31/03/2007

Ateus solitários da Aldeia Global – Parte IV

Michael Novak


O CRISTIANISMO REAL

Numa estalagem, na pequena vila de Bressanone (Brixten) no norte da Itália, há um afresco pintado muitos séculos atrás, cujo principal sujeito é um elefante, por um pintor que, obviamente, nunca tinha visto um elefante. Ele, claramente, estava tentando representar na parede o que alguém tinha tentado lhe contar sobre elefantes. Ele pintou um cavalo grande e pesado, com umas orelhas incomumente desajeitadas, e um nariz consideravelmente maior do que o de um cavalo comum – mas ainda assim um cavalo com um nariz grande.

É usual rirmos do afresco e, similarmente, o leitor cristão rirá do afresco primitivo do cristianismo pintado por Dawkins, Dennett e Harris. Eles se enganam redondamente sobre a coisa real.

Não se experimenta, tampouco, a coisa real apenas pelo nascimento numa família cristã. Não é nem de longe suficiente tomar parte em rituais maçantes e freqüentar a “Escola Dominical” com uma mente desatenta ou não-questionadora. Como descreve o Cardeal Newman, com algum detalhe, em seu Grammar of Assent (Gramática do Assentimento), um largo e obscuro abismo separa o assentimento “nocional” do “real”. Para este, é necessário pensar sobre a própria fé, questioná-la de todos os ângulos, estudar suas dimensões, implicações e relações com outros modos de conhecer. É necessário “tomar posse da fé”. Não se pode simplesmente ser “jogado” nela por nascimento ou instrução prévia. Fé que não é nutrida de questionamentos e desafios é um pouco como grama em solo raso, que é verde pela manhã, murcha à tarde e morre ao anoitecer. Nossos autores, ao que parece, querem arrancar com o ancinho a grama de raiz curta.

Assim, parece útil – e necessário – esboçar algumas das facetas da fé cristã a que nossos três autores parecem desatentos. Todo cristão (e todo católico) tem, claro, opinião diferente sobre isso, mas de cara eu percebo quatro questões para as quais a fé cristã oferece reflexões interessantes.

Primeira: Uma Teologia do Absurdo. Comece com a cruz ensangüentada do Calvário. Nela morreu o Filho de Deus? A cruz, o próprio símbolo da contradição e do absurdo. Quando os cristãos falam do ato da Criação, não pensamos num artífice perfeccionista fazendo bonecas Lhadró, mas em Deus criando carne e sangue em todas as suas angularidades, deformações, imperfeições e limitações concretas. O mundo de Sua criação é cortado de absurdidades e contradições, espécies que desaparecem, e da fervilhante, exuberante e barulhenta confusão de contingências e acasos. Quando Ele singulariza um povo escolhido, Ele elege uma tribo de uma parte pobre, atrasada e primitiva do mundo (imensamente talentosa, para ser justo, mas sem prestígio, fama, poder ou influência na superfície das coisas). Seus escolhidos são recorrentemente subjugados por inimigos, escravizados e exilados por longos, longos anos. Então, quando o Criador envia Seu Filho para se tornar carne, o Filho também funda Sua nova comunidade entre, principalmente, os pobres, os não instruídos, os humildes, os esquecidos.

Mas então, depois de blasfêmia e mais blasfêmia, esse Filho de Deus é condenado à morte como um criminoso comum, e submetido a mais desgraçada forma de morte conhecida do homem daquele tempo: escárnio público, açoitamento até quase à morte e, então, crucificação num lugar onde o povo podia gritar insultos e até os abutres podiam vir bicar seus olhos.

Este Criador não é nenhuma Pollyanna. O que Ele faz é assegurar àqueles que sofrem e que se vergam sob o peso do Absurdo que, apesar de às vezes eles sentirem um medo congelante, eles não precisam, afinal, temer. Deus é um bom Deus, e tem Seus próprios propósitos e não se engana quem sempre acredita em Sua bondade. O Criador não nos criou para vivermos num mundo razoável de forma racional, calma e desapaixonada – como um banqueiro novaiorquino, depois de um esplêndido almoço em seu Club, se afunda em sua poltrona favorita na Biblioteca, onde um charuto perfumado ainda é permitido, e lê confortavelmente os jornais do dia. Ao contrário, há guerra, exílio, tortura, injustiça. A vida é para ser compreendida como um julgamento e um tempo de sofrimento. Um vale de lágrimas. Um vale de morte. Mesmo na riqueza, no luxo e na fartura, o câncer, o fracasso e a solidão radical atacam; e mesmo, ainda mais freqüentemente, o simples tédio nos espreita.

Nem de longe uma terra de alegria, nem de longe o mundo perfeito de Cândido. O ateísmo é, principalmente, para o homem confortável, que vive num mundo razoável. Para aqueles em agonia e desespero, o cristianismo parece servir muito melhor e a longo prazo, não porque ele ofereça “consolação”, mas precisamente porque ele não faz isso. Para os cristãos, a cruz é inescapável e devemos sempre estar preparados para carregá-la. Eu próprio presenciei três pessoas profundamente religiosas morrerem desconsoladas, desoladas, vazias de sentimento por Deus. Estar vazio de consolação não é, no entanto, estar vazio de fé. Fé é essencialmente um sereno ato de amor, mesmo na miséria: “Não seja, porém, a minha vontade a fazer-se, mas a tua.”

Como Stephen Jay Gould, nossos três autores pensam que estão destruindo o argumento do design inteligente, mostrando como são pobremente projetadas muitas partes da anatomia humana, quantas espécies pereceram desde o começo dos tempos (algo em torno de 99%), o quanto a casualidade e a falta de razão parecem imperar em muitos passos da seleção natural. Eles desejam mostrar que se há um Criador, ele é incompetente; ou, mais exatamente, que há excessivas evidências para a falta de design inteligente. Que tipo de artífice bêbado eles pensam ser Deus? Nosso Deus é o Deus do Absurdo, da noite, do sofrimento e da paz silenciosa.


