01/10/2018

O deslocamento da função magisterial depois do Concílio Vaticano II, por Romano Amerio - Parte III


III – O Papa abdica de sua função magisterial na medida em que não prega mais a fé sobrenatural 

7. Na época do Concílio, estava-se consciente de que a virtude didática lembrada aqui estava em vias de se dissolver na incerteza, como demonstra a declaração autorizada do Cardeal Heenan, Primaz da Igreja da Inglaterra, que numa das primeiras sessões do Concílio se exprimia assim: “Hoje, na Igreja, não há mais o ensinamento dos bispos; estes não são mais a referência na Igreja. O único ponto sobre o qual se atualiza a função magisterial da Igreja é o Soberano Pontífice”. Isto é, onde não há mais pessoas ensinando, todos ensinam; e onde não há mais uma verdade ensinada, ensina-se uma multidão de opiniões. 

8. Mas essa declaração do Primaz da Inglaterra, há trinta anos de distância, parece bem otimista, pois hoje, a função magisterial não se exerce nem mais pelo Pontificado. Se, como vimos, o Magistério é a manifestação da Palavra divina depositada na Igreja, que a Igreja tem por missão e dever de ensinar e pregar, essa manifestação da Palavra divina no Pontificado atual tem estado ausente ou, ao menos, em declínio: eu não teria escrito 57 glosas sobre o documento Tertio Millenio Adveniente se o Santo Padre tivesse sempre ensinado e manifestado a Palavra divina que é, ela, o verdadeiro “Magistério vivo” na Igreja, e se ele não tivesse, de boa vontade, deixado de exprimir diretamente e claramente a verdade da maneira explícita. 

9. Mas eu redigi justamente essas glosas porque o Santo Padre não prega aos fiéis, no exercício pleno de seu magistério, auxílio que eles esperam do Magistério Supremo; ele fala, mas não manifesta aquilo que deveria manifestar. Assim, é preciso dizer, mesmo nos documentos mais importantes, cada palavra do Papa não é mais o Magistério, mas, doravante e muito frequentemente, ela não é mais que a expressão de visões, de pensamento, de considerações difundidas na Igreja: o que quero dizer precisamente é que o Papa, em suas alocuções, reflete todo um sistema de pensamento que é aquele em que o homem de hoje se compraz. 

10. Uma doutrina privada é a elaboração própria de um indivíduo, mas não se trata disso aqui: trata-se de doutrinas que são difundidas e que se tornaram preponderantes numa grande parte da teologia. Lê-se assim na Tertio Millenio: “Cristo é o cumprimento do anelo de todas as religiões do mundo, constituindo por isso mesmo o seu único e definitivo ponto de chegada.” (N. 6); e ainda ...o encontro do cristianismo com aquelas antiquíssimas formas de religiosidade, que significativamente são caracterizadas por uma orientação monoteísta.” (N. 38), e ainda, “[Para o diálogo inter-religioso] deverão ter lugar proeminente os hebreus e os muçulmanos” (N. 53).  E na Ut Unum Sint: “... a infalibilidade do Papa é uma verdade da Igreja à qual não se pode renunciar. Mas deverá se conceber uma nova forma de interpretá-la.1 Então, mesmo as manifestações do Papa assumiram um caráter estranho à função magisterial suprema. Quando o Papa não manifesta a Palavra divina que lhe é confiada e que ele tem a obrigação de manifestar, ele exprime suas visões pessoais na acepção mais elevada; mas ele não exprime a Palavra de Deus. Nos encontramos assim diante da manifestação da decadência do Magistério ordinário da Igreja. O Papa deve guardar e manifestar o Depósito da Fé, da Revelação divina, mas ele não o manifesta senão escassamente. Desde o instante em que o Papa abdica da realização de seu principal dever, uma grande crise ocorre na Igreja, pois é o seu centro que é atingido. Mas não existe nenhum órgão corretor superior ao Pontífice: de fato, o Primado do Pontífice romano é um dos dogmas fundamentais, pode-se dizer, da Igreja. 


CONTINUA...

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1 Não encontrei tal trecho nem na versão em português nem na versão em francês. (N. do T.)

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