28/02/2010

O otimista como um suicida

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929
Gilbert Keith Chesterton
Livre-pensadores pensam ocasionalmente, mas nunca são livres. No moderno mundo ocidental, eles parecem sempre presos à monotonia de um cosmos materialista e monista. O cético universal, na Ásia ou na antiguidade, foi provavelmente um pensador mais ousado, embora muito provavelmente um homem mais infeliz. Mas o que temos de tratar de ceticismo não é ceticismo; mas uma fé fixa no monismo. O livre-pensador não é livre para questionar o monismo. Ele é proibido, por exemplo, no único inteligível sentido moderno, de acreditar num milagre. É proibido exatamente no mesmo sentido em que ele diria estarmos proibidos de acreditar numa heresia. Ambos são proibidos por primeiros princípios, não pela força. A Associação de Imprensa Racionalista não seqüestrará, amordaçará ou estrangulará Sir Arthur Keith se ele admitir a evidência de uma cura em Lourdes. Tampouco o Arcebispo de Westminster me enforcará, estripará ou esquartejará se eu anunciar que serei um agnóstico amanhã. Mas em ambos os casos é certo dizer que um homem não pode se livrar de seus primeiros princípios sem a rendição e a revolução de seu mais íntimo eu. De fato, somos o mais livre dos dois; pois, dificilmente haverá uma evidência, natural ou preternatural, que não possa ser acolhida, em algum lugar, pelo nosso sistema; enquanto que o materialista não pode acolher o mínimo milagre em nenhum lugar em seu sistema. Mas deixemos isso de lado, como uma questão em separado; e concordemos, apenas para efeito de argumentação, que ambos o católico e o materialista estão limitados somente pela sua convicção fundamental sobre o sistema cósmico; em ambos o pensamento está, nesse sentido, proibido e, nesse sentido, livre. Conseqüentemente, quando vejo em algum encontro promovido pela imprensa, como aquele sobre espiritualismo, um eminente materialista com o Sr. John M. Robertson discutindo a evidência para o espiritualismo, sinto exatamente como imagino que ele sentiria quando ouvisse um bispo com uma mitra ou um jesuíta com uma batina discutindo a evidência para o materialismo. Sei que o Sr. Robertson não consegue aceitar a evidência sem se tornar alguém muito diferente do Sr. Robertson; que também está ao alcance do poder da graça de Deus. Mas sei muito bem que ele não é um livre-pensador. Há muito ele chegou a uma conclusão que controla todas suas outras conclusões. Ele não é levado a aceitar o materialismo por evidências científicas. Ele está proibido, pelo materialismo, a aceitar evidências científicas.

Mas há um outro modo em que o livre-pensador não só pensa como é útil. O homem que rejeita a Fé totalmente é sempre muito valioso ao homem que a rejeita por partes, ou pouco a pouco, ou hora sim hora não. O homem que escolhe alguma parte do catolicismo que o apetece, ou joga fora alguma parte que o confunde, de fato produz, não somente o tipo de resultado mais estranho, mas geralmente o resultado exatamente oposto ao que ele pretendia. E sua inconsistência pode freqüentemente ser efetivamente exposta tanto do ponto de vista negativo quanto do positivo. Diz-se que quando os meio-deuses se vão, os deuses surgem; pode-se dizer, numa agradável paródia, que quando as não-deidades surgem, as meia-deidades se vão; e não estou certo de que isso não seja uma boa libertação. De qualquer forma, mesmo o ateu pode ilustrar quão importante é manter o sistema católico integral, mesmo se ele o rejeita integralmente.

Um curioso e divertido exemplo vem dos EUA; em relação ao Sr. Clarence Darrow, uma espécie de cético simples e ingênuo daquela terra da simplicidade. Ele parece ter escrito algo sobre a impossibilidade de alguém ter uma alma; do que nada precisa ser dito exceto (como sempre) que parece que é o cético que realmente pensa supersticiosamente sobre a alma, como um isolado e secreto animal com asas; que considera a alma separada do eu. Mas o que me interessa sobre ele no momento é isto: um de seus argumentos contra a imortalidade é que as pessoas não acreditam realmente nela. E um de seus argumentos para isso é que se elas acreditassem em certa felicidade além da cova, elas se matariam. Ele diz que ninguém suportaria o martírio do câncer, por exemplo, se realmente acreditasse (como ele aparentemente supõe que todos os cristãos acreditam) que o mero fato da morte introduzisse instantaneamente a alma na perfeita felicidade e na companhia de seus melhores amigos. Um católico saberá certamente que resposta ele tem de dar. Mas o Sr. Clarence Darrow não sabe minimamente que tipo de pergunta ele fez.

Agora temos a última flor e coroa de todo o moderno otimismo, universalismo e humanitarismo em religião. Os sentimentalistas falam sobre amor até que o mundo esteja cansado da mais gloriosa das palavras humanas; eles supõem que possa haver um tipo de utopia de prazer prático que nos prometem (mas não nos dão) neste mundo. Eles declaram que tudo será perdoado, porque não há nada a se perdoar. Eles insistem que o “passamento” é somente como ir para a sala ao lado, insistem que não será sequer uma sala de espera. Declaram que seremos introduzidos numa sala de estar repleta de todos os confortos concebíveis, sem qualquer referência a como chegamos lá. Eles estão certos de que não há nenhum perigo, nenhum demônio; não há sequer morte. Tudo é esperança, felicidade e otimismo. E, como o ateu muito verdadeiramente observa, o resultado lógico de toda aquela esperança, felicidade e otimismo seria centenas de pessoas se enforcando nos postes ou milhares de pessoas se jogando em poços e canais. Devemos encontrar o resultado racional da moderna religião da alegria e do amor num imenso estouro de suicídio humano. O pessimismo teria matado seus milhares, mas otimismo, seus milhões.