Ver também "Ateus solitários da Aldeia Global" - Parte I, Parte II e Parte III

25/03/2007

Liberalismo e modernismo

Recentes artigos do filósofo Olavo de Carvalho (Por que não sou liberal e O patinho feio da política nacional) suscitaram uma discussão sobre o liberalismo e o conservadorismo.

Quem acompanha essa discussão em outros países sabe que ela é antiga. Livros, muitos livros já foram escritos por conservadores sobre o conservadorismo e sobre o liberalismo. Dentre esses, destaco dois: The Conservative Mind: From Burke to Eliot, de Russel Kirk e The Meaning of Conservatism, de Roger Scruton. De Scruton temos um texto muito interessante: How to be a Non-Liberal, Anti-Socialist Conservative. Pretendo traduzir este artigo neste blog, assim que Deus me permitir.

Voltando ao nosso grande filósofo, Olavo de Carvalho, parece-me que sua crítica se aproxima sobremaneira da tradicional posição da Igreja católica sobre a questão. Essa posição foi manifesta por muitos papas, desde o século XVIII em diante. Duas encíclicas de Leão XIII são clássicas sobre o liberalismo: Immortale Dei e Libertas. Dom Marcel Lefebvre escreveu um livro sobre o liberalismo, recentemente liberado para download pela Editora Permanência, intitulado “Do liberalismo à Apostasia”.

Os fenômenos do liberalismo e do modernismo estão intimamente relacionados. Sobre o modernismo, uma heresia que tem se mostrado de uma força descomunal contra o cristianismo, há uma carta encíclica de São Pio X, intitulada Pascedi Dominici Gregis, que é um documento extraordinário. Extraordinário pela força da análise e pela determinação papal de lutar contra esta heresia moderna, que o papa considera a síntese de todas as demais heresias. Sobre a Pascendi (que este ano ela faz cem anos -- todos esperamos um documento de Bento XVI sobre ela) há um livro admirável de Michael Davies intitulado Partisans of Error.

Ai estão alguns livros, artigos e documentos que, acho, ajudarão a quem quiser acompanhar a discussão levantada por Olavo sobre o liberalismo, tanto na versão política e filosófica, quanto na versão católica.


24/03/2007

Ateus solitários da Aldeia Global - Parte III

Michael Novak


COMO MINHA FILHA SE TORNOU AGNO-TEÍSTA

Alguns anos atrás, nossa filha nos revelou que ela se tornara “uma agno-teísta.” (Toda família católica bem ordenada deve ter uma.) Quando ela foi para Duke, ela pensava ser uma atéia. Ela certamente encontrou muito ateísmo na atmosfera de lá. Não que todo mundo fosse ateu; longe disso. Era somente que a suposição subjacente em praticamente todo o discurso público era que qualquer pessoa séria é um ateu. Os religiosos previdentes ficavam calados a respeito de suas crenças.

Mesmo assim, não levou muito tempo para que minha filha conseguisse enxergar através da afetação de ateísmo. Em primeiro lugar, a doutrina fundamental parecia ser a de que tudo que é, veio a ser por meio do acaso e da seleção natural. Em outras palavras, no fundo, tudo é irracional, incerto, sem propósito ou ininteligível. O que mais a aborrecia era a afetação de professores pretendendo que tudo fosse um absurdo, enquanto que em questões mais próximas, eles colocavam toda a sua confiança na ciência, na racionalidade e no cálculo matemático. Ela concluiu que os ateus não aceitam as implicações de seus próprios compromissos metafísicos. Enquanto negam o princípio da racionalidade nas coisas mais profundas, eles se apegam a todas as racionalidades nas coisas superficiais. Minha filha achou isso muito pouco convincente.

Ela decidiu que o ateísmo não pode ser verdadeiro, pois ele é autocontraditório. Ademais, essa autocontradição é obstinada e seu propósito latente é pateticamente aparente. Os ateus querem todo o conforto da racionalidade que emana do teísmo racional, mas sem a dívida pessoal a qualquer Criador, Governador ou Juiz. Essa é a razão de eles se permitirem ser racionalista só até a metade do caminho. A alternativa os torna nervosos.

Minha filha concluiu que era mais razoável acreditar que um Deus existia, que ele fez todas as coisas. Mas ela não podia imaginar que diferença isso faria para ela pessoalmente. Por que tal deus se preocuparia com ela, ou com alguém mais? Que diferença prática para o mundo faria tal deus? Além disso, ele não estava nem um pouco certa sobre como pensar em tal deus, se como imagem ou como conceito. Sobre tudo isso ela se considerou agnóstica. Essa é a razão pela qual ela se definia como uma “agno-teísta.”

Parecia estranho à minha filha que pudesse haver tanta razão no mundo, ao passo que não havia razão para o mundo, mesmo com suas manifestas irracionalidades. (Ela própria experimentou dolorosamente muitas tragédias irracionais entre suas amigas tão promissoras, inteligentes e talentosas que foram abatidas em sua juventude.) Nossa filha não é nenhuma Pollyanna. Ela sempre percebeu o lado obscuro e irracional da vida. O que a surpreende é o grau de racionalidade em tudo, não a presença de absurdidades. O que a surpreende em seus professores é a autocontradição na raiz de suas vidas.


Ver também "Ateus solitários da Aldeia Global" - Parte I e Parte II

18/03/2007

Ateus solitários da Aldeia Global - Parte II

Michael Novak



CONSTRUINDO UMA CULTURA DA RAZÃO


Não tenho dúvidas de que os cristãos têm feito muitos males e escrito algumas páginas vergonhosas da história humana. Mesmo assim, num balanço justo do que o judaísmo e o cristianismo adicionaram às culturas pagãs da Grécia, de Roma, das nações Árabes pré-Maomé, da Alemanha, das tribos francas e célticas, dos Vikings e dos Anglo-saxões, é surpreendente que não se encontre um só agradecimento de Dawkins por inovações tais como: hospitais, orfanatos, escolas eclesiais dos primeiros séculos, universidade um pouco mais tarde, alguns dos mais belos trabalhos artísticos – na música, arquitetura, pintura e poesia – do patrimônio humano.

