFINHOU: — Esse malogro tem origem na Inglaterra — A história do declínio desde a propriedade Distributiva até o Capitalismo — A revolução econômica do século XVI — O confisco das terras monásticas — O que poderia ter acontecido se o Estado as tivesse retido — O fato é que aquelas terras foram capturadas por uma oligarquia — A Inglaterra era capitalista antes do advento da revolução industrial — Portanto, a indústria moderna, proveniente da Inglaterra, cresceu num molde capitalista.

SEÇÃO V

O ESTADO CAPITALISTA TORNA-SE INSTÁVEL À PROPORÇÃO QUE SE APERFEIÇOA: — Ele pode, por sua natureza, ser não mais que uma fase transitória entre uma primitiva ou tardia situação estável da sociedade — As duas forças externas que o tornam instável — (a) O conflito entre suas realidades sociais e suas bases morais e legais — (b) A insegurança e a insuficiência as quais ele condena os cidadãos livres — Os poucos proprietários podem conceder ou reter os meios de sustento dos não-proprietários — O capitalismo é tão instável que ele ousa não proceder à sua própria conclusão lógica, mas tende a restringir a competição aos proprietários e a insegurança e a insuficiência aos não-proprietários.

SEÇÃO VI

AS SOLUÇÕES ESTÁVEIS PARA ESSA INSTABILIDADE: — Os três arranjos sociais estáveis que sozinhos podem ocupar o lugar do instável Capitalismo — A solução Distributiva, a solução Coletivista, a solução Servil — Restam apenas a solução Distributiva e a Coletivista.

SEÇÃO VII

O SOCIALISMO É A SOLUÇÃO APARENTE MAIS FÁCIL PARA O PROBLEMA CAPITALISTA: — Um contraste entre o reformador que promove a Distribuição e o reformador que promove o Socialismo (ou Coletivismo) — As dificuldades encontradas pelo primeiro tipo — Ele está trabalhando contra a natureza — O segundo está trabalhando no “sentido dos veios” — O coletivismo é um desenvolvimento natural do capitalismo — Ele atrai tanto o capitalista quanto o proletário — Todavia, veremos que o empreendimento coletivista está fadado ao fracasso e a produzir algo muito diferente de seu objeto — a saber, o Estado Servil.

SEÇÃO VIII

TANTO OS REFORMADORES QUANTO OS REFORMADOS ESTÃO PROMOVENDO O ESTADO SERVIL: — Há dois tipos de reformadores trabalhando junto à linha de menor resistência — Estes são o Socialista e o Homem Prático — Porém, há dois tipos de Socialista: o Humanista e o Estatístico — O Humanista gostaria tanto de confiscar dos proprietários quanto de instituir segurança e suficiência para os não-proprietários — É-lhe permitido fazer a segunda coisa por via do estabelecimento de condições servis — Ele está proibido de fazer a primeira — O Estatístico fica satisfeito desde que ele possa conduzir e organizar os pobres — Ambos são canalizados em direção ao Estado Servil e ambos são distanciados de seu Estado Coletivista ideal — Nesse ínterim, a grande massa – o proletariado – sobre a qual os reformadores estão trabalhando, ainda que retendo o instinto da posse, perdeu qualquer experiência dele e está muito mais sujeita à lei privada do que à dos tribunais — Foi exatamente isso o que aconteceu no passado, durante a mudança oposta da Escravidão para a Liberdade — A lei privada tornou-se mais forte que a pública no início da Idade Média — Os proprietários saudaram as mudanças que os mantiveram em posse da propriedade e ainda ampliaram a segurança de seus rendimentos — Hoje os não-proprietários darão as boas-vindas ao que quer que os conserve como uma classe assalariada, mas aumente seus salários e sua segurança sem insistir na expropriação dos proprietários.

Um apêndice que demonstra que é vã a proposta Coletivista de resgatar o Capitalista em lugar de expropriá-lo.

SEÇÃO IX

O ESTADO SERVIL COMEÇOU: — A manifestação do Estado Servil na lei ou em propostas de lei consistirá em dois tipos — (a) Leis ou propostas de lei que obriguem o proletariado a trabalhar — (b) Operações financeiras que firmem o domínio dos capitalistas sobre a sociedade de forma mais intensa — No que diz respeito a (a), nós encontramos isso JÁ em atividade em medidas tais como a Lei de Seguro e em propostas tais como a Arbitragem Compulsória, o reforço das barganhas dos Sindicatos e a construção de “Colônias de Trabalho”, etc., para os “que não conseguem trabalho” — No que diz respeito ao segundo tipo, nós vemos que os assim chamados experimentos “Municipal” ou “Socialista” para a obtenção dos meios de produção JÁ ampliaram e continuam ampliando a dependência da sociedade em relação ao Capitalista.

CONCLUSÃO

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INTRODUÇÃO

O TEMA DESTE LIVRO

ESTE LIVRO FOI ESCRITO PARA SUSTENTAR e provar a seguinte verdade: —

Que nossa sociedade moderna e livre, na qual os meios de produção são detidos por poucos que estão necessariamente em equilíbrio instável, tende a alcançar uma condição de equilíbrio estável POR MEIO DO ESTABELECIMENTO DO TRABALHO COMPULSÓRIO LEGALMENTE OBRIGATÓRIO SOBRE AQUELES QUE NÃO DETÊM OS MEIOS DE PRODUÇÃO, PARA A VANTAGEM DAQUELES QUE OS POSSUEM. Com este princípio de coerção aplicado contra os não-proprietários deve também advir uma diferença em seu status; e aos olhos da sociedade e de suas leis positivas os homens serão divididos em dois grupos: o primeiro, política e economicamente livre, dotado dos meios de produção e firmado nesse domínio com segurança; o segundo, econômica e politicamente dependente, mas inicialmente firmado, por sua própria falta de liberdade, em algumas coisas necessárias para a vida e em um mínimo de bem-estar abaixo do qual ele não deve cair.

A sociedade que tivesse alcançado tal condição seria libertada de suas atuais tensões internas e teria tomado uma forma estável: quer dizer, capaz de ser indefinidamente prolongada sem mudança. Nela seriam resolvidos os vários fatores de instabilidade que perturbam aquela forma de sociedade chamada Capitalista, e os homens estariam satisfeitos em aceitar – e a continuar em – tal arranjo.

A tal sociedade estável darei, por razões que serão descritas na próxima seção, o título de O ESTADO SERVIL.

Não vou me comprometer a julgar se essa vindoura organização da nossa sociedade moderna é boa ou má. Preocuparei-me apenas em mostrar a tendência necessária em direção a ela que existe há tempo e as recentes disposições sociais que mostram que ela já teve início efetivamente.

Essa nova condição será aceitável para aqueles que desejam conscientemente ou por insinuação o restabelecimento entre nós de uma diferença de status entre proprietário e não-proprietário: ela será desagradável para aqueles que julgam tal distinção com má vontade ou com receio.

Meu trabalho não será penetrar na discussão entre esses dois tipos de pensadores modernos, mas mostrar para cada e para ambos que aquilo que um favorece e de que o outro foge está sobre eles.

Eu provarei minha tese especialmente a partir do caso da sociedade industrial da Grã Bretanha, incluindo aquela pequena, estranha e excepcional região da Irlanda, que sofre ou desfruta das condições industriais de hoje.

Eu dividirei o assunto da seguinte maneira: —

(1) Formularei certas definições.

(2) Em seguida, descreverei a instituição da escravidão e o ESTADO SERVIL do qual ela é a base, como no caso do mundo antigo.

(3) Esboçarei muito rapidamente o processo por meio do qual aquela antiga instituição da escravidão foi lentamente dissolvida durante os séculos cristãos, e por meio do qual o sistema medieval resultante, baseado na propriedade grandemente dividida nos meios de produção, foi

(4) destruído em certas áreas da Europa no momento em que atingiu um acabamento, e colocou no lugar dele, na prática ainda que não em legítima teoria, uma sociedade baseada no CAPITALISMO.

(5) Em seguida, mostrarei como o Capitalismo era instável por natureza, porque suas realidades sociais estavam em conflito com todos os sistemas legais possíveis ou existentes, e porque seus efeitos – ao negar a suficiência e a segurança – eram intoleráveis para os homens; como, então, sendo instável, ele consequentemente introduziu um problema que demandava uma solução: isto é, o estabelecimento de alguma forma estável de sociedade cuja lei e prática social deveriam estar em harmonia, e cujos resultados econômicos, por proporcionarem suficiência e segurança, deveriam ser toleráveis para a natureza humana.

