02/07/2006

Dawkins está errado

Roger Scruton

Face ao espetáculo de crueldades perpetradas em nome da fé, Voltaire bradou o famoso “Ecrasez l’infâme!” Numerosos pensadores iluministas o seguiram, declarando que a religião organizada é inimiga da raça humana, a força que divide o crente do infiel, com isso, tanto excitando quanto autorizando o assassínio. Richard Dawkins, cuja série de TV “A raiz do mal?” exibe seu último capítulo na próxima segunda-feira[1], é o mais influente exemplo dessa tradição. E ele a está embelezando com sua própria e surpreendente teoria – a teoria da “meme” religiosa. Uma meme é uma entidade mental que coloniza o cérebro das pessoas, de forma similar a que um vírus coloniza uma célula. A meme explora seu hospedeiro para se reproduzir, difundindo-se de cérebro a cérebro, como a meningite, e destruindo os poderes de seu competidor – o argumento racional. Como os gêneros e as espécies, as memes são indivíduos darwinianos, cujo sucesso ou fracasso depende de suas habilidades em encontrar um nicho ecológico que propicie a reprodução. Tal é a natureza do “óleo gerin,”[2] como Dawkins descreve, depreciativamente, a religião.

Essa analogia com a teoria biológica da reprodução tem uma qualidade espantosa. Ela parece explicar o extraordinário poder de sobrevivência do nonsense e o constante “adormecimento da razão” que, na gravura de Goya, convida os monstros. Frente a uma página de Derrida – e sabendo que tal idiotice está sendo lida e reproduzida em milhares de campi americanos – tenho sido, constantemente, tentado pela teoria da meme. A página em minhas mãos é, claramente, o produto de um cérebro doente e a doença é infecciosa, em altíssimo grau: o próprio Derrida admitiu isso quando se referiu ao “vírus desconstrutivo”.

Apesar de tudo, não estou inteiramente persuadido por essa analogia genética. A teoria de que as idéias têm a tendência de se propagar, apropriando-se da energia do cérebro que as hospeda, lembra o perito médico de Molière (Le malade imaginaire) que explicava o fato de o ópio induzir ao sono, referindo-se ao seu virtus domitiva. A coisa só parece uma explicação quando “lemos” nas alegadas causas, as distintas características de seus efeitos, imaginando idéias como entidades cuja existência depende, como a dos gêneros e espécies, da reprodução.

Contudo, concedamos a Dawkins a tentativa de formulação de uma teoria. Devemos ainda lembrar que nem todo organismo dependente destrói seu hospedeiro. Além dos parasitas, há também os simbiantes e os mutualistas – invasores que, ou não impedem, ou mesmo amplificam as possibilidades reprodutivas do hospedeiro. Como classificar a religião? Por que ela tem sobrevivido, se não confere nenhum benefício aos seus adeptos? E o que acontece com as sociedades que se vacinam contra a infecção – a sociedade soviética, por exemplo, ou a Alemanha nazista –, experimentaram elas um ganho em seu potencial reprodutivo? É claro que muito mais pesquisa será necessária se formos apoiar firmemente uma vacinação em massa em vez de (minha opção preferida) respaldar a religião, que parece muito mais adequada a moderar nossos instintos beligerantes, e que, fazendo isso, nos pede para perdoar a quem nos ofende e, humildemente, reparar nossas faltas.

Assim, há memes más e memes boas. Usemos a matemática como exemplo. Ela se propaga através dos cérebros humanos porque é verdadeira; indivíduos inteiramente “a-matemáticos” – que não conseguem contar, subtrair ou multiplicar – não têm filhos, pela simples razão de que eles cometem erros fatais antes disso. A matemática é um mutualista real. O mesmo não é verdade sobre a má matemática, é claro; mas má matemática não sobrevive, precisamente porque ela destrói o cérebro em que se hospeda.

Talvez a religião, a esse respeito, seja como a matemática: sua sobrevivência tem algo a ver com a verdade. Não é uma verdade literal, é claro, nem uma verdade integral. De fato, a verdade de uma religião está menos no que é revelado em suas doutrinas, do que no que é ocultado em seus mistérios. As religiões não revelam seus significados diretamente porque elas não podem fazê-lo; seus significados têm de ser alcançados por adoração e oração, e por uma vida de obediência silenciosa. No entanto, verdades ocultas são ainda verdades; e talvez possamos ser guiados por elas tal como o somos pelo sol, contanto que para ele não olhemos diretamente. O contato direto com a verdade religiosa seria como o encontro de Semele com Zeus, uma conflagração súbita.