Ora, como eu disse, um católico sabe a resposta; porque detém uma filosofia completa, que mantém um homem são; e não algum simples fragmento dela, seja triste ou alegre, que pode facilmente levá-lo à loucura. Um católico não se mata porque não considera seguro que ele mereça o paraíso, ou que não faça diferença que ele o mereça ou não. Ele não professa saber exatamente que perigos encontrará; mas ele sabe que lealdade ele violaria e que mandamento ou condição ele desconsideraria. Ele realmente pensa que um homem pode ser mais adequado ao paraíso porque ele suportou como um homem; e que um herói poderia ser um mártir do câncer como São Lourenço ou Santa Cecília foram mártires de caldeirões ou de grelhas. A fé numa vida futura, a esperança numa futura felicidade, a crença que Deus é Amor e que a lealdade é a vida eterna, essas coisas não produzem lunáticos e anarquistas, SE elas forem consideradas juntamente com outras doutrinas católicas sobre dever, vigilância e cuidados contra os poderes do inferno. Elas podem produzir lunáticos e anarquistas se forem tomadas em separado. E os modernistas, isto é, os otimistas e sentimentalistas, querem tomá-las em separado. Claro, o mesmo seria verdade se alguém tomasse as outras doutrinas – do dever e disciplina – em separado. Isso produziria outra idade das trevas de puritanos rapidamente enegrecendo os pessimistas. De fato, os extremos se encontram, quando ambos são cortados do que deveria ser uma coisa completa. Nossa parábola termina poeticamente com dois cadafalsos frente a frente; um para o suicida pessimista e outro para o suicida otimista.

A questão é que essa passagem do cético americano está respondendo o modernista; mas não está respondendo o católico. O católico tem um motivo muito simples e razoável para não cortar sua garganta a fim de voar instantaneamente para o paraíso. Mas o cético americano pode realmente levantar uma questão para aqueles que falam do paraíso como sendo invariavelmente e instantaneamente povoado de pessoas que cortaram suas gargantas. E isso é somente um exemplo de uma longa lista de exemplos; nos quais aqueles que tentaram fazer a Fé mais simples, invariavelmente a fizeram menos sã. Os muçulmanos imaginaram que estavam sendo meramente razoáveis quando reduziram o credo à mera crença em um único Deus; mas no mundo da psicologia prática, eles realmente o reduziram a um único Destino. O efeito real no homem comum foi simplesmente fatalismo; como o do turco que não leva seus feridos a um hospital porque está resignado ao Kismet ou à vontade de Alá. Os puritanos pensavam que estavam simplificando as coisas quando recorriam ao que eles chamavam de simples palavras da Escritura; mas, de fato, eles estavam complicando as coisas criando centenas de raivosas seitas e loucas sugestões. E os modernos universalistas e humanitários pensavam estar simplificando as coisas quando interpretavam a grande verdade de que Deus é Amor como significando que possa não haver guerra com os demônios e perigos para a alma. Mas, de fato, eles estavam inventando enigmas ainda mais obscuros com respostas ainda mais amplas; e o Sr. Clarence Darrow sugeriu um deles. Ele ficará gratificado em receber por isso os agradecimentos de todos os católicos.
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Do livro “A Coisa” ver A lógica e o tênis, Por que sou católico, A máscara do agnóstico, Um pensamento simples, A Revolta contra as Idéias, As superstições do protestante, Raízes da sanidade, Inge versus Barnes, O que pensamos a respeito, O que é “A Coisa”?, Um artigo comum

22/02/2010

Mais duas historinhas do livro Tesouro de Exemplos

VISITANDO O SANTÍSSIMO

Um sacerdote, que estava a rezar o ofício divino a um canto da igreja sem que o pudessem ver, foi testemunha de uma graciosa visita ao Santíssimo.

Aproximaram-se da grade do altar dois meninos: Lino, de seis anos, e seu irmãozinho, de três. O maiorzinho tomou pela cintura o pequeno, ergueu-o e conservou-o de pezinho sobre a grade. Com a mão livre tomou a mãozinha de seu irmão para persigná-lo e, em seguida, rezou com ele esta breve e bela oração:

"Meu Jesus, eu te amo de todo o meu coração" . E repetiu estas últimas palavras, pondo a mão sobre o peito para indicar o coração.

Terminada a oração, Lino explicou ao irmãozinho:

- Olha, o bom Jesus, está dentro daquela casinha. As imagens que vês em cima são retratos de Jesus e de sua santa Mãe.

O pequenito olhava atentamente com seus olhos grandes e negros para a estátua de Nossa Senhora do Sagrado Coração, e de repente perguntou:

- Lino, Jesusinho quer bem a mim também?

Sim, responde Lino; olha como nos mostra seu coração com a mão esquerda e com a direita nos indica sua Mãe.

- Por que, hein?

O maiorzinho, um pouco perplexo, não soube o que responder.

- Por quê? insiste o pequeno.

Então Lino, lentamente, indeciso, atreve-se a balbuciar: Talvez Jesusinho queira que peçamos a sua mamãe licença para ficarmos com Ele.

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QUE É QUE PEDES A JESUS?

Joei era uma menina que as Irmãs de Caridade encontraram abandonada pelos pais às margens do Rio Amarelo da Grande China.

Estava a criancinha a morrer de fome e frio, quando as Irmãs a levaram para o hospital. Logo que a vestiram e alimentaram, dando-lhe leite quente, começou a pequena a recobrar a vida e a saúde. Foi batizada e logo brilhou a inteligência em seus olhinhos vivos e começou a conhecer a Deus e a aprender as coisas do céu. Andava já pelos oito anos e gostava de assistir à doutrina com as crianças que se preparavam para a primeira comunhão. Mas a sua memória não acompanhava o seu coração e quando o missionário foi examiná-la, teve que dar-lhe a triste notícia de que não seria admitida à primeira comunhão enquanto não soubesse melhor a doutrina.