(6) Mostrarei, em seguida, as três únicas soluções possíveis: —

(a) Coletivismo, ou o depositar os meios de produção nas mãos dos administradores políticos da comunidade.

(b) Propriedade, ou o restabelecimento do Estado Distributivo, no qual a massa de cidadãos deveria possuir individualmente os meios de produção.

(c) Escravidão ou o Estado Servil, no qual aqueles que não possuem os meios de produção serão legalmente forçados a trabalhar para aqueles que os possuem, e receberão em troca a segurança do sustento.

Ora, vendo o desgosto que os resíduos de nossa longa tradição cristã semeou em nós por advogarem diretamente a favor da terceira solução e por apoiarem audaciosamente o restabelecimento da escravidão, as duas primeiras, exclusivamente, estão expostas aos reformadores: (1) a reação em direção a uma condição da propriedade bem-dividida ou do Estado Distributivo; (2) uma tentativa de alcançar o Estado Coletivista ideal.

Pode ser facilmente demonstrado que a segunda solução interessa mais natural e facilmente a uma sociedade já capitalista, por causa da dificuldade que tal sociedade tem em descobrir a energia, a vontade e a visão requeridas para a primeira solução.

(7) Procederei, em seguida, a mostrar como a busca por esse Estado Coletivista ideal, que é nascido do capitalismo, leva os homens que atuam numa sociedade capitalista não em direção ao Estado Coletivista nem a nada parecido com ele, mas em direção àquela terceira coisa totalmente diferente — o Estado Servil.

(8) Reconhecendo que um argumento teórico desse tipo, apesar de intelectualmente convincente, não é suficiente para o estabelecimento da minha tese, eu concluirei dando exemplos da legislação inglesa moderna, os quais provam que o Estado Servil está de fato sobre nós.

Tal é o esquema que eu projeto para este livro.

13/03/2010

Noite passada, conversei com Chesterton

 

Ele estava dando uma entrevista aqui no Brasil e eu, que conhecia a entrevistadora, pude assistir a gravação da mesma. Estava como sempre muito divertido, falando de tudo, até de seu proverbial tamanho e peso.

Num dos intervalos de gravação, tomei coragem e me dirigi ao grande escritor inglês.

– I am a big fan of yours. Coisa realmente ridícula de se dizer, mas o que dizer quando se está frente a frente com Gilbert Keith Chesterton?

– Well, thank you, but why?

– Because your books convert people.

– Do they?

– Yes, they really do.

– But, why? Aqui Chesterton está sendo apenas gentil, tentando fingir que não sabe que seus livros sejam um meio de conversão.

– Well, because ... Parei um pouco para pensar.

– I really don’t know. What I know is that they convert the worst of the pagans, the intellectuals.

– And why is that? Ele estava querendo mesmo puxar minha língua.

– Well ... I think that they convert intellectuals because they are a trap for those people. They think they will find “intellectual stuff” in your books and find Catholicism instead! I would say “Catholicism for adults”.

Quando Chesterton ouviu minha resposta abriu um belo sorriso e me deu um abraço muitíssimo acolhedor e então eu ....

ACORDEI!

Que pena que nossa conversa teve de ser interrompida assim. Eu queria lhe perguntar tantas coisas: sobre Padre Brown, sobre sua amizade com Belloc, sobre os finais de tarde nos bares da Fleet Street em Londres, sobre Frances, sua adorável esposa, sobre a vila de Beaconsfield, etc. Quem sabe haverá outras entrevista dele aqui no Brasil e eu possa delas participar!

Senti falta de Gustavo Corção lá onde estávamos. Gostaria muito de ter presenciado uma conversa dos dois. Mas acho que os dois estão sempre conversando lá no Céu.

De qualquer forma, com aquele abraço final, penso ter sido abençoado em sonho por meu escritor favorito!

11/03/2010

Da Usura

Hilaire Belloc

TRADUÇÃO: NINA BANDEIRA

Notas do blogueiro:

1. Por meio do amigo Carlos Nougué este blog recebe um texto importante de Belloc, numa bela tradução de Nina Bandeira. À Nina e ao Nougué meus mais efusivos agradecimentos. Em tempos em que os católicos nos dividimos entre a Teologia da Libertação e o liberalismo, já não sabemos mais como analisar temas econômicos do ponto de vista católico. Há mesmo quem negue, como vimos no caso de Tom Woods, que a Igreja deva opinar em assuntos econômicos para deixá-los para os entendidos. Já Leão XIII, na Rerum Novarum, nos advertia de que a soberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados e assuntos econômicos são temas que ele julgava dever da Igreja comentar, opinar e interpretar segundo a Tradição e as Escrituras. Belloc, neste ensaio, nos ensina como refletir sobre um assunto econômico de um ponto de vista diferente do comunismo e do liberalismo, considerando a economia uma parte da moral.

2. Anuncio aos leitores do blog que estaremos (eu e Guilherme Ferreira Araujo) traduzindo, nos próximos meses, o Estado Servil, de Hilaire Belloc. Este é um livro em que Belloc trata exclusivamente de economia sob o ponto de vista católico. É um sonho antigo que agora se torna realidade pelas mãos amigas do Guilherme. Estarei postando os primeiros textos desta obra muito proximamente.

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Usura não significa juros altos, e sim qualquer cobrança de juros, mesmo baixos, sobre um empréstimo improdutivo. Não é apenas imoral (tendo sido, em decorrência disso, condenada por todos os códigos morais – pagãos, muçulmanos ou católicos), mas também, em última análise, destrutiva da sociedade. Somente tornou-se prática usual do nosso comércio após o colapso europeu que se seguiu à Reforma Protestante. A Usura destruirá nossa sociedade, mas não há como escapar-lhe nesse meio-tempo. Aproximamo-nos do final de sua ação maléfica, não devido à conscientização sobre seus males, mas sim por ela beirar o esgotamento de seus recursos. Os empréstimos da Grande Guerra, usurários em sua quase totalidade, aceleraram intensamente esse processo. 

O mundo moderno se organiza segundo o princípio de que o dinheiro, por sua própria natureza, gera dinheiro. Uma soma em dinheiro emprestada, segundo nosso sistema atual, tem o direito intrínseco à cobrança de juros. Trata-se de um falso princípio, tanto em termos econômicos quanto morais. Após arruinar Roma, vem-nos conduzindo ao nosso fim.

Suponhamos que um homem o procure e diga: "Há um terreno junto ao meu, excelente para construção. Se eu construir ali uma boa casa, conseguirei alugá-la com lucro líquido de 100 libras esterlinas ao ano, já considerado o pagamento de todas as taxas, impostos e reparos. Só que não disponho de capital para construir a casa. O terreno custará 50 libras e a casa, 950. O senhor me emprestará mil libras, de forma que eu compre o terreno, construa a casa e desfrute dessa pequena renda?" Sua provável resposta seria: "E o que receberei em troca? Certo, o senhor ficará com suas 100 libras ao ano. Mas só as conseguirá graças ao meu auxílio, o que me confere o direito à participação nos lucros. Havemos de dividi-los meio a meio. O senhor retira sua parte de 50 libras ao ano pelo conhecimento da oportunidade e por seu trabalho e me repassa as outras 50. Elas representam 5% do meu investimento, e ficarei satisfeito."

Essa resposta, considerando-se a propriedade como direito moral, constitui oferta perfeitamente lícita. Ao aceitá-la, o indivíduo que solicitou o empréstimo nada tem a reclamar. Por muito tempo (teoricamente, para sempre) seria possível continuar retirando cinco por cento do valor emprestado sem qualquer peso na consciência.

Agora, suponhamos que esse homem o procure e diga: "Conheço o caso de um senhor de meia idade subitamente acometido por terrível doença. Um tratamento médico que custa mil libras esterlinas salvará sua vida, mas ele nunca mais poderá exercer qualquer trabalho. Ele recebe uma pensão de 100 libras ao ano, que garantirá sua subsistência após a operação e o tratamento subsequente. O senhor emprestará as mil libras? Elas serão devolvidas na ocasião de sua morte, por conta de um seguro de vida no valor de mil libras." Sua resposta: "Emprestarei as mil libras para salvar sua vida, mas exijo metade da pensão anual, ou seja, 50 libras ao ano, por cada ano que ele ainda venha a viver; e ele terá de sobreviver como puder com as 50 libras restantes da pensão." Caso ainda lhe restasse alguma sensibilidade, essa proposta o faria sentir-se um patife, e caso contrário – tendo-se tornado um, de fato, pela ação do que foi chamado pelo poeta de "longas jornadas de endurecimento e decadência da alma" – ainda assim seria uma atitude abjeta, embora não lhe causasse a menor inquietude.

