10/11/2018

Encíclica Quanta Cura e Machado de Assis

A Encíclica Quanta Cura, de 8 de dezembro de 1864, é uma das encíclicas mais importantes do século XIX. O Papa Pio IX condena, na encíclica e no Syllabus que lhe seguiu, os erros de seu tempo que, infelizmente, são os de nosso tempo, agravados pela crise da Igreja, depois do Concílio Vaticano II. Lembremos aqui as palavras do Cardeal Ratzinger:

“Se se deseja emitir um diagnóstico global sobre este texto [Gaudium et Spes] poder-se-ia dizer que significa uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de anti-Syllabus.
(…)
Contentemo-nos aqui com a comprovação de que o documento desempenha o papel de um anti-Syllabus, e, em conseqüência, expressa a intenção de uma reconciliação oficial da Igreja com a nova época estabelecida a partir do ano de 1789.” (Cardeal Joseph Ratzinger, Teoria dos Princípios Teológicos, Editorial Herder, Barcelona, 1985, pág. 457-458).

Pois bem, descubro agora uma crônica de Machado de Assis, de 7 de fevereiro de 1865, em que o escritor dá conta da publicação da encíclica. Mostra como ela foi importante para a época e como ele pessoalmente via o Papa Pio IX, profetizando, inclusive, uma futura canonização desse papa. Ao final, nos dá uma amostra de como a encíclica foi recebida por parte do clero brasileiro. 

Fiquemos com Machado e sua crônica.

Não levantarei mão das coisas do mundo político, sem dar os meus parabéns ao Cruzeiro do Brasil, cuja alma naturalmente nada agora de júbilo com a publicação da encíclica de Pio IX.
Sinto não ter à mão o número de domingo, que ainda não li, mas que há de estar impagável, mais do que costuma.

Não sei se tenho crédito no espírito do Cruzeiro do Brasil; tenha ou não tenha, não guardarei para mim uma profecia que me está a saltar da pena: Pio IX há de ser canonizado um dia.

Os papas, de certo tempo para cá, entraram mais raramente para a lista dos santos. Todos os primeiros pontífices, entretanto, gozam dessa honra. Será uma espécie de censura póstuma? Não quero investigar este ponto. Insisto, porém, na crença de que Pio IX há de receber a coroa dos eleitos. É principalmente aos bispos de Roma que se aplicam estas palavras: muitos serão os chamados e poucos os escolhidos.

Que o santo padre merece da parte dos fiéis mais do que respeito, adoração, isso é o que me parece incontestável No meio dos perigos que o cercam, tendo contra si as potências, ameaçado de perder os últimos pedaços de terra, o débil velho não se assusta; toma friamente a pena e lança contra o espírito moderno a mais peremptória condenação. É positivamente arriscar a tiara.

Não sei que farão os nossos bispos com a encíclica. A encíclica é a condenação dos princípios fundamentais da nossa organização política. Quero crer que estenderão um véu sobre esse documento: acredito igualmente que as folhas de Pernambuco vão publicar brevemente um artigo de monsenhor Pinto de Campos em oposição à encíclica — a menos que monsenhor Pinto de Campos não esteja tão disposto a aceitá-la, que desista para sempre de ser deputado, — o que não me parece provável.


P. S.: Para outras referências de Machado de Assis no blog, clique aqui e aqui.

4 comentários:

Renan Cunha disse...

Qual a fonte desse artigo? Onde posso encontrá-lo também para referenciar?
Obrigado.

Antônio Emílio Angueth de Araújo disse...

Caro Renan, o artigo completo está neste link:
http://www.cronicas.uerj.br/home/cronicas/machado/rio_de_janeiro/ano1865/07fev65.htm

Renan Cunha disse...

Muito obrigado. Achei bastante interessante, porque, se não me engano, Machado de Assis era ateu, né?

Antônio Emílio Angueth de Araújo disse...

Sim, ele era ateu. Mas, no século XIX, os ateus viviam num ambiente muito católico e não poderiam desconhecer as coisas da Igreja. Além disso, por meio de seus contos e romances, Machado se mostrava muito inserido na tradição cristã. Leia, por exemplo, o ensaio sobre Machado, no livro O Desconcerto do Mundo, de Gustavo Corção, e você verá de que estou falando.