Julgava o Padre que essa determinação a deixaria indiferente. Mas não foi assim. Daquele dia em diante notou-se uma mudança extraordinária no comportamento da menina.

Em lugar de brincar, como antes, com as crianças de sua idade, Joei começou a passar seus recreios na capela aos pés de Jesus.

Um dia, estando Joei diante do santíssimo, o Padre acercou-se dela devagarinho e ouviu que repetia com freqüência o nome de Jesus.

- Que é que fazes aí?

- Estou visitando o Santíssimo Sacramento.

- Visitando o Santíssimo? Tu nem sabes quem é o Santíssimo ...

- É meu Jesus, respondeu Joei.

- Bem; e que pedes a Jesus?

Então, com as mãos postas e sem levantar a cabeça, com lágrimas nos olhos, respondeu com indizível doçura:

- Peço a Jesus que me dê Jesus.

E a pequena Joei teve licença de fazer sua primeira comunhão.

 

Do livro Tesouro de Exemplos.

17/02/2010

Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris

SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZA
(Igreja de S. Antônio dos Portugueses, Roma. Ano de 1672.)
Padre Antônio Vieira
Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.
Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter.
I
O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida será a matéria do presente discurso.
Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer: outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. — Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça.
Ave Maria.
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16/02/2010

Quaresma 2010

Jesus passou quarenta dias jejuando no deserto, preparando-Se para Sua Missão pública. Lá Ele sofreu vários ataques do demônio, que O quis desviar de sua Missão: “... e foi conduzido pelo Espírito ao deserto, onde esteve quarenta dias, e era tentado pelo demônio” (Lc 4:1-2).
Depois da Ascensão, Deus Pai “constitui-O cabeça de toda a Igreja, que é Seu corpo e o complemento daquele que cumpre tudo em todos” (Ef 1:23). Sendo o corpo de Nosso Senhor, a Igreja passou a receber os ataques do demônio ao longo dos séculos, sendo aquele primeiro ataque no deserto apenas uma antevisão dos subseqüentes. Ao longo de sua história, a Igreja tem se defrontado com o maligno frequentemente. Em cada grande heresia que ataca o Corpo Místico de Nosso Senhor, há a marca inconfundível do diabo.
No século IV, a Igreja, jovem de quatro séculos, enfrentou a tormenta do arianismo, em que a grande maioria dos bispos se tornou ariana. Apenas alguns poucos, liderados pelo penta-excomungado Santo Atanásio, conseguiram defender o Depositum Fidei.
A situação atual da Igreja não é muito diferente da do século IV. Ao observarmos os padres e bispos, vemos muito poucos a que se pode aplicar a regra de São Vicente de Lerins (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus). Há cardeais que defendem o aborto, há os que não acreditam na ressurreição de Cristo, há os padres que não acreditam na Presença Real na Eucaristia, há os que acreditam que o Inferno é apenas uma metáfora, há os que transformam o altar num palco, há os simpáticos à Umbanda e o Espiritismo, há os que ...
Esta situação nos foi trazida pelo Concílio Vaticano II, indubitavelmente. Em 1972, o Papa Paulo VI disse: “Por alguma brecha a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus: existe a dúvida, a incerteza, a problemática, a inquietação, o confronto. Não se tem mais confiança na Igreja; põe-se confiança no primeiro profeta profano que nos vem falar em algum jornal ou em algum movimento social, para recorrer a ele pedindo-lhe se ele tem a fórmula da verdadeira vida. E não advertimos, em vez disso, sermos nós os donos e os mestres [dessa fórmula]. Entrou a dúvida nas nossas consciências, e entrou pelas janelas que deviam em vez disso, serem abertas à luz... Também na Igreja reina este estado de incerteza. Acreditava-se que, depois do Concílio, viria um dia de sol para a história da Igreja. Em vez disso, veio um dia de nuvens, de tempestade, de escuridão, de busca, de incerteza. Pregamos o ecumenismo, e nos distanciamos sempre mais dos outros. Procuramos cavar abismos em vez de aterrá-los. Como aconteceu isso? Confiamo-vos um Nosso Pensamento: houve a intervenção de um poder adverso. Seu nome é o Diabo” (Paulo VI, Discurso em 29 de Junho de 1972).
Observando toda a tragédia atual da Igreja, não há como não fazer um paralelo entre aqueles poucos bispos do século IV liderados por Santo Atanásio, com os poucos bispos que, no Concílio Vaticano II, defenderam o Depositum Fidei. Não há como não pensar no excomungado D. Lefebvre e também em D. Antônio de Castro Mayer.
Nesta Quaresma de 2010, contemplemos os sofrimentos do Corpo Místico de Nosso Senhor e rezemos para que o Espírito Santo ilumine o Papa Bento XVI na condução da Igreja por tempos tão difíceis. Peçamos também que cada um de nós possa dar testemunho de nossa fé e que esta esteja de conformidade com a regra de São Vicente de Lerins.

15/02/2010

Um artigo comum

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929

Gilbert Keith Chesterton

Nota do tradutor – com este texto, Chesterton usa seu magistral conjunto de instrumentos literários para, de uma forma simples, talvez até simplória – dada a audiência a que ele se dirigia – para nos mostrar que qualquer sistema mais ou menos auto-sustentável de crença – seja ele político ou religioso –, usa, senão todos, alguns procedimentos do único sistema realmente auto-sustentável e indestrutível de crença jamais criado, a Igreja Católica – pois Quem a criou é a fonte da sua sustentação e força. Todos eles se reúnem em concílios, todos editam seus anátemas, todos excomungam hereges, todos são altamente sensíveis às heresias. Contudo, só a Igreja é acusada de fazer tudo isso.