Parece, portanto, que certas condições permitem, de forma legítima e moral, emprestar mil libras com cinco por cento de juros mantendo perfeita paz com a própria consciência, e outras não.

Vejamos agora a questão sob outra perspectiva.

Quando a cidade norte-americana de Boston foi fundada, há trezentos anos, um homem de Londres que se propôs a para lá emigrar deixou uma quantidade de ouro no valor de mil libras esterlinas aos cuidados de um ourives londrino permitindo que fizesse uso do dinheiro até que ele ou seus herdeiros o reclamassem, mas com a condição de que cinco por cento do capital deveria render juros compostos até a retirada. O emigrante não retornou. Com o avanço do século XVII, o empreendimento se desenvolveu, assim como muitos outros, em uma espécie de banco. No início do século XVIII, já era um banco em plena forma, e seu sucessor atual faz parte de um dos maiores sistemas bancários de nossos tempos. O depósito original "rendeu frutos", como se costuma dizer, com a dívida se acumulando sem ninguém para reivindicá-la.

Por fim, neste ano de 1931, eis que surge um herdeiro capaz de comprovar seu direito. A soma de capital alcançada pelo modesto investimento de mil libras a cinco por cento deve ser paga a ele por ordem judicial. Consegue imaginar o montante alcançado? – Mais do que o dobro da receita anual dos Estados Unidos na atualidade.

Tomemos um exemplo menos extravagante e talvez mais convincente. Supondo que um homem tenha emprestado dez mil libras esterlinas em regime de hipoteca, com juros de seis por cento, sobre a propriedade de um senhor inglês no início da Guerra da Independência dos Estados Unidos, em 1776: tal propriedade renderia 600 libras por ano ao credor. A dívida não foi cobrada. O constrangido senhor teve permissão para adicionar ao valor principal os pagamentos anuais devidos, de forma que o total fosse acrescido da taxa de juros compostos de seis por cento.

Não se trata de uma suposição de todo impossível. Imagina o que o credor da hipoteca poderia exigir da propriedade nos dias de hoje? Quase cinco milhões de libras ao ano!

Nenhum desses exemplos poderia ocorrer na prática, uma vez que a lei proíbe acumulação tão prolongada. Mas o próprio fato de que a lei viu-se obrigada a aplicar tal proibição comprova haver algo de errado com a noção atual, aplicada de forma generalizada, de que o dinheiro "faz jus" a determinada taxa de juros, tendo a ela direito moral, independentemente da forma como o capital seja empregado.

Pois o que há de comum a todos esses exemplos é o fato evidente de que os juros sobre um empréstimo podem constituir, sob certas circunstâncias de tempo ou extensão, uma exigência de tributação impossível. Podem representar em determinado contexto um tributo moralmente indevido, que não traduz produção extra de riquezas gerada pelo investimento original. Sob certas condições, os valores exigidos não equivalem mais o fruto do investimento original, não correspondendo, portanto, à remuneração de parte dos lucros, mas sim a um pagamento a ser feito, se possível, a partir de quaisquer outros bens que o devedor possa obter. E esse tributo, além de certo ponto, torna-se mesmo impagável, devido à inexistência na sociedade dos meios suficientes para tanto.

Que circunstâncias são essas? Que condições distinguem a exigência de juros moralmente legítima da ilegítima?

A distinção se dá entre a cobrança moral de parte dos frutos de um empréstimo produtivo e a exigência imoral de (1) juros sobre um empréstimo improdutivo ou (2) juros superiores ao incremento anual em riquezas efetivas geradas por um empréstimo produtivo. Tal exigência "esgota" – "consome" – "exaure" as riquezas do devedor, sendo por isso denominada "Usura". Uma derivação imprecisa em termos filológicos, mas correta sob o ponto de vista moral, conecta o termo latino "usura" à idéia de destruir, "exaurir", e não à idéia original do termo "usus," "uso".

A Usura, portanto, é a cobrança de juros sobre um empréstimo improdutivo ou de juros superiores ao incremento real gerado por um empréstimo produtivo. É a exigência de algo ao qual o credor não tem direito, como se eu dissesse: "Pague-me dez sacas de trigo ao ano pelo aluguel destes campos", após os campos terem sido tragados pelo mar ou terem passado a produzir anualmente muito menos do que as dez sacas de trigo.

Devo, com relutância, introduzir aqui um significado coloquial do termo "Usura" que confunde o raciocínio. As pessoas falam de "juros usurários" referindo-se a juros muito elevados. A forma como surgiu essa confusão é elementar. Juros muito elevados são geralmente superiores à riqueza real produzida até mesmo por um empréstimo produtivo, e cobrá-los significa, de fato, cobrar mais do que a produção do empréstimo original; mas não há nada na taxa de juros per se que a torne usurária. É possível cobrar juros de cem por cento sobre um empréstimo e estar em pleno exercício de seus direitos morais.

Por exemplo, uma pequena área de mineração que produzia 15 kg de ouro por ano tem a súbita oportunidade de produzir 200 vezes essa quantidade – 3.000 kg – com a obtenção do capital equivalente a apenas 30 kg para desenvolvimento. O credor desse novo capital não tem a obrigação moral de ceder ao devedor, como presente, os lucros imensamente maiores. É legítimo que reivindique sua parte; ele poderia muito bem exigir metade da nova produção, ou seja, 1.500 kg ao ano, 500 por cento sobre o empréstimo, pois esses juros altos corresponderiam apenas à metade da nova riqueza produzida. A demanda desses 500 por cento não representaria cobrança de tributo sobre riqueza inexistente, nem sobre riqueza que não foi criada pelo capital investido.

Portanto, a rigor a Usura nada tem a ver com o valor dos juros cobrados, mas sim com o fato de haver ou não um incremento produzido pelo capital investido que seja pelo menos igual ao tributo exigido.

Caso seja necessário avalizar uma posição moral tão evidente, esse aval pode ser encontrado em todos os principais sistemas morais sancionados pelas filosofias religiosas e sociais permanentes adotadas pela humanidade. Aristóteles1 a proíbe, assim como São Tomás de Aquino. O sistema ético muçulmano a condena [e, na prática, faz uma condenação ininteligível, ao proibir muitos empréstimos que seriam úteis]2. Temos, em particular, a brilhante decisão do Quarto Concílio de Latrão [1215].

Tudo certo até este ponto. Vejamos agora o desenvolvimento muito interessante que se deu nos tempos modernos, desde o rompimento de nosso sistema moral e religioso comum europeu, com a Reforma Protestante. Após esse desastre, a Usura passou a ser gradualmente admitida. Tornou-se prática comum sancionada pela legislação, com pagamento imposto pela magistratura civil. Na Inglaterra, foi sob o reinado de Cecil, no ano de 1571, que os juros, embora limitados a dez por cento, tornaram-se legais, independentemente da utilização do empréstimo. O ano de nascimento do que se pode chamar "Usura Indiscriminada" foi 1609, quando, sob o Calvinismo, o Banco de Amsterdã iniciou sua próspera carreira em estimular a capacidade dos afortunados e arruinar os desafortunados. De forma geral, os governos que se desligaram da unidade representada pela Cristandade introduziram, um após o outro, a Usura legalizada, obtendo vantagem sobre as nações conservadoras que se empenhavam em manter o antigo código moral. Às novas ideias morais, ou melhor, imorais assim introduzidas, devemos o rápido desenvolvimento do sistema bancário nas nações "reformadas", bem como o controle financeiro que adquiriram e mantiveram por três séculos. Por fim, todos se adequaram ao novo sistema, e hoje a Usura atua lado a lado com o lucro legítimo e, confundida com ele, universalizou-se no que já foi a civilização Cristã. É ponto pacífico que todo empréstimo deve produzir juros, sem questionamento quanto ao seu caráter produtivo ou improdutivo. Todo o aspecto financeiro de nossa civilização ainda se baseia nesse falso conceito. [ênfase acrescentada]

Seria possível escrever um ensaio muito interessante sobre os mais recentes frutos de tal concepção em nossos tempos. Se porventura viesse a ser escrito, um bom título seria "O fim do reinado da Usura". Afinal, vem-se tornando muito claro que o vício inerente ao sistema responsável, tempos atrás, pela derrocada da estrutura social do Império Romano começa a fazer ruir também nossas transações financeiras internacionais. Contudo, com a seguinte diferença: eles foram arruinados pela Usura particular e nós, pela pública.