E por que ele omite o árduo trabalho de reflexão sobre conceitos tais como “pessoa”, “comunidade”, “civitas”, “consentimento”, “tirania” e “governo limitado” (“Daí a César o que é de César ,,,”) que tornaram possíveis grandes documentos como, por exemplo, a Magna Carta? Suas poucas páginas sobre a fundação e a manutenção de sua amada Oxford por seus primeiros patronos Católicos são de uma ingratidão escarnecedora. E se Oxford o desaponta, será que ele não é grato pela construção e implantação de virtualmente todas as famosas universidades da Europa (e das Américas)?

Dawkins nada escreve sobre as grandes comunidades religiosas fundadas com o expresso propósito de construir escolas para a educação livre dos pobres. Nada a respeito de milhares de vidas monásticas dedicadas ao delicado e exaustivo trabalho de cópia à mão dos grandes manuscritos do passado – freqüentemente com o generoso amor manifestado nas iluminuras – durante longos séculos em que as prensas ainda não existiam. Nada sobre a fundação da biblioteca do Vaticano e sua importância na gênesis de quase uma dúzia de ciências modernas. Nada sobre os homens cultos, padres e crentes, que contribuíram tanto para cruciais descobrimentos em ciência, medicina e tecnologia. Uma ou duas palavras de elogio sobre tais fatos teria feito a cansativa lista de acusações de Dawkins parecer menos injusta.

Não pretendo exagerar. Houve e há elementos tóxicos na religião que sempre demanda restrição do Logos ao qual o cristianismo, desde o início, associou a tradição bíblica: “No início era o Logos ...” (João, 1:1). Mesmo assim, qualquer análise justa do impacto do judaísmo e do cristianismo na história mundial tem uma enorme quantidade de coisas positivas para adicionar na contabilidade geral. Dentre os meus textos preferidos durante muitos anos, estão, por exemplo, certas passagens de Science and the Modern World e Adventures of Ideas, de Alfred North Whitehead. Nessas passagens, Whitehead enfatiza que as práticas da ciência moderna são inconcebíveis sem os milhares de anos da crença judaico-cristã de que o Criador de todas as coisas compreendia todas as coisas, em suas leis gerais e nas suas disposições particulares e contingentes. Essa convicção, escreve Whitehead, fez com que grandes e disciplinados esforços da razão fossem aplicados na hercúlea tarefa do entendimento de que todas as coisas parecem razoáveis. Se todas as coisas são inteligíveis ao seu Criador, elas devem ser inteligíveis àqueles feitos à Sua imagem, que, em imitação a Ele, dão continuidade à vocação humana de tentar entender tudo que Ele fez.

Ademais, o judaísmo e o cristianismo inculcaram em culturas inteiras hábitos morais e intelectuais específicos, articulando-os com os ensinamentos das antigas tradições clássicas, sem o que as ciências modernas não possuiriam os requisitos morais básicos – honestidade, trabalho duro, perseverança face às dificuldades, respeito pelas descobertas inspiradas e repentinos insights, uma determinação para testar qualquer hipótese razoável. O que seria da ciência moderna sem a crença na inteligibilidade de todas as coisas, mesmo os eventos únicos, não-repetíveis e contingentes, e sem os hábitos, pertencentes à quase todas as culturas, de honestidade, rigor intelectual e perseverante inquirição? Whitehead nos alerta a respeito dessa maravilhosa dívida muitas vezes, muito mais generosamente que Dawkins. Em Science and Modern World (1925), ele escreve: “Minha explicação é que a fé na possibilidade da ciência, nascida anteriormente ao desenvolvimento da teoria científica moderna, é uma derivação inconsciente da teologia medieval.”

O caminho da ciência moderna foi aplainado por profundas convicções de que todo mínimo elemento no mundo da experiência humana – do número de cabelos de nossa cabeça ao solitário lírio no prado – é completamente conhecido pelo seu Criador e, portanto, pertence ao campo da inteligibilidade, de conexões mútuas, e de lógicas múltiplas. Todos os estranhos e angulares níveis de realidade, são penetráveis pela mente humana, desde que sejam despendidos esforços árduos, disciplinados e cooperativos. Se os seres humanos são feitos à imagem de seu Criador, como os primeiros capítulos do livro de Gênesis insistem que são, certamente estão dentro de suas capacidades questionar, ganhar compreensão e avançar o entendimento das obras de Deus. Na grande imagem pintada por Miguelangelo no teto da Capela Sistina – o toque de dedos entre o Criador e Adão – a nuvem cor-de-malva por trás da cabeça do Criador é pintada na forma de um cérebro humano. Imago Dei, de fato.

Tivesse o professor Dawkins feito mesmo um semi-sério arremedo de justiça, eu teria dado muito mais atenção às suas críticas sobre os povos cristãos. Ainda assim, algumas de suas críticas de feitos e modos de pensar cristãos particulares têm sentido. O cristianismo não removeu dos seres humanos toda a capacidade de pecar e o fato de ser cristão não exime a pessoa de cometer atos horrorosos e pecaminosos dos quais a história está cheia de repugnantes exemplos. Pecado, irracionalidade, traição – aos judeus e cristãos nada humano é estranho.