O editor de um jornal vespertino publicou recentemente o que ele anunciou como, e até se desculpou por, um “artigo incomum”. Ele ansiosamente se acautelou de expressar qualquer opinião sobre as idéias temerárias e perigosas apresentadas pelo artigo. Desnecessário dizer que, depois de ler cinco linhas do artigo incomum, percebi que ele era um exemplo satisfatório de um artigo comum. Era mesmo uma cuidadosa e correta cópia de um artigo comum; um tipo de espécie premiada, como se a coisa pudesse ser ‘incomumente’ comum. Já lera o artigo antes, claro – milhares de vezes (penso eu) – e sempre dele pensara o mesmo; mas nunca antes, de alguma forma, ele me parecera exatamente o mesmo.

Há coisas de que o mundo está hoje subconscientemente muito cansado. Ele nem sempre sabe o que são; pois elas se apresentam comumente com grandes, embora desbotados, rótulos descrevendo-as como o Novo Movimento ou a Última Descoberta. Por exemplo, os homens já estão cansados do Estado Socialista como se já tivessem nele vivido por milhares de anos. Mas há algumas coisas cujo tédio já está se tornando agudo. Está agora muito próximo da superfície; e pode repentinamente acordar numa forma de suicídio, assassinato ou mesmo no ato de rasgar jornais com os dentes. Tal é o caso desse produto familiar, o Artigo Comum. Ele não é somente excessivamente comum; tem se tornado intoleravelmente, insuportavelmente, insustentavelmente comum. Ele é apropriadamente descrito como “O Clamor de uma Mulher às Igrejas”. Permitam-me anunciar que, embora eu seja de hábitos plácidos e firmes, e nunca tenha sido acusado de qualquer característica feminina como histeria, ainda assim, se tivesse lido este artigo mais três vezes, eu teria gritado. Meu grito seria intitulado, “O Clamor de um Homem aos Jornais”.

Repetirei, algo resumidamente, o que a senhora em questão gritou; pois o leitor já o sabe de cor. A mensagem de Cristo foi perfeitamente “simples”: que a cura para tudo é Amor; mas como Ele foi morto (não entendo muito bem a razão) por ter feito esta observação, grandes templos foram erguidos para Ele e pessoas horríveis chamadas padres têm dado ao mundo nada mais que “pedras, amuletos, fórmulas, crenças mortas.” Eles também “discutem eternamente sobre o lugar de um botão ou o ato de ajoelhar.” Tudo isso não oferece nenhum conforto ao infeliz cristão, que aparentemente deseja ser confortado apenas por saber que tem um dever para como seu próximo. “Quantos homens na hora de sua morte se confortam com o pensamento dos Trinte-e-Nove Artigos,[1] da Predestinação, da Transubstanciação, da doutrina da punição eterna, e da crença de que Cristo retornará no Sétimo Dia?” Os itens compõem um curioso catálogo; e o último item é para mim especialmente misterioso. Contudo, só posso dizer que, se Cristo foi um formulador da mensagem original e realmente reconfortante do amor, penso que FARIA diferença se Ele retornasse no Sétimo Dia. Do resto da lista, considero necessário distinguir os itens. Eu certamente nunca consegui nenhuma profunda ou calorosa consolação do pensamento sobre os Trinta-e-Nove Artigos. Nunca soube de ninguém que o tivesse feito. Da idéia da Predestinação, há, em termos gerais, duas visões; a calvinista e a católica; e faria a mais incomum diferença ao MEU conforto se eu acreditasse na primeira em vez de na última. É a diferença entre acreditar que Deus sabe, como um fato, que eu escolho ir para inferno; e acreditar que Deus me jogou no inferno, sem que eu tenha nenhuma escolha. Quanto à Transubstanciação, é mais difícil falar dela de forma simples; mas eu gentilmente sugeriria, aos outsiders mais comuns com algum senso comum, que há uma considerável diferença entre Jeová impregnando o universo e Jesus Cristo vindo a um recinto.

Toco rápida e relutantemente nesses exemplos porque eles exemplificam uma questão muito mais ampla dessa interminável maneira de falar. Ela consiste em falar como se o problema moral do homem fosse perfeitamente simples, enquanto todos sabem que não é; e então depreciar as tentativas de resolvê-lo citando longos trechos técnicos, e falar sobre cerimônias sem sentido sem perguntar sobre seu sentido. Em outras palavras, é exatamente com se alguém dissesse sobre a ciência da medicina: “Tudo que se pede é Saúde; o que pode ser mais simples que a graça da Saúde? Por que não se contentar para sempre com o brilho da juventude e do frescor de estar sempre bem? Por que estudar as ciências áridas e lúgubres da anatomia e fisiologia; por que inquirir sobre as condições de obscuros órgãos do corpo humano? Por que pedantemente distinguir entre o que é rotulado um veneno e o que é rotulado um antídoto, quando é tão simples curtir a Saúde? Por que se preocupar com a exatidão minuciosa do número de gotas de laudanum[2] ou da exata dose do cloral,[3] quando é tão legal ser saudável? Fora com seus sacerdotais aparelhos, tais como estetoscópios e termômetros; como suas ritualísticas fantasias de sentir os pulsos, examinar as línguas, etc.! O deus Esculápio veio à terra só para nos informar de que a Vida é completamente preferível à Morte; e este pensamento consolará muitos moribundos desatendidos por médicos.”