Mas essas são digressões; voltemos ao assunto. Sendo a Usura uma demanda por dinheiro inexistente (um tributo cobrado não sobre a produção de capital, mas sobre uma margem superior a tal produção, ou mesmo sem que haja produção alguma) e, uma vez admitida em caráter universal, constituindo, de início, um mecanismo para a total concentração das riquezas nas mãos dos credores e, por fim, para a redução do restante da comunidade à servidão econômica; sendo a Usura, em última análise, um sistema fadado a ruir sob seu próprio peso – quando a demanda gerada for superior a toda a capacidade produtiva – surge o questionamento: por que vem sendo praticada com sucesso há tanto tempo? Por que parece estar nas origens de um progresso produtivo tão vasto em todo o mundo?

Ninguém poderá negar seu uso bem-sucedido ao longo de tantas gerações, desde seu sólido estabelecimento como prática generalizada durante o século XVII. Nem seria possível negar que vem acompanhando (e acredito ter, em ampla medida, causado) a grande expansão moderna da produção. E surge aqui uma daquelas aparentes contradições entre uma verdade matemática direta e os resultados de sua negação na prática, tão comuns na vida real. Convencida por tais aparências (pois tratam-se apenas de aparências, e enganadoras), a maioria dos homens abandona a reflexão abstrata e se satisfaz com o resultado prático. É por conta disso que, mesmo após tanto tempo, a simples menção da palavra “Usura” e o debate de sua ética traz em si a impressão de algo ridículo.

Há não muito tempo, qualquer pessoa diria que a atitude adotada aqui significaria escrever o próprio atestado de loucura. As conclusões de qualquer raciocínio lógico sobre o assunto simplesmente não eram levadas em conta, mas sim repelidas como noções imperfeitas, características de épocas primitivas e acríticas, quando o homem ainda não dominava a economia ou qualquer outra ciência.

O número crescente, embora ainda restrito, de homens instruídos que passam a suspeitar de tal desprezo pelo passado imemorial e pelas tradições morais da Cristandade retira dessas objeções parte do peso que tinham na geração anterior; ainda assim, elas exercem peso esmagador sobre a maioria. Diante da afirmação de que "a Usura é errada" ou mesmo de que "a Usura é perigosa", ou apenas de que "a Usura, a longo prazo, entrará em colapso", a grande maioria, ainda hoje, se recusará a discutir o assunto. A maioria dos desatentos e todos os tolos o incluirão entre os defensores da teoria de que a Terra é plana.

O erro é deles, e não nosso; ainda assim, o erro deles, como afirmei, possui sólido embasamento prático, pois a Usura tem funcionado. A produtividade aumentou consideravelmente desde seu estabelecimento. Os três últimos séculos foram de imensa expansão, liderada precisamente pelos primeiros a abolir a moral Cristã.

Como explicar esse fato? A explicação consiste em três reflexões: primeiro, quando a Usura é permitida e aplicada em caráter universal, torna-se simples parte de uma atividade geral de acumulação de capital para fins de investimento. Na época em que a Usura era ilegal e passível de punição, esse tipo de acumulação não era possível. Por acaso, era também uma época em que a produção de riqueza em escala crescente não representava a finalidade última da existência humana. De qualquer modo, sob o ponto de vista exclusivamente econômico, o fim dos questionamentos sobre a forma como o capital seria usado e o estabelecimento da regra de que todo o capital faz jus ao recebimento de juros, independentemente de como seja investido, logicamente criaram a tendência de acúmulo mais rápido e, incidentalmente, a avidez dos homens pela busca de oportunidades para fazer empréstimos, tanto produtivos quanto improdutivos.

Ao mesmo tempo, embora as causas fossem outras, veio o aumento do poder do homem sobre a natureza, com uma curva de crescimento cada vez mais acentuada e talvez ainda em progressão – embora haja sinais de fadiga e interferência de causas externas ao campo da economia nesse processo, a despeito da rápida escalada do conhecimento científico e da sua aplicação econômica. Esse aumento em nosso poder sobre a natureza é o segundo fator de mascaramento da falsa ação da Usura por tanto tempo. O mal econômico da Usura estimulou e acompanhou a grande vantagem econômica da acumulação para Produção, e a oportunidade para esse uso legítimo do dinheiro originou-se de um afluxo de descobertas geográficas e de novas conquistas das Ciências da Natureza. O terceiro motivo pelo qual a Usura ainda não concretizou seu total efeito nefasto é que, há tempos, tal efeito vem sendo detido automaticamente por repetidos colapsos que anularam as reivindicações usurárias. O capital de empréstimos improdutivos deixou de receber seus tributos, que tiveram de ser cancelados. Verdade seja dita, a Usura sobre esse tipo de capital é geralmente a última a ser cancelada 3; ainda assim, tal cancelamento se dá de forma contínua, promovendo a restrição intermitente dos tributos imerecidos e impedindo que o verdadeiro caráter de tais tributos se mostre em sua máxima potência.

O século XIX, especificamente, e ainda mais o início do século XX, estão repletos de exemplos desses colapsos – um sem-número deles. Uma soma em dinheiro é investida em determinada empresa. A empresa não atende às expectativas. Embora o dinheiro não produza mais juros legítimos, são emitidos debêntures, com garantia de juros estritamente usurários. Esses juros são pagos por algum tempo, até que, por fim, chega-se a um ponto em que nem mesmo os juros da debênture podem ser pagos. Todo o negócio se desfaz e o tributo usurário não pode mais ser exigido. É possível ver esse processo em funcionamento hoje em muitos setores da indústria têxtil. A fábrica está em dificuldade; o banco concede um empréstimo com a atribuição de juros, embora não haja superávit de riqueza em relação ao custo da produção. Os juros são pagos a partir de fontes externas; mas o processo não pode continuar eternamente e, em dado momento, o banco tem de cancelar o empréstimo como dívida incobrável. Como o banco continua a extrair recursos de outros investimentos bem-sucedidos e lucrativos, prossegue próspero a gerar dinheiro, sua receita aumenta, e a parte perdida por conta do colapso da Usura é ocultada no esquema produtivo geral. Não se faz distinção entre o caráter usurário de determinados recebimentos e o caráter legítimo da maioria. Mas, quando uma sociedade exibe sinais de decadência econômica, a verdadeira natureza da Usura, submersa e oculta nos tempos de prosperidade, fatalmente emerge acima da superfície.

Há muitos anos, o Sr. Orage, escrevendo em seu jornal, The New Age, traçou a esse respeito um dos muitos quadros ilustrativos e vívidos da questão, com o talento para a exposição que o tornou famoso. Ele partiu do exemplo de um oásis de palmeiras no deserto com um suprimento de água alcançado por meios bastante primitivos. Eis que surge um financiador disposto a emprestar dinheiro para o desenvolvimento. O capital é empregado de forma produtiva; poços artesianos são perfurados; o suprimento de água aumenta em grande escala; instaura-se maior organização do cultivo de palmeiras; a produção do oásis cresce com rapidez de um ano para outro; a demanda legítima de lucros pelo financiador faz parte do total de riqueza extra anual, cuja existência se deve ao seu empreendimento. Todos participam da prosperidade geral.

Então, seja devido a desgaste, guerra, epidemia, variações no mercado externo ou alguma calamidade climática, as coisas começam a dar errado. A riqueza produzida anualmente pelo oásis decai. Contudo, ainda é preciso pagar os juros sobre o dinheiro emprestado. À medida que aumenta o constrangimento dos agricultores, eles contraem empréstimos para pagar os juros até um ponto de "sobreposição" em que, paradoxalmente, o banqueiro parece cada vez mais próspero, embora a comunidade que o sustenta o seja cada vez menos. Mas, pela simples aritmética, o processo precisa ter um fim. Chegará o momento em que o agricultor não mais conseguirá obter dinheiro para pagar os juros, que há muito deixaram de ser moralmente devidos. A mera coerção, sob um sistema policial todo-poderoso, já lhe arrancou até os últimos centavos. A "sobreposição" entre prosperidade real e aparente – apenas financeira ou burocrática – deixa de existir; e a riqueza temporária desfrutada pelo credor chega ao fim, tal como ocorrera com a prosperidade real do devedor.