Eu gostaria de poder afirmar que Daniel C. Dennett e Sam Harris são mais abertos e respeitosos que Dawkins; mas seus livros também são decepcionantes. A carta que Harris alega pretender endereçar à nação cristã é, de fato, totalmente desinteressada do cristianismo em qualquer nível, é enormemente ignorante e essencialmente representa sua própria declaração de amor a si mesmo, por causa de sua superioridade em relação aos cidadãos em cujo meio ele vive. O conceito de razão e de ciência de Dennett é tão estreito que ele parece preso a algo como os primórdios de A.J. Ayer. Esperemos que alguma alma corajosa e caridosa, um dia, pegue em sua mão e o leve para fora da caverna onde ele se encontra. Sua tese principal, de que a religião é um “fenômeno natural,” já era gagá no tempo em que Santo Agostinho estava discernindo as novidades que o cristianismo tinha introduzido na religião romana. Mas, claro, a idéia de Dennett de “natural” não é ampla o suficiente para compreender nem a fidelidade heróica de Natan Sharansky, nem o poder eterno e libertador dos pungentes Salmos do Rei David.

Levanto tudo isso em conta, me ocorre que a única forma de prosseguir é descrever, de um lado, a forma com que as mentes jovens e questionadoras são repelidas, nas universidade americanas, pelo ateísmo que é a lingua franca em quase todas as salas-de-aula e discussões acadêmicas, e, de outro lado, fazer uma breve confissão exatamente daquele cristianismo que Dennett, Harris e Dawkins consideram desagradável, mal, perigoso e odioso. Apesar do desrespeito deles, o cristianismo consegue ser, de alguma forma, altamente atrativo a aproximadamente um terço da humanidade (um pouco mais de dois bilhões de pessoas), e é, ainda hoje, a religião que mais cresce dentre todas as outras. É importante explicar a atração antes de discutir suas objeções específicas.



Ver Ateus solitário da Aldeia Global - Parte I

17/03/2007

Ateus solitários da Aldeia Global – Parte I

Michael Novak


Nota Inicial - A revista National Review traz, em sua edição de 19 de março de 2007, uma extensa crítica do católico Michael Novak, sobre três livros de autores ateus. Tanto o crítico como os autores são muito conhecidos por suas respectivas obras. Apresento, a seguir, a primeira parte de minha tradução dessa crítica. As outras partes aparecerão, neste blog, na medida de minhas possibilidades.



A revista Time, uma sempre vigilante descobridora de tendências, celebrou recentemente uma onda de livros de autores ateus – dentre eles, os livros de Sam Harris, de Daniel C. Dennett e o de Richard Dawkins. Esses livros têm três propósitos: acelerar o desaparecimento da fé bíblica, especialmente nos EUA; fazer proselitismo a favor do ateísmo racional; e levantar a moral dos ateus, em parte por meio da divulgação de grupos de ajuda a eles dirigidos. O principal propósito é o primeiro: nas palavras de Harris, “demolir as pretensões intelectuais e morais do cristianismo”.

Mas todos os três livros também revelam um considerável desdém pelo judaísmo. Dawkins o chama de “um culto tribal a um Deus desagradável e feroz, morbidamente obcecado com restrições sexuais, com cheiro de carne queimada, exibindo sua própria superioridade sobre deuses rivais, e sua exclusividade para com sua escolhida tribo do deserto”. Ao Deus do Velho Testamento Dawkins se refere como um “delinqüente psicótico”.

E não é porque eles admirem o Islam; ao contrário, eles usam o Islam para destruir o cristianismo e o judaísmo. Harris diz aos cristãos: “Incréus como eu, estamos ao seu lado, chocados e sem fala, quando vemos hordas de mulssumanos salmodiando a morte de nações inteiras. Mas ficamos também sem fala ao seu lado – pela sua negação da realidade tangível, pelo sofrimento causado pelos seus mitos religiosos e por sua ligação a um Deus imaginário”. Na verdade, então, a principal intenção dos três autores é louvar a superioridade do ateísmo, pelo menos do ateísmo racional de professores como eles.

De fato, há muito que louvar no ateísmo. Com a evidência do admirável código moral descrito por Aristóteles em Ética a Nicômaco em suas mãos, Santo Tomás de Aquino escreveu que para ser bom em, pelo menos, um sentido importante, não é necessário compartilhar a fé bíblica. Aristóteles mostrou um caminho para o florescimento humano, tanto para a comunidade quanto para os indivíduos nobres. (Ser “bom” em outro importante sentido, “nascer de novo” ou “ser salvo”, requer um pouco mais do que Aristóteles poderia oferecer, ou mesmo imaginar.) Além disso, os ateus – ou, pelo menos, os pagãos fora da tradição bíblica – foram capazes de construir edificações magníficas, tais como o Parthenon, as pirâmides do Egito, os palácios da Babilônia; produzir grandes literaturas e iniciar diversas ciências, tais como Astronomia, Aritmética, Medicina e Agricultura. Finalmente, ateus – ou, pelo menos não crentes – sempre foram um estímulo para o entendimento da Bíblia, por levantarem questões, por duvidarem, por insultarem ou mesmo apresentarem respeitosos desafios intelectuais. Foi da classe intelectual pagã que muitos dos primeiros Padres da Igreja (Orígenes, Clemente de Alexandria, o próprio Santo Agostinho) foram trazidos à fé bíblica, e eles freqüentemente continuavam dialogando com seus parceiros incréus, o que muito os ajudaram no aprofundamento de sua fé.

Devo mencionar que meu próprio trabalho inicial foi centrado no diálogo entre crentes e incréus, o horizonte intelectual do Absurdo (como Camus, Sartre e tantos outros o chamavam) e da fé bíblica – em tais livros como Belief and Unbelief e The Experience of Nothingness, por exemplo. Por essa razão, eu queria realmente ter gostado desses novos livros sobre o ateísmo. Eu aprendi muito sobre ateus e crentes com Jürgen Habermas, possivelmente o ateu mais conhecido da Europa. Habermas escreve sobre os crentes com respeito e como parceiros num importante diálogo. Uma respeitosa consideração pela dignidade mútua é, sustenta Habermas, essencial para a prática da racionalidade entre os seres humanos. Recentemente, tive a honra de uma longa troca de idéias com um ateu americano muito inteligente, Heather Mac Donald, cuja condução foi muito prazerosa, pois o debate transcorreu com consideração mútua, paciência e sinceridade de ambos os lados.