Em outras palavras, o Artigo Comum, que é agora velho de mil edições, era sempre besteira e contra-senso mesmo quando era novo. Pode haver, e ter havido, pedantismo na profissão médica. Pode haver, e ter havido, teologia que era superficial, árida ou que não oferecia consolação aos homens. Mas falar como se fosse possível a qualquer ciência atacar qualquer problema sem desenvolver uma linguagem técnica, e um método sempre metódico e quase sempre minucioso, meramente significa que você é um tolo e nunca atacou realmente um problema. Mesmo sem pensar na teoria de uma Igreja, se Cristo tivesse permanecido na terra por um tempo indefinido, tentando induzir os homens a amar uns aos outros, Ele teria considerado necessário estabelecer alguns testes, alguns métodos, alguma forma de separar amor verdadeiro de amor falso, alguma forma de distinguir entre tendências que arruinariam o amor e tendências que o restaurariam. Você não pode ter sucesso em algo, mesmo no amor, sem pensar. Tudo isso é tão óbvio que pareceria desnecessário repeti-lo; e mesmo assim é necessário repeti-lo, porque é sua superficial contradição que é agora repetida incessantemente. Sua superficialidade se estende em torno de nós como uma vasta imensidão em todas as direções.

O Artigo Comum tem um caráter que ocasionalmente alude à Nova Religião; mas sempre de uma forma assaz tímida e remota. Ele sugere que haverá uma crença melhor e mais ampla; embora raramente toque na crença, mas somente em sua amplidão. Não há nunca nele qualquer coisa que lembre sequer uma nota do verdadeiro inovador. Pois o verdadeiro inovador deve ser, em algum sentido, um legislador. Podemos colocar a questão de uma maneira hostil, dizendo que o revolucionário sempre se torna tirano. Podemos colocar a questão de uma maneira amigável, dizendo que o reformador deve se voltar para a idéia de forma. Mas qualquer um que funde uma nova religião, mesmo uma falsa religião, deve ter certa qualidade de responsabilidade. Ele deve se fazer responsável por dizer que algumas coisas devem ser proibidas e algumas permitidas; que há certo plano ou sistema que deve ser defendido contra a destruição. E todas as coisas que lembram em qualquer aspecto novas religiões, para fazê-las justiça, mostram essa qualidade e sofrem dessa desvantagem. A Ciência Cristã é teoricamente baseada na paz e quase na negação da guerra. Contudo, a guerra não tem sido pequena nos concílios desse credo; e as relações de todos os sucessores da Sra. Eddy tem sido tudo menos pacíficas. Não digo isso como um sarcasmo, mas como um tributo; devo dizer que esses procedimentos realmente provam que as pessoas envolvidas estão tentando fundar uma religião real. É um elogio aos cientistas cristãos dizer que eles também tiveram seus testes e seus credos, seus anátemas e suas excomunhões, suas encíclicas e suas caças às heresias. Mas é um elogio aos cientistas cristãos que eles dificilmente conseguem deixar de usar como um insulto aos cristãos. O comunismo, mesmo em sua forma final do materialismo marxista, tinha algo das qualidades de uma fé vigorosa e sincera. Teve uma delas pelo menos; expulsou homens que negavam o credo. Ambos, o comunista e o cientista cristão, estavam sob essa grave desvantagem; eles realmente transformaram uma fé num fato. Há tal coisa como um governo bolchevique e ele governa, mesmo que seja um desgoverno. Há tal coisa como curadores na Ciência Cristã; há provavelmente algo como cura na Ciência Cristã, mesmo que não admitamos que a cura seja saúde. Há uma Igreja em ativa operação; e por isso ela exibe todos os dogmas e diferenças de que se acusa a Igreja de Cristo. Mas a filosofia expressa no Artigo Comum evita todas essas desvantagens, pelo truque de nunca aparecer no mundo da realidade. Seu deus teme nascer; sua escritura teme ser escrita; consegue permanecer como a Nova Religião, prometendo sempre acontecer amanhã, nunca hoje. Ela se incha com orgulho espiritual, pois não pode impor o que não pode nem mesmo inventar. Ela brilha com uma auto-satisfação farisaica, porque não há crimes cometidos por seu credo e nenhum credo para ser motivo de seus crimes. Esse tipo de crítica é como um cirurgião que nunca faz uma operação malsucedida, pois nunca opera; um soldado que nunca falha porque nunca luta. Qualquer um pode falar indefinidamente sobre uma religião inexistente que será livre de todos os males da existência. Qualquer um pode sonhar com essa cristandade inteiramente humana e harmoniosa, cujo Cristo nunca nasceu e nunca foi crucificado. É tão fácil de fazer que uma centena de pessoas nos jornais e nas discussões públicas têm feito nada mais que isso nos últimos vinte ou trinta anos. Mas é tão fútil aplicar isso tudo a um ideal espiritual quanto aplicá-lo a uma teoria científica ou a um programa político; e menciono-o apenas porque acabo de ouvi-lo pela centésima vez; e sinto uma pequena esperança que posso estar mencionado-o pela última vez.


[1] Estabelecidos em 1563, definem a Igreja Anglicana em relação às outras confissões protestantes. (N. do T.)

[2] Tintura de ópio, contendo 10% de ópio e 1% de morfina. Prescrito para diarréia, dores ou para desintoxicação de bebês de mães viciadas em heroína e opióides. (N. do T.)

[3] Tricloroacetilaldeído, este aldeído é uma substância sedativa. (N. do T.)

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Do livro “A Coisa” ver A lógica e o tênis, Por que sou católico, A máscara do agnóstico, Um pensamento simples, A Revolta contra as Idéias, As superstições do protestante, Raízes da sanidade, Inge versus Barnes, O que pensamos a respeito, O que é “A Coisa”?