Em outras palavras, a grande prosperidade bancária em determinado período pode ser, e geralmente é, prova da prosperidade geral naquele período; mas não necessariamente, e nem sempre é assim. Uma não é o complemento inevitável da outra.

A essas conclusões gerais, há outra objeção que será feita prontamente por qualquer pessoa com razoável conhecimento histórico:

"O senhor afirma" [diz o objetor] "que em outros tempos, quando a Fé tinha alcance universal – época que talvez o senhor considere mais sadia, embora houvesse certamente muito menos riqueza e fosse preciso lidar com uma população, além de mais simples, muito menor – a Usura era proibida. Isso é verdade. Porém, o senhor erra ao argumentar que existe uma diferença essencial entre aquela época e a nossa, mais exatamente em relação ao passado recente, que o senhor denomina “o reino da Usura”, com a prevalência de uma ética diferenciada em cada um desses períodos. O senhor confunde o que é proibido com o que não é feito. É verdade que o código moral da Cristandade em tempos Católicos proibia a Usura e a punia; até mesmo na época das Cartas Provinciais de Pascal, os homens sentiam indignação moral para com a Usura e, até o final do século XVIII, a punição continuava a ser exercida nos tribunais e a vigorar nos códigos legais onde quer que a Igreja detivesse poder. Mas, a bem da verdade, a Usura sempre existiu, pois sempre deverá existir. É impossível traçar uma linha divisória entre os empréstimos produtivos e os improdutivos. O dinheiro emprestado a um doente pode criar as condições para que ele volte a ser produtivo, sendo considerado, portanto, um empréstimo indiretamente produtivo, apesar da intenção originalmente improdutiva. O valor de um empréstimo contraído por um perdulário para seus prazeres pode, no evento de sua morte antes que tivesse tempo de gastá-lo, ser transferido a um herdeiro econômico, que irá investi-lo de forma produtiva. Tais considerações sempre exerceram forte influência sobre a mente humana. Por isso encontramos a Usura amplamente disseminada, mesmo em épocas e sociedades que a condenavam sob o ponto de vista moral.

"Além do mais, mesmo naqueles casos onde é possível [o que certamente não é a regra] traçar uma linha exata entre os empréstimos produtivos e os improdutivos, há inúmeras formas de se burlar a proibição de cobrar juros sobre um empréstimo improdutivo, evadindo-se ao dever de descobrir se o empréstimo é produtivo ou não. Por exemplo, os governos Católicos, tanto quanto os Protestantes, emitiam os que os franceses denominaram “Rentes” – compromissos governamentais de pagamento de renda anual. Henrique IV da França, após sua conversão, era especialmente ativo nesse tipo de empréstimo. Filipe II da Espanha, o grande defensor do Catolicismo, afundou-se até o pescoço em constrangimento por tomar empréstimos a juros altos – ironicamente, das mesmas pessoas que vinham destruindo sua renda. Um governo preparando-se para ir à guerra – ou seja, prestes a gastar dinheiro em uma atividade normalmente improdutiva – implorava aos financiadores que comprassem direitos anuais sobre sua receita; e não existe qualquer diferença entre isso e a prática moderna de emissão de títulos da dívida pública. Havia ainda o óbvio método de assinar uma nota promissória em troca de dinheiro e receber uma soma menor do que a mencionada. Thomas Cromwell, de piedosa memória, foi adepto incondicional dessa prática, em uma época na qual toda a moralidade Católica em relação à Usura ainda era incontestável. Muito antes, em plena Idade Média, os príncipes tomavam empréstimos constantes para suas guerras – principalmente do recém-surgido sistema bancário italiano; e ainda antes, quando a Usura era privilégio excepcional, mas concedido legalmente aos judeus, e fonte de imensa renda para os príncipes Cristãos sob os quais viviam, a prática era admitida abertamente. Assim, a Usura sempre ocorreu na sociedade humana. E sempre ocorrerá; toda discussão sobre o assunto é meramente acadêmica e fútil."

A isso, respondo que o raciocínio lógico sobre assuntos práticos jamais é fútil. Se eu afirmar que o consumo excessivo de álcool faz mal à constituição física do ser humano, especialmente após certa idade, não é resposta satisfatória apresentar-me exemplos de alcoólatras que viveram até os noventa anos. O efeito danoso do excesso de álcool é algo demonstrável e, para qualquer pessoa de mente honesta, inquestionável. É uma simples questão de submeter à razão a experimentação e a experiência. Nos casos em que a experiência parece contradizer conclusões verdadeiras, o que de fato contradiz tais conclusões são outras forças, que não esvaziam seu caráter de verdade. [ênfase acrescentada]

O mesmo se dá com a verdade sobre a Usura. Seus efeitos empobrecedores, enquanto mascarados ou contrabalançados pela atuação de forças mais potentes, são negligenciados. No entanto, continuam a existir e estão sempre em atividade. Há grande utilidade prática em saber da existência de uma verdade, mesmo que oculta. Esse conhecimento é algo a ser mantido como um trunfo para permitir a ação quando chegar o momento crítico de sua aplicação.

Em seguida, é preciso apontar que existe toda a diferença do mundo entre um sistema que admite um princípio imoral e outro que nega tal princípio, embora a imoralidade seja praticada. Estão presentes na sociedade, e provavelmente sempre estarão inúmeros casos de adultério, assassinato, fraude e tudo o mais; contudo, existe enorme diferença entre a sociedade onde os direitos à propriedade são admitidos, o casamento é sagrado e tirar uma vida humana é abominável, e outra onde as relações sexuais são promíscuas, o Comunismo prevalece ou o assassinato para fins de vingança particular ou por mero impulso constitui passatempo aceitável. Assassinar um desafeto, fugir com a esposa do vizinho e até mesmo bater a carteira de alguém ainda estão entre as anomalias da nossa sociedade: anomalias que nós, pessoas antiquadas, atribuímos à Queda do Homem, mas cuja ocorrência nem o mais entusiástico pelagiano poderá negar. Existe toda a diferença do mundo entre uma sociedade onde esses lapsos continuam a existir, ou mesmo são tolerados, e outra onde são considerados positivos. [ênfase acrescentada]

O homem se sustenta sobre duas pernas, mas pode apoiar-se em uma ou em outra. Assim (para utilizar um exemplo que desenvolvo em outro ensaio), a sociedade, no que se refere à lei, precisa insistir tanto na justiça quanto na ordem; e, sem dúvida, em qualquer sociedade civilizada a justiça tende a ser sacrificada em benefício da ordem. Mas existe toda a diferença do mundo entre o ambiente e o caráter de uma sociedade onde a injustiça é considerada mais abominável do que a desordem e outra onde a desordem é considerada mais abominável do que a injustiça. Duas partes de um elemento químico para quatro partes de outro resultarão em determinado produto. Alterando-se as proporções, surgirá um produto inteiramente diferente. Uma sociedade em que a Usura, embora praticada, é considerada imoral (não totalmente, admito, para benefício do desenvolvimento econômico) é muito diferente de outra onde é considerada moral. Uma sociedade onde o credor considera seu dever moral examinar o objetivo de um empréstimo antes de levar em conta seu lucro pessoal é diferente de outra onde não se espera que ele faça tal coisa. Um mundo onde os juros sobre empréstimos improdutivos são repudiados e o Usurário é um malfeitor constitui sociedade muito distinta de outra onde os homens deixaram de questionar se um empréstimo irá ou não gerar lucro; e, ademais, é diferente de outra como a nossa, onde juros sobre qualquer empréstimo são exigidos como uma espécie de direito moral sagrado, sem qualquer relação com a produtividade do empréstimo – ou a ausência dela.

Bem, como para todo mal deve haver um remédio, o que podemos dizer da Usura nos tempos atuais? Como insisto em esta discussão tem o caráter prático, e quanto à prática?

Suponhamos que nosso oponente tenha sido convencido; deixemo-no replicar: "Concordo que a Usura seja um mal. E mais, estou inclinado a concordar que, por fim, começamos a perceber seus efeitos nefastos em todo o mundo – principalmente pelo assustador exemplo dos empréstimos da Grande Guerra. Então, o que devemos fazer a respeito?"

A isso, respondo, por minha vez, que não se pode fazer nada de imediato. Não se pode eliminar uma parte essencial de qualquer estrutura social existente. Todo o mundo de hoje se assenta sobre a estrutura bancária, e todo o sistema de investimentos considera normalmente impossível qualquer consulta sobre o caráter produtivo ou improdutivo de um investimento.