Infelizmente, é extremamente difícil conseguir esse mesmo nível de diálogo com Harris, Dennett e Dawkins. Todos eles pensam que a religião é uma ameaça tão grande que não há muita disposição para se conversar. A bandeira de guerra que eles estendem ao vento é o “Ecrazez l’infâme!” de Voltaire. Ao mesmo tempo, todos os três pretendem nos convencer que os ateus “questionam tudo” e “submetem tudo a uma incansável, quase tediosa, autocrítica”. Contudo, nesses livros não há sequer uma sombra de evidência de que os autores tiveram, alguma vez, qualquer dúvida sobre a correção de seu próprio ateísmo. Autoquestionamento sobre suas próprias indiferenças acadêmicas aos seus temas; sobre as brutalidades horríveis cometidas em nome do “ateísmo científico” durante o século XX; sobre as incansáveis e mercuriais insatisfações nos movimentos ateus e seculares, durante os últimos cem anos; e sobre a fraqueza demográfica do ateísmo – todas essas questões estão notavelmente ausentes. Além do mais, apesar de um zeitgeist ateísta dominar os campi universitários americanos, ele não se mostrou persuasivo para um imenso número de estudantes, que tampa os narizes e apenas o suporta. Por que o ateísmo seduz tão poucos? Nossos autores nunca fazem essa pergunta.

Eu, particularmente, queria ter gostado do livro de Richard Dawkins. Tinha ouvido dizer que ele é muito culto e articulado e que ele escreve com a melodia e a espirituosidade de um elegante estilista literário. Seus fãs o apresentam como um modelo do homem razoável. Dawkins, também, apresenta expressamente a si mesmo e a outros ateus como “brilhantes”, distinguíveis pela “saúde” e “vigor” mental. Pobres crentes – ele abertamente lamenta – são, contrariamente, prisioneiros de uma ilusão, acomodados, mentalmente mortos. Ele não faz sequer um gesto no sentido querer aprender algo com eles.

Na realidade, os registros disponíveis sobre Dawkins apontam uma situação ainda pior. Ele apresentou, num canal de televisão inglês, um programa chamado “A raiz de todo o mal?”[1] Apesar de ter, agora, escrito que ele discorda do título que os produtores deram ao programa, ele o aceitou quando da exibição do mesmo. O que ele pede às pessoas religiosas é que: “Imagine, com John Lennon, um mundo sem religião”. Muito da violência e distorção na vida humana não desapareceriam, então? Bem, isso teria sido muito original, se essa visão já não fosse convencional na Inglaterra. Propagado tanto por pop stars e quanto por cientistas, essa visão é, segundo uma pesquisa recente, compartilhada por 70 por cento da população inglesa.

Por todo o Ocidente, parece que nem pop stars nem cientistas consideram, sequer por um momento, a experiência religiosa contemporânea à luz de seus mais heróicos praticantes. Por exemplo, nunca antes tantas pessoas que professam a fé bíblica foram jogadas em campos de concentração, torturadas e assassinadas, como têm acontecido, agora, sob regimes políticos autoproclamados ateus. Teria sido maravilhoso se qualquer um de nossos autores tivesse comparado sua visão da religião com a fé bíblica, conseguida a duras penas, do ex-ateu e cientista Anatoly Sharansky, que cumpriu pena de nove anos num gulag soviético por defender os direitos de cidadãos soviéticos de origem judaica. Sharansky escreveu o registro de seu sofrimento numa brilhante autobiografia, Fear No Evil. Penso nunca ter lido nada sobre um homem com maior coragem moral, determinado a viver como um homem livre, demonstrando corajosamente nada mais que repulsa moral aos agentes da KGB, sob cujo poder total ele tinha de viver. Sharansky viveu, corajosa e temerariamente, dia após dia, privado de alimentação suficiente, privado da visão do azul céu e do banho de sol. Ele foi punido de inumeráveis formas, sob um tipo de condicionamento skinneriano, projetado para “corrigir” seu comportamento e isso continuou ano após ano, na tentativa de esgotar suas resistências, evitando que ele recebesse os mais triviais agrados, atormentando sua alma pelo isolamento e pela falta de apoio humano.

Ironicamente, contudo, suas experiências na prisão levaram Sharansky a dimensões da razão que excedia em muito qualquer coisa que ele tinha encontrado em sua prática científica anterior. Para sobreviver, ele precisava de se abrir, muito mais do que a ciência o tinha ensinado, ao aprendizado. Ele era solicitado a assinar certas inverdades: “Quem saberá sobre isso depois? Que diferença isso fará? É uma coisa tão pequena e que trará coisas tão melhores para você e para todos nós que terá sido pelo bem comum.” Um dos colegas de Sharansky, uma alma nobre, se iludiu em pensar que seria melhor mentir sobre pequenas coisas se, ao final, ele pudesse ser libertado mais cedo e levar a mensagem sobre direitos humanos para fora do gulag. Sharansky observou outros homens tentando manter seus espíritos fortalecidos pela esperança – esperança por tratamento melhor, esperança por uma libertação mais rápida, que, então, repentinamente ficaram tão enfraquecidos por falsas esperanças que não conseguiam mais resistir à cumplicidade. Sharansky descobriu que ele precisava de uma fonte de discernimento mais profunda do que tudo o que ele tinha conhecido previamente.