09/02/2010

Catolicismo e Liberalismo

 

A tentativa de união conceitual e prática de liberalismo e catolicismo foi chamada por D. Marcel Lefebvre de “a grande traição”. Em sua obra “Do Liberalismo à Apostasia”, D. Lefebvre cita com insistência um livro de Pe. A. Roussel intitulado “Libéralisme et Catholicisme”. Este pequeno livro foi publicado em 1926, tendo recebido o Nihil Obstat em 12 de agosto e o IMPRIMATUR em 28 de agosto de 1926.

O Pe. Roussel era Doutor em Filosofia e professor do Seminário Maior de Rennes, França. O livro nasceu de uma série de conferências proferidas pelo padre na Semaine Catholique em fevereiro de 1926.

Sobre a origem do Liberalismo, já no início do livro, Pe. Roussel não nos deixa dúvida ao afirmar:

“O termo ‘Liberalismo’ é assaz recente. Parece ter vindo de Mme. Stael, mas a coisa em si, ao contrário, é tão velha quanto as montanhas. O pai do Liberalismo é naturalmente aquele que primeiro se revoltou, o próprio Satã.

“Recusando orgulhosamente a graça sobrenatural e necessária de forma a não mais depender de seu Criador e Benfeitor, alegando consegui-la por seu próprio esforço, e complacentemente considerando a excelência de sua própria natureza esplêndida, ele lançou, das alturas do céu, o primeiro grito de rebelião, non serviam, não obedecerei.”

Mais adiante, Pe. Roussel faz uma tabela que ajuda o leitor a entender qual a diferença conceitual que separa o liberal do católico.

Para o liberal

Para o católico

1. Razão, fonte e medida de tudo

2. Raciocínio individual e autônomo

3. Autonomia da vontade

4. Ateísmo e panteísmo

5. O homem é auto-suficiente

6. Liberdade, um fim em si mesmo

7. Liberdade, essencialmente independente

8. Independência exigida pela dignidade

9. Homem, essencialmente bom

10. Independência e fatalidade do progresso

11. Igualdade

12. Individualismo anárquico

13. Licença para fazer o que se quiser

14. Soberania do número, ou povo

15. Maçonaria, etc.

1. Razão submetida ao seu objeto: natural e sobrenatural

2. Raciocínio a partir de anos de tradição

3. Dependência da lei, respeito ao bem comum

4. Um Deus, distinto do mundo

5. Apenas Deus é o Ser necessário

6. Somente um meio para obter o bem final

7. Ela depende da autoridade, lei e ordem

8. Submetida à lei, fonte da perfeição

9. Corrompido pelos pecados pessoais e Original

10. Pressupõe ordem na direção dos bens necessários

11. Hierarquia e organização

12. Laços sociais necessários

13. Liberdade regulada: para fazer o que é bom

14. Soberania de Deus e dos seus delegados

15. Igreja Católica, etc.

Se o liberal e o católico são assim tão diferentes, como então reconhecer que exista um ser humano que possa ser chamado de “católico liberal”? Que poço de contradições conterá tal pessoa? No entanto, Pe. Roussel não só afirma que existe tal pessoa, como descreve um esboço do que seja um “católico liberal” em ação. A única concessão que ele faz a tão contraditório ser é sempre colocar seu nome entre aspas.

Vale a pena acompanhar a descrição de Pe. Roussel. Ela nos dá um triste retrato do comportamento de muitos padres, bispos e cardeais destes tempos pós-conciliares. Ela nos ajuda a entender os caminhos trilhados por estes homens que, falando em nome da Igreja, pregam uma doutrina essencialmente anti-católica, cuja origem se encontra exatamente no principal inimigo de Deus. Traduzo agora um trecho do livro do Pe. Roussel intitulado “O católico liberal em sua prática geral”.

“Em princípio, o ‘católico liberal’ não gosta de falar de princípios. Ele se atém ao campo dos fatos, pois aí ele pode mais facilmente usar seus talentos. Mas já aqui somos obrigados a crer que a mediocridade de seu discernimento da verdade naturalmente o levará a uma mediocridade na ação (a menos que a real teoria de justificativa de sua atitude seja simplesmente seu medo de agir e lutar).

“De toda a forma, sabemos que qualquer ação ou vigoroso combate humano necessariamente pressupõe a percepção de um bem a ser obtido ou conservado. Esta é a única razão para o esforço; caso contrário, reagiríamos apenas um pouco, ou nem mesmo o faríamos. O mundo moderno chama isso de ‘lei da motivação’. É preciso amar profundamente para estar fortemente motivado; mas só se ama na medida em que se compreende a importância ou valor de um determinado bem. Não é então difícil de entender que haverá apenas uma fria indiferença, ou pelo menos, uma convicção muito fraca a respeito da verdade. Isto, por sua vez, produz uma pusilanimidade e uma covardia na ação. Este é freqüentemente o caso do ‘católico liberal’. Adicionemos a isto que o fato de seu exagerado desejo de conciliação, além de sua fé enfraquecida, o faz correr o risco de se meter em transações ambíguas e firmar lamentáveis compromissos. Isto tem como conseqüências recuos vergonhosos, capitulações e uma irreparável traição. As últimas poucas décadas testemunhou tudo isso. Mesmo assim, o ‘católico liberal’ não acredita em nada disso. Ele continua, ao contrário, expressando seu orgulho em sua solicitude para o que chama de ‘um desejo de paz’, ‘conduta prudente’, ‘atitude caridosa’, ‘sentido de realidade’, ‘política de resultados’. Observemos isso mais cuidadosamente.