Há casos especiais, de cunho particular, onde se pode fazer a distinção claramente, e nesses casos verifica-se a ação dos homens de bem (como no caso dos empréstimos a indivíduos do nosso círculo de conhecimentos), pois a consciência humana atua em todos os momentos, ainda que na sociedade mais corrupta e complexa. Mas, em noventa e nove por cento dos casos, é impossível fazer essa distinção. Um homem se sacrifica para economizar. Ele precisa aplicar suas economias em um sistema que considera normal a cobrança de juros sem qualquer análise, e onde todos os infinitos detalhes de um sistema mundial de produção, distribuição e intercâmbio se baseiam há tanto tempo na aceitação da Usura – bem como no cálculo muito mais amplo dos lucros legítimos – que, na prática, não é mais possível distingui-los, assim como seria impossível separar as cores no tonel de um tintureiro. Se eu me ausentar por seis meses e deixar dinheiro depositado no banco, dificilmente poderei perguntar o que o banco fará com ele; e, mesmo que o fizesse, eles não me poderiam dizer. Ninguém poderia afirmar qual a parte destinada a alimentar animais em uma fazenda de extração de peles no Canadá; quanto se destinaria a um jovem que vem fazendo grandes retiradas com suas ações e gastando tudo em uma vida desregrada; e quanto contribuiria para o desenvolvimento de uma mina produtiva nos Andes. Que homem, em sã consciência, hesitaria em depositar o resultado de sua abnegação cotidiana em um título de renda fixa, ou suas modestas mil libras esterlinas em um Empréstimo de Guerra – esse exemplo gritante de Usura? O sistema precisa prosseguir até seu colapso, e mesmo a palavra “colapso” é imprecisa. Se a história servir como guia, o termo certo será “decadência”. Um pensamento animador.

Fiz bem em chamar este livro de Ensaios de um Católico, em vez de Ensaios Católicos. Pois, caso se tornasse uma questão de disciplina Católica que os homens de hoje não se envolvessem nessa prática impura – o empréstimo improdutivo com cobrança de juros – tal disciplina já nasceria condenada. Não seria possível obedecer à ordem eclesiástica. Se, ao propor tal análise, eu envolvesse também meus companheiros Católicos nas conclusões peculiares alcançadas, causaria prejuízo não apenas ao senso comum de meus confrades, mas também ao seu senso de humor.

Todavia, como já previu um perfumista ao batizar sua fragrância, "Un jour viendra" – "Chegará um dia".

O Sr. Belloc encerrou com a mesma frase em grego, mas, como a maioria dos navegadores não tem instalados caracteres em grego antigo, excluí a última linha do ensaio para evitar que aparecessem caracteres sem sentido.

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1. Quando eu, ainda garoto em Oxford, começava a articular minhas ideias, um sábio professor nos assegurou em sua preleção que o texto de Aristóteles deve ter sido adulterado, pois ele jamais poderia ter dito algo tão tolo como chamar a usura de errada. Do que São Tomás de Aquino a chamou, aposto que ele nunca soube.
2. Descobri em Túnis, há três anos, que um plantador de oliveiras muçulmano com o propósito de contrair empréstimo para o desenvolvimento de sua propriedade não podia obter o dinheiro de outros muçulmanos, mas precisava pedi-lo aos europeus. 
3. Vide os juros continuados ainda pagos sobre créditos bancários por nossas indústrias falidas. Outro excelente exemplo de cancelamento de juros usurários é a redução das dívidas da França e da Itália para com os Estados Unidos.

Extraído de ESSAYS OF A CATHOLIC, TAN Books, publicado originalmente em 1931.

05/03/2010

Ludwig von Mises contra Jesus Cristo, o Evangelho e a Igreja: (Carta aberta a Tom Woods)

TRADUÇÃO DE GUILHERME FERREIRA DE ARAÚJO

Christopher A. Ferrara[1]

 

Nota do blogueiro – Caros leitores, este texto destroi toda a estatura intelectual de von Mises. Mostra que ele é, como intelectual, um charlatão. Não porque ele fale mal de Nosso Senhor Jesus Cristo (disso ele já deve ter dado conta ao Altíssimo) e dos apóstolos, mas porque demonstra, na melhor das hipóteses, desconhecer toda a história do cristianismo e de como ele criou a Civilização Ocidental. Suas afirmações no livro Socialismo são grotescas. O texto mostra também a situação lamentável em que se encontra Tom Woods, autor de um livro recentemente publicado pela Quadrante. Mostra o que o liberalismo pode fazer com um ser humano. Veja também Expondo as Perigosas Premissas dos Economistas Liberais.

 

Caro Tom:

Quando nós escrevemos A Grande Fachada, em 2002, eu era um dos defensores mais ardentes do seu trabalho. Na verdade, via você como um importante elemento para o futuro do movimento “tradicionalista” nos Estados Unidos. Eu não previa sua dissidência pública da doutrina social da Igreja, em benefício da “Escola austríaca” de Economia – radicalmente laissez faire –, cujas pretensões vão muito além da economia até uma abrangente “filosofia da liberdade” que não pode ser ajustada ao ensinamento do Magistério a respeito dos deveres dos homens e das sociedades com respeito a Cristo e Sua Igreja, ou até mesmo aos deveres dos homens uns com os outros no nível da justiça natural. Também não previa que se tornaria um “professor residente” do Instituto Ludwig Von Mises, um grupo libertário radical dedicado ao pensamento de von Mises e seu discípulo “anarco-capitalista”, Murray Rothbard, ambos liberais agnósticos que rejeitaram completamente o papel da Igreja e do Evangelho na constituição da ordem social.

Sua dissidência da doutrina social produziu, da parte de respeitáveis comentadores católicos, uma multidão de artigos contra você, como os que podem ser encontrados aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui, sendo o último uma série recém publicada em cinco partes na revista Chronicles sob o título “É Tomas Woods um dissidente?”. Até o momento, pelas minhas contas, não menos de doze estudiosos católicos denunciaram sua dissidência do ensinamento do Magistério com relação a princípios básicos tais como salário justo, primazia moral do trabalho sobre o capital, pecado da usura e da extorsão pelos preços, imoralidade do dito “direito absoluto” à propriedade privada e a necessidade de um governo guiado pela lei divina e natural, para o governo dos homens decaídos. (Recentemente você até começou a promover a fantasia “anarco-capitalista” da abolição de todos os governos e da criação de uma “sociedade sem estado.”)

O ponto central de A Grande Fachada era que os católicos “tradicionalistas” não dissentem da doutrina Católica enquanto tal, mas antes apenas exercitam seu direito a prescindir de certas novidades litúrgicas e pastorais desconhecidas na Igreja antes da década de 1960 e nunca impostas aos fiéis como obrigações comprometedoras da nossa religião. Por exemplo, a proclamação histórica do papa Bento XVI de que a Missa tradicional em latim “nunca foi ab-rogada” e de que “em princípio foi sempre permitida” demonstrou a verdade da reivindicação básica do livro. Mas lá estava você, Tom, nos meses seguintes à publicação de nosso livro, declarando sua dissensão do ensinamento a respeito da fé e da moral claramente enunciado como obrigatório por numerosos papas que ensinaram sobre a justiça no mercado e a reta ordenação do Estado.

E visto que foi o livro mesmo do qual fomos co-autores, juntamente com o seu mandato no The Remnant e no periódico The Latin Mass, que lhe deram proeminência como um tradicionalista em primeiro lugar, você dificilmente poderia esperar que seus ex-colegas permanecessem em silêncio à medida que você continuava sua torrente de pronunciamentos contra o ensinamento papal, incluindo o comentário descarado de que a “tentativa dos papas de elevar princípios como os de ‘salário justo’ ao nível de doutrina obrigatória é algo completamente diferente, e na verdade está carregada de erros” – não uma afirmação esporádica, mas algo que você repetiu mais tarde em publicação, no seu muito criticado A Igreja e o Mercado (p. 79). Você não reconhece a completa audácia que há em um recém-convertido pretender dar conferências a católicos de berço a respeito dos “erros” dos ensinamentos da Igreja afirmados por papa após papa durante séculos?