Naqueles dias, o amor de sua amada e corajosa esposa, amigos e outros dissidentes, vinham visitá-lo em sua cela através de raras cartas e mensagens. Mas tais mensagens poderiam tê-lo enfraquecido e traído. Em seus tormentos d’alma, ele encontrou uma grande companhia no Rei David de muitos séculos atrás, quando uma edição, em hebreu, dos Salmos caiu em suas mãos. O realismo de David calou fundo em seu coração e fortificou enormemente suas defesas. Ele aprendeu a força de pertencer a uma comunidade – sua comunidade – em compartilhar rituais tradicionais, encontrando sustentação nos sofrimentos, lutas e sabedoria de seus ancestrais. Inconscientemente, um de seus colegas de cela (que poderia estar trabalhando para a KGB) deu a Sharansky outra lição sobre a “interconexão das almas”. Um dos maiores heróis científicos de Sharansky era Galileu. Ao dizer a Sharansky sobre como outros prisioneiros tinham feito “a vida mais fácil para todo mundo” por simplesmente assinarem inofensivos papéis a que ninguém, no mundo lá fora, teria acesso, seu colega de cela mencionou como, mesmo Galileu, tinha sido persuadido a assinar afirmações sobre seus próprios erros, somente para se livrar de toda aquela confusão. As palavras de seu colega de cela caíram como um raio na mente de Sharansky, causando a vívida consciência da interconexão de todas as almas através da história – aqueles que permanecem leais à verdade e aqueles que a traem. A traição de Galileu, ocorrida há quatrocentos anos atrás, estava agora sendo usada para seduzir Sharansky, da mesma forma que toda a rendição espiritual de outros indivíduos no gulag era usada para não deixá-lo esquecer de que a resistência era inútil a longo prazo. Naquele raio, Sharansky viu o poder da verdade interior ao longo dos séculos, aquele tipo de cinturão eletrônico de fidelidade que mantém unidas todas as regiões todo o tempo, em tantos quantos forem os corações que permanecem leais à verdade. Sharansky quis renascer como membro daquela comunidade e mudou seu nome para Natan, indicando a comunidade bíblica com a qual ele queria ser identificado a partir de então.

Sharansky se tornou, ainda no gulag, um judeu progressivamente mais praticante, forçando mesmo, numa cena cômica, seu supervisor a acender com ele o menorah. Sharansky escreve muito pouco sobre Deus diretamente, mas está acima de qualquer dúvida que ele tenha visto algo profundamente deficiente em seus hábitos mentais científicos anteriores. Ele também se envergonhou de sua posição anterior de agnosticismo e de seu desdém em relação à “religião organizada”. A comunidade que preservou os Salmos do Rei David por tantos séculos ofereceu à sua alma companhia e o “recarregou” para que ele resistisse, num momento crucial de seu longo confinamento.

Foi, então, um enorme desapontamento descobrir que Dennett, Harris e especialmente Dawkins não prestam a mínima atenção às experiências reais de conversão e às narrativas de fidelidade, que são tão comuns na “literatura de prisão” de nosso século. Ademais, nenhum deles põe suas fracas, confusas e insondadas idéias sobre Deus sob escrutínio. O hábito natural de suas mentes é antropomórfico. Eles tendem a pensar em Deus como se ele fosse um ser humano, submetido às limitações humanas. Eles são quase tão literais em suas leituras da Bíblia quanto aqueles personagens ignorantes da Geórgia rural de Flannery O’Connor. Eles se deleitam em descobrir contradições e impossibilidades em suas leituras literais, mas toda força do ridículo que eles querem mostrar depende do equívoco da leitura literal das passagens bíblicas mencionadas, que são ora alegóricas, ora metafóricas, ora poéticas, ora prenhe de múltiplos significados, para a nutrição de uma alma sob tensão. A Bíblia quase nunca pretende ser ciência ou mesmo história estritamente literal.

Nossos três autores se orgulham de como as ciências avançam ao longo do tempo e, também, em como o pensamento moral tem se tornado, de certa forma, mais profundo e mais exigente. Eles não dão nenhuma atenção às formas por meio das quais o entendimento religioso também cresce, se desenvolve e evolui. Eles parecem ignorar completamente o pequeno, mas brilhante, ensaio de John Henry Newman, Essay on the Development of Christian Doctrine. Eles parecem desconhecer que a fé bíblica tem estado, desde seu início, em constante – e mutuamente enriquecedor – diálogo com a inteligência cética e secular. Pode-se identificar o progresso do entendimento religioso nos próprios textos bíblicos, de uma era a outra, e os próprios autores da Escritura chamam nossa atenção quanto a isso.

Nossos três autores, ao que parece, se tornam um pouco cegos por sua própria repugnância à religião. Mesmo seus bons amigos, Dawkins escreve, lhe perguntam porque ele é tão “hostil” às pessoas religiosas. Por que você, eles dizem, uma pessoa tão inteligente, não apresenta, calma e serenamente, seus argumentos devastadores contra os crentes? A resposta de Dawkins a seus amigos é direta: “Sou hostil à religião fundamentalista porque ela debocha do empreendimento científico ... A religião fundamentalista tem, resolutamente, arruinado a educação científica de incontáveis inocentes, ansiosos e bem intencionados jovens. A religião não fundamentalista, que age com bom-senso, pode não estar fazendo isso. Mas está favorecendo o fundamentalismo por ensinar às crianças, desde a mais tenra idade, que a fé cega é uma virtude.” Dawkins recusa-se a ser parte da “conspiração” pública de respeito à religião, quando ela merece desdém.