Desejo de paz – O ‘católico liberal’ deseja a paz a qualquer custo. Contudo, esse custo é freqüentemente muito alto, pois ele acaba sendo, na concepção do ‘católico liberla’, o custo da verdade, dos direitos de Deus e da Igreja. Certamente todo católico deve trabalhar para a paz, isto é, para a tranqüilidade da ordem em todos os domínios. ‘Bem-aventurados os pacíficos ...’ Mas, como explica o Cardeal Pie, a paz é somente possível na verdade, pois a ordem é somente possível se as coisas estiverem dispostas de acordo com as exigências de suas relações mútuas. A paz entre os homens é portanto obtida quando suas atividades são ordenadas de acordo com a virtude. Em particular, as virtudes da justiça e caridade asseguram um respeito a todas as leis e poderes legítimos.[1] Ora, a paz entre a Igreja e o mundo é impossível aqui embaixo: ‘Meu filho, quando entrares no serviço de Deus ... prepara a tua alma para a tentação’ (Eclo 2:1), ‘Todos os que querem viver piamente em Jesus Cristo, padecerão perseguição’ (II Tim 3:12).

“Nosso Senhor claramente previu isso quando disse: ‘vocês serão odiados por causa de meu nome.’ Este é, de fato, o privilégio do católico, que sempre e em todo lugar atrai um ódio violento e é acusado de hipocrisia pelo próprio mundo que ele condena. A Igreja militante continuará a declarar guerra enquanto houver almas a salvar. Como resultado, o pacífico é sempre chamado a estar preparado para a guerra contra os destruidores da ordem na batalha contra a concupiscência, o mundo e o demônio. É por causa do amor à ordem e à paz que o pacífico ataca a ignorância, o erro e as paixões, a fim de salvar almas. O ‘católico liberal’ ao contrário não entende as verdadeiras condições para a paz, [2] que é a permanência na ordem, pois a desordem invade sua mente, desordem que está presente até mesmo em seu nome. É a concordância de vontades o que ele deseja acima até, e apesar da, divergência e oposição de mentes. A única coisa que ele obtém é uma tolerância superficial e provisória em que o católico tem tudo a perder e nada a ganhar. Ele não obtém nem a verdadeira paz nem a estima de seus adversários. Repetidamente você o vê estendendo a mão com uma irritante insistência, oferecimento que estamos dispostos a recusar com desprezo! Não, o ‘católico liberal’ não é um pacífico, mas sim um pacifista. Ele tem duas características principais: uma aversão pelos seus irmãos católicos e um perfeito entendimento com o inimigo.

“Atitude caridosa – Caridade! Caridade! Esta é a desculpa que o ‘católico liberal’ tenta apresentar. A verdadeira caridade é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a Deus. Esses dois amores não são separáveis. Amamos a Deus e ao próximo como Deus deseja, isto é, visando a um fim e de uma forma que Ele quer, i.e., por e em Jesus Cristo e a Igreja. A verdadeira caridade sabe que o primeiro bem é a verdade; propagar isto é pois a primeira obrigação. Porque amamos fervorosamente, odiamos vigorosamente; juramos nosso inexplicável ódio ao mal, ao erro e ao pecado, e procuramos destruir cada obstáculo que se opõe à missão apostólica da Igreja. Comentando sobre a passagem de São Paulo, facientes veritatem in caritate, praticando a verdade na caridade, Cardeal Pie escreve: ‘A caridade implica antes de tudo, o amor a Deus e à verdade. Ela não hesita em puxar a espada por uma causa divina, sabendo que somente com golpes duros e incisões salutares pode se vencer ou converter o inimigo.’ Será que o ‘católico liberal’ ama a Deus sobre todas as coisas quando desconsidera Suas verdades e ridiculariza Suas leis imprescritíveis? Amará ele seu próximo quando não o auxilia a se libertar dos erros e o ajuda através de verdades sobrenaturais? É possível amar o doente ignorando sua doença ao invés de curá-la? As almas são amadas quando mesmo as verdades elementares, que são necessárias para a salvação, são recusadas a elas para não lhes causar ansiedade? Não, a caridade do ‘católico liberal’ é mal orientada, quando e se não completamente deformada. Ele é mais um pregador hipócrita da caridade do que verdadeiramente caridoso, pois é todo doce com o incrédulo, mas amargo como fel com o católico. Seu coração está voltado para a ‘esquerda’, como suas idéias. Ele não tem nada para dar aos verdadeiros católicos senão amargura e violência. ‘Seu ardor é amargo, suas discussões ríspidas, sua caridade agressiva’ (Dom Sarda).[3]

“Conduta prudente – Pelo menos, o ‘católico liberal’ é ‘prudente’! Ele na pratica assume a definição que criou: não é ela a virtude par excellence do ‘justo meio’ e aquela que regula todas as outras virtudes? Com uma modéstia que lhe causa satisfação, repete sem cessar que ele não compromete o bom objetivando idioticamente o perfeito. Em vez disso, ele sabiamente se contenta como o ‘possível’. Mas isso o faz mais justo? A prudência é definida como: recta ratio agibilium, que pode ser traduzida como a ‘arte de obter êxito,’ isto é, a habilidade de atingir o objetivo. A prudência nunca perde sua perspectiva que é o fim último do homem e do universo. Portanto, ela analisa todos os meios que auxiliarão na sua obtenção. Ela procura o maior bem possível numa dada circunstância, e, entretanto, considera isso apenas como um degrau para o fim último, e não como um fim em si mesmo. Ela cuida do doente de uma maneira útil, nunca todavia cedendo ao mal, a menos que seja obrigada a tolerá-lo por enquanto, aguardando um momento favorável para triunfar ainda mais completamente. A prudência certamente se dobra às circunstâncias, mas sempre para obter um bem maior. Ela trabalha incansavelmente em sua direção, intensificando todo bem possível. Ela nunca se senta resignada em ser conquistada, mas sempre acaba sendo o conquistador. Ela procura o sucesso, nunca desdenhando da força, mas controlando-a e usando-a para obter o fim em vista. A prudência do ‘católico liberal’, por outro lado, é sempre vulgar porque é míope, nunca vendo muito alto ou muito longe. Falta-lhe sabedoria que é o ‘conhecimento das mais altas causas’. Ele é débil e hesitante pois não há convicção na fé. Toda a confiança é colocada nas modestas e limitadas condições humanas, e nenhuma em Deus e Sua graça. Esta não é senão a prudência do mundo ou a ‘prudência carnal’. Ela não deseja nenhum tipo de batalha; ela desdenha a força em vez de colocá-la a serviço da verdade. Esse tipo de prudência somente sabe como capitular. Fundamentalmente, ela não é senão medo e mesmo covardia.