Ora, uma coisa, Tom, é você expressar sua opinião – sua errante opinião – de que ao se pronunciarem em matéria de economia e justiça social os papas excederam o que você considera serem os limites de sua competência, ainda que os próprios papas, respondendo a dissidentes como você, tenham insistido em seu direito e dever de se pronunciar precisamente a respeito desses assuntos. Mas é algo completamente diferente alegar, como você o faz, que você está exercitando legítima liberdade na Igreja – não, você não está – e, muito pior, engajar-se numa campanha para persuadir católicos de que aquilo que seu instituto prega – uma forma de liberalismo social e econômico condenada por uma extensa linhagem de papas (cf. a encíclica Ubi Arcano Dei, de Pio XI, n.61) – é “perfeitamente compatível” com o Catolicismo Romano tradicional. Essa propaganda encontrou até mesmo o caminho na direção de um promissor – sob outros aspectos – novo periódico, “O Tradicionalista”, cujo número inaugural incluiu um anúncio de página inteira em homenagem a von Mises, cuja dogmática visão de mundo anti-cristã está evidente nas citações mostradas abaixo.

Num artigo que mencionava as circunstâncias de nossa discussão por causa de sua dissensão da doutrina social e de sua cooperação pós-Grande Fachada com o Southern Poverty Law Center e sua caça às bruxas aos católicos tradicionalistas (incluindo eu mesmo), eu aludi a algumas das opiniões ultrajantes de Rothbard, que defende não apenas o aborto legalizado, a prostituição, o uso de drogas, o suborno e a extorsão, mas também o direito legal de matar de fome crianças não desejadas, em favor do qual ele argumentou num livro que seu Instituto vende para o mundo como um “clássico da liberdade”. E você, Tom, escreveu em louvor ao mesmo livro sem mencionar suas afirmações morais depravadas, declarando apenas que “Rothbard descreve as implicações filosóficas da idéia de propriedade de si mesmo” – uma idéia que está em conflito com o próprio fato de ser o homem uma criatura de Deus. Você também nunca mencionou o repetido elogio de Rothbard ao que o conjunto do trabalho dele aclama como sendo “a subversão da Antiga Ordem... por meio de uma ação libertária em massa que estourou em grandes revoluções do Ocidente tais como a Americana e a Francesa, realizando as glórias da Revolução Industrial e os avanços da liberdade...”

Por essa razão, Tom, eu nunca vi você criticar o ataque de Rothbard ao “integrismo” católico – sim, ele usou exatamente aquela palavra, aquele perfeito insulto aos católicos romanos tradicionais em decorrência do qual você e eu escrevemos A Grande Fachada para atacar. Lembra-se? Naquele artigo em particular, Rothbard imperiosamente depreciou “o ódio da Igreja ao liberalismo em geral, do qual ela deriva seu ataque ao liberalismo econômico...” No mesmo artigo, seu mentor descreveu o marco que foi a encíclica social Quadragesimo anno, de Pio XI, como virulentamente anti-capitalista e, para dizer a verdade, pró-fascista. “Essa tendência fascista é revelada pelos rumos do catolicismo europeu no período entre guerras...” Seu mentor chamou o papa Pio XI de fascista, Tom. Mas então, você também amontoou críticas à Quadragesimo – baseando-se em seu estudo informal de economia, um campo no qual você não possui nenhum título ou outra credencial reconhecida. (Na verdade, antes de você ter-se incorporado ao Instituto você ensinou história numa faculdade pública.)

Aqui eu desejo chamar a atenção dos católicos para as concepções igualmente Cristofóbicas e anti-católicas de von Mises, recentemente expostas num debate online em angelqueen.org, num tópico chamado “Desmascarando a Escola Austríaca”. Essas idéias aparecem no livro Socialismo, de von Mises, o qual seu Instituto vende como uma “obra-prima” que apresenta “uma crítica de todo o aparato intelectual que acompanha o pensamento socialista, incluindo as doutrinas religiosas implícitas por trás do pensamento socialista ocidental...”

Nas treze citações abaixo, do capítulo 29 de Socialismo, von Mises ataca Cristo, os Evangelhos e a Igreja como sendo inimigos da liberdade e da sociedade e instigadores do socialismo e da escravidão, chama o Cristianismo de “religião do ódio”, e declara que a Igreja tem de se reformar cingindo-se ao liberalismo e ao capitalismo. Todas as citações aparecem online aqui, que é onde o católico que deu origem ao tópico em angelqueen.org (alguém com o pseudônimo de GordonG) as encontrou.

Tom, uma vez que você rejeitou todos os pedidos privados relativos à sua campanha para fazer avançar o libertarianismo radical dentro da Igreja e particularmente entre os tradicionalistas, nós que uma vez promovemos seu trabalho nos sentimos obrigados a protestar publicamente contra o que você está fazendo e a exigir que você se retifique pela confusão que está causando.

Porque você tem um dever perante Deus – como um membro da Igreja confirmado (se bem que um membro um tanto novo) – de denunciar e repudiar categoricamente as seguintes citações do livro de von Mises, e de romper seus laços com o Instituto que promove sua (e de Rothbard) ideologia da “liberdade” anti-católica, Cristofóbica e, de fato, imoral.

Ademais, é tempo de parar de fingir, como você tem feito por anos, que a controvérsia que suas próprias palavras e ações têm provocado entre os fiéis seja um debate sobre “economia” ou coisas particulares tais como a sabedoria das leis do salário mínimo. Você se associou a uma organização cujas visões a respeito do homem, da sociedade e da liberdade humana são inimigas da lei do Evangelho. Você deve escolher entre o Magistério e o Instituto Ludwig von Mises, e nenhuma quantidade de sofismas pode esconder a realidade daquela escolha.

Como seu ex-colaborador e colega, e como alguém que admira seus talentos e sabe o que eles poderiam trazer para uma defesa da doutrina social da Igreja em lugar de seus aparentes ataques incessantes contra ela, eu espero que você tome esta carta não como uma provocação, mas como um convite a reconsiderar o caminho que você escolheu, a dar a volta e a se reunir aos seus irmãos na fé.

Atenciosamente,

Christopher A. Ferrara

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LUDWIG VON MISES

CONTRA CRISTO, O EVANGELHO E A IGREJA

Do capítulo 29 de Socialismo (http://mises.org/books/socialism/part4_ch29.aspx )

1. A pregação de Jesus de um Reino vindouro destrói todos os laços sociais:

A expectativa da reorganização por parte do próprio Deus quando chegou o tempo, e a transferência exclusiva de toda ação e pensamento para o futuro reino de Deus tornou o ensinamento de Jesus Cristo completamente negativo. Ele rejeita tudo quanto existe, sem oferecer nada para repô-lo. Ele chega a dissolver todos os laços sociais existentes...

2. Jesus é como os bolcheviques:

...Seu zelo pela destruição dos laços sociais não conhece limites. A força motriz por trás da pureza e do poder de tal completa negação é uma inspiração extática e uma esperança entusiástica de um novo mundo. Daí seu ataque apaixonado a tudo quanto existe. Tudo pode ser destruído porque Deus, em Sua onipotência, vai reconstruir a futura ordem. É desnecessário examinar se alguma coisa pode ser reaproveitada na passagem da velha para a nova ordem, porque essa nova ordem erguer-se-á sem auxílio humano. Ela não demanda de seus partidários, portanto, nenhum sistema ético, nenhuma conduta particular em qualquer direção positiva. Fé, e apenas fé, esperança, expectativa – isso é tudo o que é necessário. Ele [o homem] não precisa contribuir em nada para a reconstrução do futuro, Deus Ele mesmo o sustentou. O mais claro paralelo moderno à atitude do cristianismo primitivo de completa negação é o bolchevismo. Os bolcheviques, igualmente, desejam destruir tudo quanto existe porque eles o consideram algo desesperadamente mau. Mas eles têm em mente planos – por mais indefinidos e contraditórios que eles possam ser – para uma futura ordem social. Eles exigem não apenas que seus seguidores devem destruir tudo quanto exista, mas também que eles adotem uma linha de conduta definida, que conduz em direção ao Reino futuro com o qual eles sonharam. O ensinamento de Jesus a esse respeito, por outro lado, é somente negação.

3. Jesus despreza os ricos, incitando o mundo à violência contra eles e suas propriedades; e Seu ensinamento espalhou “semente maligna”:

Naturalmente, uma coisa está clara e nenhuma interpretação habilidosa pode ocultar isso. As palavras de Jesus estão cheias de rancor contra os ricos, e os Apóstolos não são menos brandos a respeito disso. O Homem Rico é condenado porque ele é rico, o Mendigo é louvado porque ele é pobre. A única razão por que Jesus não declara guerra contra os ricos e não aconselha vingança contra eles é que Deus disse: “A vingança é minha”.