Contudo, sua alegação sobre a fé “cega” parece um pouco estranha. Alguns de nós pensamos que a origem da religião está no impulso humano ilimitado de fazer perguntas – que é nossa experiência fundamental do infinito. Qualquer coisa finita que encontramos pode ser questionada, e parece, ao final, insatisfatória. Aquela experiência do infinito é a que impulsiona a mente e a alma e as fornece o primeiro antegozo do que está além do tempo e do espaço. “Nossos corações estão inquietos, Senhor”, lembrou Santo Agostinho, com muita ressonância em milhões e milhões de mentes através da história humana desde sempre. “Fé cega”? Os escritos dos pensadores medievais registram questão após questão, disputatio após disputatio, e os resultados reais na história dependiam da resolução de cada uma delas.[2] Muitas das questões surgiram dos advogados, filósofos e outros indivíduos nas universidades medievais que eram céticos e incréus; outras surgiram dos estudiosos árabes cujos trabalhos tinham chegado recentemente às universidades ocidentais; e ainda outras vinham de Maimônides e de acadêmicos judeus; e um grande número delas vinha dos grandes pensadores pagãos de cada um dos séculos anteriores. Questões têm sido o coração e a alma do judaísmo e do cristianismo por milênios.

Naturalmente, Dawkins pelo menos pensa que há algumas pessoas religiosas que podem ser convertidas ao ateísmo por meio de seus argumentos. Ele as descreve como pessoas de “mente aberta, cuja doutrinação infantil não foi tão insidiosa ou que não foi ‘engolida’ por ter encontrado uma robusta inteligência, ou por alguma outra razão.” Dawkins apresenta a tais crentes um ultimatum: ou se juntem a ele e “se livrem do vício da religião completamente”, ou permaneçam entre os tipos mais intolerantes que são incapazes de superar a “ilusão de deus”.

Na quinta página de seu livro, Dawkins descreve suas esperanças: “Se este livro atingir seu objetivo pretendido, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus ao fecharem-no.” Surpreendeu-me que Dawkins seja capaz de tais proselitismos. Mais que tudo, o que me surpreendeu é que, apesar de os três autores escreverem como se a ciência fosse o princípio e o fim de todo discurso racional, seus três livros não são, de forma alguma, científicos. Ao contrário, eles são exemplos de dialética – argumentos a partir de um ponto de vista, ou horizonte, direcionados aos seres humanos que compartilham pontos de vista diferentes. Certamente, um das mais nobres tarefas da razão é entrar, respeitosamente, em discussão com os outros, cuja visão da realidade é dramaticamente diferente de sua própria, a fim de que ambas as partes possam aprender com a troca de idéias, e alcançar um respeito mútuo mais profundo. Nossos autores usam a dialética, não a ciência, mas de uma forma que dificilmente pode ser descrita como respeitosa para com aqueles com que eles pretendem discutir. Como diz Dawkins: “É claro que os crentes radicais são imunes aos argumentos, sua resistência cresceu por anos de doutrinação na infância ... Dentre os mais efetivos procedimentos imunológicos está a terrível advertência para se evitar até abrir um livro como este, que é, certamente, um trabalho de Satã.” Aqui, claro, Dawkins se cobre de lisonja. O demônio teria sido muito mais insidioso.

O que mais me surpreende no livro de Dawkins, contudo, é sua atitude defensiva. Ele descreve os ateus, particularmente nos EUA, como sofrendo de solidão, desrespeito público, isolamento espiritual e baixa auto-estima. Em uma passagem ele menciona uma carta a ele dirigida por uma jovem cristã, estudante de Medicina, que recentemente tinha se tornado atéia. Uma estudante de Medicina? Certamente, muitos médicos e estudantes de Medicina no seu entorno são ateus. No entanto, a estudante escreve: “Eu não quero compartilhar minha crença com outras pessoas que me são próximas porque temo a .. reação de desgosto. ... Apenas escrevo a você porque espero sua simpatia para com minha frustação.” Num apêndice, que Dawkins generosamente adiciona para tais almas desfavorecidas, ele apresenta uma lista de organizações em que ateus solitários podem encontrar companhia e consolo. Ele devota não poucas páginas para levantar a moral de sua comunidade – falando sobre o quão numerosos eles são, o quanto eles são inteligentes e o quanto seus antagonistas são fastidiosos, em comparação.




[1] Ver comentários de Roger Scruton sobre este programa em “Dawkins está errado”. (N. do T.)
[2] Sobre as discussões medievais e suas terríveis conseqüências atuais, ver “A dissolução do Ocidente: uma introdução”. (N. do T.)

05/03/2007

Um pouco mais sobre a Teologia da Embromação – entra em cena São Francisco de Sales

Não faz muito tempo, escrevi um texto para o MSM intitulado “Antídotos contra a Teologia da Libertação” que constava de uma nota introdutória e de dois textos: um de Luis Pazos e outro de Russel Kirk. Ambos falam sobre o conceito de pobreza que aparece nas bem-aventuranças: “Bem-aventurados os pobres de espírito ...”. Ambos demonstram cabalmente a falácia da Teologia da Libertação.

O então Cardeal Ratzinger escreveu no prefácio da reedição de 2000 do seu “Introdução ao Cristianismo” que “Durante mais de uma década, a teologia da libertação parecia indicar a nova direção na qual a fé haveria de tornar-se novamente formadores do mundo porque se unia de uma nova maneira com as descobertas e injunções do momento histórico. (...) Parecia então ser Marx o grande guia. Cabia agora a ele o papel que, no século XIII, tinha sido de Aristóteles; a sua filosofia pré-cristã (e portanto ‘pagã’) precisou ser batizada para que a fé e a razão pudessem encontrar a sua relação correta. Mas quem aceita Marx (em qualquer uma das variantes neomarxistas) como o representante de uma razão universal não adota simplesmente uma filosofai, uma visão da origem e do sentido da existência, assume sobretudo uma prática [negrito meu]. (...) Quem faz de Marx o filósofo da teologia aceita a primazia dos elementos político e econômico que passam a ser as verdadeiras forças da salvação. (...) O que ficou foi a figura de Jesus, só que este já não era visto como o Cristo e sim como a personificação dos sofredores e oprimidos e como a voz deles que clama por mudança, pela grande modificação.