“Sentido de realidade – O ‘católico liberal’ crê e mesmo proclama que é dotado de um ‘senso de realidade’, na falta de um ‘senso católico’. Ele não se interessa por teoria, mas se considera prático. Alega conhecer seu tempo, suas aspirações e necessidades. Para ele, a verdade deve ser apresentada numa forma inteiramente diferente às pessoas agora amadurecidamente impregnadas de liberdade. Ele pressiona a Igreja a levar em conta o progresso e Se colocar à sua disposição. Contudo, este infeliz indivíduo não tem o senso da realidade especulativa, nem natural nem sobrenatural, dado seu amor incrivelmente fraco pela verdade. Tampouco tem ele o senso da realidade prática, pois, surpreendentemente, falta-lhe psicologia. Ele pensa que conhece as aspirações de seu tempo, mas na realidade é totalmente ignorante das profundas aspirações de todos os tempos; por exemplo, a da inteligência por verdades universais e a da vontade pelo bem soberano. Ele não entende a invencível atração que a verdade exerce sobre toda e qualquer alma. Tendo uma excessiva confiança nos meios humanos, ele se esquece de se socorrer Naquele que fez o céu e a terra. Ele despreza a graça onipotente de Jesus Cristo, e tem em particular uma fé muito superficial na profunda afinidade entre a alma sacerdotal e a alma batizada. Por isso, seus sermões, se ele é padre, são ineficazes e enfadonhos, pois coloca ênfase na eloqüência e persuasão, em vez de na virtus Christi. Em vez de falar com autoridade de representante de Deus e embaixador de Cristo, ele se faz pequeno, humilde e suplicante. Conseqüentemente, obtém somente o sucesso humano e às vezes até mesmo indiferença e desprezo. Falta-lhe também psicologia frente a um adversário obstinado. Ele pensa que com a capitulação freqüente ante ao adversário, ele receberá em troca mais, mas de fato, ele perde terreno a cada dia. Isto é o que ele chama de o ‘possível’, de ‘mal menor’. Mesmo assim, quando ele faz dessa atitude um sistema, o ‘mal menor’ se torna o maior de todos os males, e o ‘possível’ se encolhe sem cessar, pois quanto mais ele recua, mais o adversário avança e conquista o seu terreno. Essa é a história da resistência do ‘católico liberal’ nos últimos 50 anos. Assim, hoje chegamos a aceitar e respeitar a lei do secularismo! Este é o resultado de tal política e é enormemente triste!

“Assim, esse dissimulado ‘justo meio’ se move sem cessar, sempre na direção do mal maior. É surpreendente ver como o ‘católico liberal’ se colocou entre a Igreja e a Revolução. Ele continuamente se aproxima do lado da revolução e se distancia cada vez mais da Igreja. Realmente, nesse sentido ele avança continuamente na direção da conformidade com o povo. Assim, o ‘católico liberal’, cuja intenção era a de conciliar a Igreja com a Revolução, tornou realmente possível a vitória da Revolução. Ele não ganhou nada da esquerda, perdeu muito da direita, não conseguiu nenhuma conversão, facilitou muito perversão e causou até mesmo uma multidão de apostasias. Ele nos acusa de colocar a Igreja em perigo, e ainda assim é Ela sozinha que se defende perante um mundo hostil, simplesmente anunciando o que Ela acredita e deseja. Ao contrário então, nós o acusamos de trair a Igreja. Ele coloca a fé em perigo ao destruir a resistência católica ou, por covardia, ao fazer um pacto com o próprio adversário.

“Ao ‘católico liberal’ não falta inteligência. Ele tem uma eloqüência, um talento e um conhecimento mais perfeitos que qualquer um. É contudo sua posição que é imbecillus, segundo o significado latino. Em lugar de construir sobre a pedra, fundatus supra firmam petram, ele constrói sobre a areia movediça da liberdade em que ele é engolido. Sua posição é totalmente contraditória, pois ele deplora os próprios efeitos das causas que ama, e deseja combater a impiedade, a imoralidade e a heresia sem perceber que seu próprio liberalismo o conduz para essas conclusões.”

Volto a lembrar que o livro de Pe. Roussel foi escrito em 1926 e é uma extraordinária descrição do “católico liberal”. Felizmente, Pe. Roussel não viveu para ver sua Igreja invadida por liberais que, hoje, constituem uma maioria.


[1] Estas virtudes sociais podem, contudo, existir e ser entendidas fora do coração da verdadeira religião. Somente o catolicismo, que é a ordem integral e mesmo a força de Deus, pode, por sua própria natureza, levar essas virtudes à sua perfeição em relação a este mundo.

[2] Liberalismo, especificamente condenado pelo Papa Leão XIII, é esse sistemático ato de concessão e a paixão pela paz a qualquer custo (Rev. Pe. De La Taille, En face Du Pouvoir, p. 118)

[3] Aqui Pe. Roussel se refere ao livro de D. Félix Sarda y Salvany, El liberalismo es pecado. (N. do T.)

03/02/2010

Ensaio fotográfico sobre Chesterton – de sua biografia escrita por Maisie Ward



Auto-caricatura

Ano de sua conversão oficial ao catolicismo


Ditando para sua secretária







Um ano antes de sua morte