No Reino de Deus os pobres serão ricos, mas os ricos estarão envoltos em sofrimento. Revisores tardios tentaram abrandar as palavras de Cristo contra os ricos, das quais a versão mais completa e vigorosa é encontrada no Evangelho de Lucas, mas resta um bocado suficiente para apoiar aqueles que encorajam o mundo a sentir ódio, a se vingar a assassinar e a queimar os ricos. Até a época do Socialismo moderno nenhum movimento contra a propriedade privada que se originou no mundo cristão falhou em buscar autoridade em Cristo, nos Apóstolos, e nos Padres Cristãos, para não mencionar aqueles que, como Tolstoi, fizeram do ressentimento evangélico contra os ricos o próprio coração e alma de seu ensinamento.

Este é um caso no qual as palavras do Redentor espalharam semente maligna. Mais dano tem sido causado e mais sangue tem sido derramado por conta delas do que pela perseguição aos heréticos e queima das bruxas. Elas sempre tornaram a Igreja indefesa contra todos os movimentos que almejam destruir a sociedade humana...

4. A Igreja, e não o liberalismo Iluminista, abriu caminho para o Socialismo:

…Seria estúpido sustentar que o Iluminismo, ao arruinar gradativamente o sentimento religioso das massas, abriu caminho para o Socialismo. Ao contrário, foi a resistência que a Igreja ofereceu à disseminação das ideais liberais que preparou o solo para o rancor destrutivo do pensamento socialista moderno. A Igreja não apenas não fez nada para extinguir o fogo, mas ela até mesmo tocou fogo na brasa...

5. A doutrina cristã destrói a sociedade, proíbe a preocupação com o sustento e o trabalho, prega o ódio à família e até mesmo endossa a castração:

...É por isso que a doutrina cristã, uma vez separada do contexto no qual Cristo a pregou – expectativa do iminente Reino de Deus –, pode ser extremamente destrutiva. Nunca e em lugar algum um sistema de ética social que abraça a cooperação social poderá ser construído a partir de uma doutrina que proíbe qualquer preocupação com o sustento e o trabalho, enquanto expressa um feroz ressentimento em relação aos ricos, prega o ódio à família e defende a castração voluntária.

6 O Evangelho não desempenhou nenhum papel na construção da civilização ocidental:.

As façanhas culturais da Igreja durante seus séculos de desenvolvimento são [fruto] do trabalho da Igreja, e não do cristianismo. É uma questão aberta quanto desse trabalho se deve à civilização herdada do estado romano e quanto se deve ao conceito de amor cristão, completamente transformado sob a influência dos estóicos e de outros filósofos antigos. A ética social de Jesus não tem papel algum neste desenvolvimento cultural. A realização da Igreja, neste caso, foi torná-las inofensivas, mas sempre por um período limitado de tempo...

7. Porque ela se opõe ao liberalismo, a Igreja é uma inimiga da sociedade:

O destino da civilização está em jogo. Porque não é como se a resistência da Igreja às idéias liberais fosse inofensiva. A Igreja é um poder tão poderoso que sua aversão às forças que trazem a sociedade à existência seria suficiente para quebrar em pedaços toda a nossa cultura. Nas últimas décadas nós testemunhamos com horror sua terrível transformação em um inimigo da sociedade. Pois a Igreja, tanto a Católica quanto a Protestante, não é o menor dos fatores responsáveis pela prevalência de ideais destrutivos no mundo hoje...

8. O liberalismo é superior ao cristianismo e tem restaurado a humanidade por meio da destruição da Igreja, motivo pelo qual a Igreja o odeia:

Historicamente é fácil entender a aversão que a Igreja tem mostrado pela liberdade econômica e pelo liberalismo político sob qualquer forma. O liberalismo é a flor daquele iluminismo racional que desferiu o sopro da morte no regime da antiga Igreja e do qual brotou a crítica histórica moderna. Foi o liberalismo que solapou o poder das classes que por séculos estiveram intimamente ligadas à Igreja. Ele transformou o mundo mais que o cristianismo sempre o fez. Ele devolveu a humanidade ao mundo e à vida. Ele despertou as forças que sacudiram as fundações do tradicionalismo inerte sobre o qual Igreja cria estar repousada. A nova perspectiva provocou na Igreja um enorme mal-estar, e ela ainda não se ajustou até mesmo às camadas mais exteriores da época moderna.

9. O cristianismo se tornou uma religião do ódio, buscando destruir o “admirável novo mundo” do liberalismo:

De fato, os padres em países católicos borrifam água benta sobre estradas de ferro recentemente construídas e em dínamos de novas usinas, mas o cristão confesso ainda estremece intimamente diante dos trabalhos de uma civilização que sua fé não consegue compreender. A Igreja ressentiu-se fortemente da modernidade e do espírito moderno. Que surpresa, então, que ela tenha se aliado àqueles cujo ressentimento levou-os a desejar a dissolução deste admirável novo mundo, e que tenha explorado seu arsenal bem estocado como meio para denunciar o esforço terreno pelo trabalho e pela riqueza. A religião que chama a si mesma religião do amor tornou-se uma religião do ódio, em um mundo que parecia estar preparado para a felicidade. Quaisquer pretendentes a destruidores da ordem social moderna poderiam fiar-se no cristianismo como um líder.

10. Porque eles seguem o Evangelho e porque não foram “vacinados” com a filosofia liberal, sacerdotes e monges são inimigos da sociedade:

Sacerdotes e monges que praticaram a verdadeira caridade cristã, que ministraram e ensinaram em hospitais e em prisões e que sabiam tudo o que havia para saber a respeito da humanidade sofredora e pecadora – esses foram os primeiros a serem enganados pelo novo evangelho da destruição social. Apenas uma firme compreensão da filosofia liberal poderia tê-los vacinado contra o infeccioso ressentimento que se assolou entre os seus protegidos e que foi justificado pelos Evangelhos. Por assim dizer, eles se tornaram perigosos inimigos da sociedade. Do trabalho de caridade brotou o ódio à sociedade.

11. A Igreja e o papado buscam escravizar os homens destituindo-os da razão e da liberdade espiritual do capitalismo:

A Igreja sabe que ela não pode vencer, a menos que possa vedar a fonte da qual seu oponente continua extraindo inspiração. Desde que o racionalismo e a liberdade espiritual do indivíduo sejam mantidos na vida econômica, a Igreja jamais terá êxito em agrilhoar o pensamento e em tomar conta do intelecto na direção desejada. Para fazer isso, primeiro ela teria de obter a supremacia sobre toda atividade humana. Por conseguinte, ela não pode se contentar com o viver como uma Igreja livre em um estado livre [o próprio slogan de Cavour, o grande inimigo maçônico da Igreja e sagrado Pio IX – CAF]; ela deve procurar dominar aquele estado. Ambos o papado de Roma e as igrejas protestantes nacionais lutam pela soberania, já que ela as permitiria ordenar todas as coisas temporais de acordo com seus ideais. A Igreja não pode tolerar outro poder espiritual. Todo poder espiritual independente é uma ameaça a ela, uma ameaça que aumenta em força à medida que a racionalização da vida progride.

12. O cristianismo necessita do socialismo a fim de manter a teocracia contra a ameaça da “produção independente”:

Ora, a produção independente não tolera qualquer autoridade espiritual suprema. Em nosso tempo, o poder sobre a mente só pode ser obtido por meio do controle da produção. Todas as Igrejas já estão indistintamente atentas a isso há tempos, mas para elas isso se tornou claro pela primeira vez quando a idéia socialista, surgindo de uma fonte independente, fez-se sentir como uma força poderosa e rapidamente crescente. Então, tornou-se claro para as Igrejas que a teocracia só é possível numa comunidade socialista.

13. A Igreja deve se transformar cingindo-se antes ao capitalismo do que ao ensinamento papal tal como o de Pio XI:

Se a Igreja de Roma quiser encontrar uma solução para a crise para qual o nacionalismo a levou, então ela deve ser inteiramente transformada. Pode ser que essa transformação e essa reforma a levem à aceitação incondicional da indispensabilidade da propriedade privada dos meios de produção. Até o presente ela está longe disso, como testemunha a recente encíclica Quadragesimo anno.

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[1] Tradução autorizada pelo The Remnant. Para ler o artigo em inglês, clique aqui.