Assim, Jesus veio salvar os pobres econômicos e os oprimidos sociais por meio de um marxismo pré-Marx. É portanto fundamental que os pobres de espírito sejam mesmo os pobres econômicos e assim essa distorção monstruosa começou a ser propagada pelos defensores da TL em todas as paróquias, em todos os textos por eles escritos e até em comentários de textos sagrados (Ver “Exegese de uma Exegese Bíblica”).

Ocorre que há uma tradição antiqüíssima de comentários de santos e filósofos cristãos sobre as bem-aventuranças e sobre o conceito de “pobres de espírito” não paira a menor dúvida. Vou apresentar a seguir o comentário de São Francisco de Sales (1567-1622) sobre esse assunto. É o capítulo XIV da parte III do livro “Filotéia: uma introdução à vida devota”.

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Capítulo XIV

O espírito de pobreza unido à posse de riquezas

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. Malditos, pois, são os ricos de espírito, porque deles é a miséria do inferno. Rico de espírito é todo aquele que tem o espírito em suas riquezas ou a idéia das riquezas em seu espírito; pobre de espírito é todo aquele que nenhuma riqueza tem em seu espírito nem tem o seu espírito nas riquezas. Os alciões fabricam seus ninhos dum modo admirável; a sua forma é semelhante a uma maçã, apenas com uma pequena abertura em cima; colocam-nos à beira do mar e tão firmes e impenetráveis são que, subindo as vagas à praia, nenhuma gota d’água pode entrar, porque se conservam boiando e flutuando com as ondas; permanecem no meio do mar, sobre o mar e senhores do mar. Eis aí a imagem do teu coração, Filotéia, que deve estar sempre aberto para o céu e ser impenetrável ao amor dos bens deste mundo. Se és rica, conserva teu coração desapegado de tuas riquezas, elevando-te sempre acima delas, de sorte que, no meio das riquezas, estejas nas riquezas e sejas senhora das riquezas. Não, não permitas que esse espírito celeste se encha dos bens terrestres; mas esforça-te por estar superior a todos os seus atrativos e a te elevares sempre mais par ao céu.

Grande diferença há entre ter o veneno e ser envenenado. Quase todos os farmacêuticos possuem muitos venenos para diversos usos de seu ofício, mas não se pode dizer que estejam envenenados porque têm o veneno em suas farmácias. Assim também podes possuir riquezas sem que o seu veneno natural penetre até tua alma, contanto que as tenhas só em tua casa ou em tua bolsa, e não no coração. Ser rico de fato e pobre no afeto é a grande ventura dos cristãos, porque ao mesmo tempo têm as comodidades das riquezas para esta vida e os merecimentos da pobreza para a outra. Ah! Filotéia, ninguém confessa que é avarento, todos aborrecem esta vileza do coração. Escusam-se pelo número crescido de filhos, alegando regras de prudência, que exigem um fundo firme e suficiente. Nucas se têm bens demais e sempre se acham novas necessidades para ajuntar ainda mais. O mais avarento nunca crê em sua consciência que o é. A avareza é uma febre esquisita, que tanto mais se mostra imperceptível quanto mais violenta e ardente se torna. Moisés viu uma sarça ardendo em um fogo do céu, sem se consumir; o fogo da avareza, ao contrário, devora e consome o avarento, sem o queimar; ao menos, ele não lhe sente os ardores e a alteração violenta que lhe causa parece-lhe uma sede natural e suave.

Se desejas com ardor e inquietação e por muito tempo os bens que não possuis, crê-me que és avarenta, embora digas que o não queres possuir injustamente; do mesmo modo que um doente que deseja beber um pouco d’água com ardor, inquietação e por muito tempo, está mostrando com isso que tem febre, embora só queira beber água.

Não sei, Filotéia, se é um desejo justo o de adquirir justamente o que outros justamente possuem; parece-me que, agindo deste modo, procuramos a nossa comodidade à custa do incômodo de outrem. Quem possui um bem com pleno direito, não terá mais razão de o conservar justamente do que nós de o desejar justamente? Por que motivo, pois, estendemos nós o nosso desejo sobre a sua comodidade, para o privar dela? Mesmo que este desejo fosse justo, caridoso não seria de modo algum, nem nós quereríamos que outros o tivessem a nosso respeito. Este foi o pecado de Acab, que quis obter por meios justos a vinha de Nobot, o qual a queria conservar com maior direito. Este rei a desejou por muito tempo e com muito ardor e inquietação e com isso ofendeu a Deus.

Quando o próximo desejar desfazer-se de um bem, então é tempo, Filotéia, de começar a desejar obtê-lo; o seu desejo fará o teu justo e caridoso. Sim, nada tenho que dizer em contrário, se te esforças por aumentar os teus bens com uma tal caridade e justiça.

Se amas os bens que possuis, se eles ocupam teu pensamento com ansiedade, se teu espírito anda sempre aí de envolta, se teu coração se apega a eles, se sentes um medo muito vivo e inquieto de perdê-los, crê-me que ainda estás com febre e o fogo da avareza ainda não está extinto em ti; pois as pessoas que estão com febre bebem com uma certa avidez, pressa e sofreguidão a água que se lhes dá, o que não é natural nem ordinário nas pessoas sãs; e não é possível agradar-se muito de uma coisa sem se apegar a ele. Se na perda dum bem sentes o coração aflito e desolado, crê-me, Filotéia, patenteia tão claramente o apego que se tinha a uma coisa perdida, como entristecer-se pela perda.

Nunca fomentes um desejo completo e voluntário por uma coisa que não possuis; não pren das o coração em bem algum teu; não te entristeças nunca das perdas que sobrevierem; então, sim terás um motivo razoável de pensar quem, sendo rica, de fato és, entretanto, pobre de espírito e, por conseguinte, do número dos escolhidos, porque o reino dos céus te pertence.
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