Para Dawkins, a idéia de uma verdade puramente religiosa não tem valor algum. Os mistérios da religião, ele diria, existem para vetar todo o questionamento, dando à religião uma vantagem em relação à ciência, na luta pela sobrevivência. De qualquer forma, por que há tantos competidores dentre as religiões, se elas estão competindo pela verdade? Não deveriam as falsas ter desaparecido, como acontece às teorias científicas refutadas? E como a religião aprimora o espírito humano, quando ela parece autorizar os crimes, agora, cometidos por mussulmanos e que são apenas sombras dos crimes espalhados pela Europa quando da Guerra dos Trinta Anos?

Essas são grandes questões, irrespondíveis em um programa de TV, por isso, eis um esboço das minhas respostas. As religiões sobrevivem e florescem porque são um convite ao espírito de grupo – elas promovem os costumes, as crenças e os rituais que unem as gerações numa forma de vida compartilhada e semeiam as sementes do respeito mútuo. Como todas as formas de vida social, elas são inflamadas nas fronteiras, onde competem por territórios com outras profissões de fé. Culpar as religiões pelas guerras conduzidas em seu nome é, no entanto, como culpar o amor pela guerra de Tróia. Todos os motivos humanos, mesmo os mais nobres, alimentarão as chamas do conflito quando reunidos pelo “imperativo territorial” – isso também nos ensinou Darwin, e Dawkins, certamente, deve tê-lo notado. Livre-se da religião, como os nazistas e comunistas fizeram, e você nada faz para suprimir a procura por Lebensraum. Você, simplesmente, remove a principal força de misericórdia no coração humano ordinário e faz, assim, a guerra impiedosa; o ateísmo descobriu sua prova em Estalingrado.

Há uma tendência, alimentada pelo sensacionalismo televisivo, de julgar todas as instituições humanas pelo seu comportamento em tempos de conflito. A religião, como o patriotismo, tem uma imagem negativa entre aqueles para quem a guerra é a única realidade humana, a única ocasião em que o Outro, em todos nós, é perceptível. Mas o teste real de uma instituição humana é o período de paz. A paz é tediosa, cotidiana e, também, cansativa na televisão. Mas, você pode aprender sobre ela nos livros. Aqueles criados na fé cristã sabem que a capacidade do cristianismo em manter a paz no mundo ao nosso redor reflete seu dom de paz interior. Numa sociedade cristã não há necessidade de Asbos[3] e num mundo pós-religioso elas não farão nenhum bem – elas estarão em sua última e desesperada tentativa de nos salvar dos efeitos da ausência do sagrado, e a tentativa está fadada ao fracasso.

Os mussulmanos dizem coisas parecidas, assim como os judeus – na realidade, todos que possuem a verdade. Mas, como saber? Bem, nós não sabemos, nem precisamos saber. Toda a fé depende da revelação, e a prova da revelação está na paz que ela traz. Argumentos racionais só nos podem trazer até aqui, em elevar a fé monoteísta acima de um mundo enlameado de superstições. Podem nos ajudar a entender a diferença real entre a fé que nos exige que perdoemos nossos inimigos e aquela que nos exige que os esfolemos. Mas o salto da fé propriamente dita – o colocar sua vida a serviço de Deus – é um salto sobre o limite da razão. Isso não o faz irracional, tanto quanto se apaixonar não é irracional. Ao contrário, é a submissão do coração a um ideal, e uma aposta no amor, na paz e no perdão que Dawkins está, também, procurando, pois ele, como o resto de nós, foi feito desta mesmíssima forma.


Artigo publicado no The Spectator


[1] Este artigo foi escrito em 12/01/2006. (N. do T.)

[2] Droga alucinógena, altamente viciante. (N. do T.)

[3] Asbo – anti-social behaviour order (ordem anti-social) – ordem judicial, do sistema judicial escocês e inglês, emitida contra uma pessoa que supostamente tenha tido uma conduta anti-social. (N. do T.)

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