13/11/2018

O deslocamento da função magisterial depois do Concílio Vaticano II, por Romano Amerio - Parte V

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V – O deslocamento do Magistério leva à dissolução da unidade da fé na multiplicidade de opiniões

21. O princípio da autoridade do Soberano Pontífice resulta de que sua palavra é vicarial da Palavra divina, ela exprime a lei moral decorrente da Encarnação do Verbo. As verdades que vibram nas Encíclicas de João Paulo II são as verdades centrais. E acima de todas essas verdades há a verdade fundamental do cristianismo: isto é, que Deus se revela hic et nunc, aqui e não lá, agora e não antes. Contudo, hoje em dia, esta verdade primordial é colocada em dúvida, como lemos na Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente; em seus parágrafos se desenvolve a doutrina que afirma que “o cristianismo é a resposta à aspiração que se eleva de todas as religiões: do budismo, do hinduísmo, do islamismo”. Mas o cristianismo não é uma resposta a essas religiões, (“Não entregues senhor – disse a rainha Ester – o teu cetro àqueles [deuses] que não são nada, para que não escarneçam de nossa ruína”, Est 14,11) porque o cristianismo e a Palavra divina revelada somente ao povo eleito, num tempo determinado, num lugar determinado, como canta o salmo 147,20: “Non fecit taliter omni nationi [Não fez assim a todas as nações]”.

22. Deus, potência absoluta, pode salvar todo homem sem batismo, mas por potência ordenada,[1] não o pode, pois a salvação sem batismo não faz parte do sistema, da economia desejada por Deus. A salvação dos não batizados é excepcional, é extra-sistemática, pois ela não pertence ao sistema que é centrado em Cristo e na concepção trinitária de Deus. Mas quando se diz: o homem se salva sem a graça, sem o batismo, apenas pela virtude de suas obras de homem religioso, bom, piedoso, justo, entra-se no sistema pelagiano. O sistema pelagiano tem merecido bastante atenção da parte dos teólogos modernos, porque o mundo se impregna do espírito pelagiano.

23. A fase final da síntese mostra que a decadência da autoridade do Magistério episcopal, abandonando a autoridade aos teólogos, gira em torno de uma autoridade individual, em torno do desenvolvimento que o Papa dá a suas opiniões privadas, em detrimento da Doutrina universal e da Tradição. Mas há uma outra coisa ainda mais aflitiva; há uma segunda realidade, mais universal, mais impalpável; causada pela demissão do Magistério episcopal, que se estende ao mundo inteiro ante à arrogância de opiniões teológicas as mais disparatadas, as mais variadas e as mais ricas.

24. Opiniões disparatadas, pois chamamos disparatadas o que difere, em alguma coisa, do essencial. Variadas, porque chama-se variada o que difere, em alguma coisa, do acidental. Duas coisas disparatadas são duas coisas de gênero diferente; duas coisas variadas são duas coisas que podem pertencer a um mesmo gênero. O mesmo se aplica às opiniões teológicas que pululam nesses últimos trinta anos, no mundo católico pós-conciliar. Elas diferem da doutrina una e santa porque, quando são do mesmo gênero, elas se distanciam segundo os acidentes. Elas, mais frequentemente, não são do mesmo gênero; isto é, elas não têm a mesma raiz sobrenatural que faz a doutrina católica um unicum. Em terceiro lugar, finalmente, eu digo; opiniões teológicas ricas, no sentido em que os mesmos teólogos falam de riqueza do pensamento teológico quando muitas outras mentalidades se misturam à mentalidade de nossa fé; a mentalidade de fés estrangeiras tais como: protestante, hebraica, budista, islâmica, animista.

25. Fazendo convergir os olhares para essa trilogia de opiniões variadas, disparatadas e ricas, num certo sentido, podemos dizer que hoje a doutrina da fé não é mais uma única. A unidade da Igreja deveria ser essencialmente teórica, doutrinal, pois se trata de coisas do intelecto, se trata da atividade teórica, não de uma unidade de gabinetes ou de indumentária. Ademais, o Santo Padre sustenta que existe uma unidade moral nas diversas religiões, todas ordenadas à salvação, de forma que todas as religiões e todas as culturas são “idealmente” uma só, sem que haja unidade doutrinal. Elas confessam assim que são doutrinariamente disparatadas: é nos detalhes que se encontram as diferenças teóricas.

26. Unidade da fé: cada um entre nós deve ter a certeza a priori de pensar que tudo o que pensam os outros cristãos do mundo, e tudo que pensaram através de todos os séculos, é idêntico ao que se crê. Devo ter a certeza a priori de crer tudo o que crê outro cristão sem verificar o que este outro cristão professa. No meu Iota Unum, falando da infalibilidade, eu disse também que cada cristão, quando anuncia uma verdade da fé, é infalível. Por exemplo: o Santo Padre anunciou infalivelmente que a Virgem Maria é isenta do pecado original, então quando repito o anúncio do Soberano Pontífice, sou infalível, não posso, pois, temer enganar-me. Esta doutrina põe em evidência a univocidade da doutrina da fé: “univocidade” por causa de tantas vozes, de milhões de vozes, de uma miríade de homens, que professam e sempre professaram a única doutrina do Verbo engendrado pelo pensamento do Pai. “Ninguém jamais viu a Deus; o Unigênito, que está no seio do Pai, ele mesmo é que o deu a conhecer.” (Jo 1, 18)

27. A fé que é, por natureza, una e unívoca, se tornou hoje aquela dos carismáticos, que não é aquela dos neocatecúmenos, que não é aquela do cardeal Ratzinger, que não é aquela do cardeal Martini e que não é aquela do Papa. E cada um vai ao rádio, à televisão, escreve nas revistas e livros e dá testemunho de sua fé “particular”. Todos esses testemunhos, todas essas manifestações de fé, têm em comum certa relação com a fé católica; essas são as opiniões em torno da fé católica e dissidentes da fé católica. Podemos ainda dizer que esses teólogos são católicos?
     


[1] (...) dizemos que Deus pode, por potência abso­luta, tudo o que é atribuído ao seu poder, em si mesmo considerado. E isto abrange tudo o que tem natureza de ser, como vimos4. Dizemos, porém, que Deus pode, por potência ordenada o que a esta é atribuído, enquanto executora da ordem da vontade justa. Por onde, devemos con­cluir, que, pela potência absoluta, Deus pode fazer coisas diversas das que previu e preordenou que haveria de fazer. Não é possível, porém, faça coisas diversas das que previu e predeterminou que haveria de fazer. Pois, o seu próprio fazer está sujeito à presciência e à preordenação; não porém o seu poder, que lhe é natural. Por onde, Deus faz o que quer; po­rém, o que pode não é porque o queira, mas, porque está na sua natureza. (Sto. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I Parte, Q. 25, Art. 5, Respondeo, 1a. objeção) (N. do T.)

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