21/06/2009

Nelson Rodrigues, Amoroso Lima, dom Hélder Câmara e Gustavo Corção: a tragédia da Igreja pós-conciliar vista por quem falava o que via

Reproduzo, logo abaixo, um trecho do capítulo 28 (Flor de Obsessão), do livro Anjo Pornográfico (uma biografia de Nelson Rodrigues), de Ruy Castro, editado pela Companhia das Letras, 1992.

O texto de Ruy Castro mostra Nelson Rodrigues comentando, com toda sua verve, a atuação de dois homens ligados à Igreja Católica. Por meio desses comentários, podemos perceber o início das conseqüências trágicas que o Concílio Vaticano II trouxe para a Igreja. Foi lá que se gestaram “coisas” do tipo de Pe. Marcelo ou Pe. Fábio de Melo. Foi lá que se gestaram os “freis betos” da atualidade. Foi lá que começou a se cristalizar a idéia de que Jesus Cristo teria sido um Marx avant la lettre. Amoroso Lima e dom Hélder foram para Nelson os símbolos da tragédia que viria se abater sobre nós. E ele estava certo!

Nelson também percebeu quem representava, em termos de idéias, a Igreja verdadeira. Percebeu que Gustavo Corção era o remanescente de uma intelectualidade católica que ia rapidamente desaparecer do Brasil. A frase “o verdadeiro Alceu é o Gustavo Corção” é lapidar.

Vamos ao texto. As notas são todas minhas.

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Durante todo o ano de 1968, Alceu foi personagem quase diário das “Confissões”, dividindo os holofotes apenas com dom Hélder Câmara. Alceu era colunista do Jornal do Brasil; dom Hélder, àquela altura, arcebispo de Recife e Olinda. Os dois simbolizavam para Nelson a nova Igreja Católica que “pedia perdão pelos seus dois mil anos” e que trocava a vida eterna pelo “paraíso socialista”. Alceu e dom Hélder eram também grandes favoritos entre o “Poder Jovem”, a massa de adolescentes que, de Pequim a Nova Iguaçu, acreditava sinceramente que iria dominar o mundo em 1968. Nelson abriu guerra nas três frentes: contra Alceu, dom Hélder e o “Poder Jovem”.

Ninguém poderia ter opiniões politicamente mais antipáticas numa época em que toda a “intelligentsia” brasileira parecia ter se radicalizado à esquerda. Alceu e dom Hélder, ex-integralistas e, agora, neo-socialistas, eram admirados pela coragem com que se opunham aos militares. Nelson via neles outra coisa: em Alceu, um velho oportunista tentando adular a juventude; em dom Hélder, um insaciável apetite promocional, um “globe-trotter” de si mesmo. Quanto aos jovens de 1968 (a quem Alceu atribuía a “razão da idade”, desculpando-os por qualquer besteira que fizessem), Nelson não os achava acima de críticas apenas por terem nascido em 1952.

Havia muito de pessoal nos seus ataques, mas estes tinham a ver com a sua idéia de coerência. Não conseguia entender, por exemplo, que um homem com um passado absolutamente reacionário como Alceu pudesse agora ser levado a sério ao classificar a revolução soviética como o “maior acontecimento do século”[1]. Nelson desencavou um livro de Alceu, “Indicações políticas”, de 1936, em que o mestre proclamava a sua “mais viva simpatia pelo fascismo e por toda essa moderna reação das direitas, que mostraram a não-inevitabilidade do socialismo”. Como se podia mudar de chapa com tanta simplicidade?

Nelson julgava ter a resposta: em 1936, Alceu admirava o totalitarismo de direita; em 1968, o totalitarismo de esquerda. [2] Nelson escreveu na época: “Dirão os idiotas da objetividade que [Alceu] passou da direita para a esquerda. Não é exato. Historicamente não existe mais esquerda. O que estamos vendo, com o socialismo, comunismo ou que outro nome tenha, é a direita, na sua forma mais inumana, bestial, demoníaca.”[3]

Em 1992, tal parágrafo seria endossado por muita gente, inclusive pelos batalhões de ex-marxistas.[4] Mas, em 1968, escrever isso era o mesmo que condenar-se à morte em vida. E Nelson enumerava os milhões de mortos de “fome punitiva” por Stalin, o pacto germano-soviético às vésperas da Segunda Guerra (que obrigava os comunistas brasileiros a dar vivas a Hitler por uns tempos) e os recentes intelectuais soviéticos dissidentes, internados em hospícios – para concluir que, ao contrário do que pensava Alceu, o maior acontecimento do século fora “o fracasso daquela mesma revolução”.

Essa coerência que cobrava de Alceu como se lhe mordesse os calcanhares, Nelson não exigia de si mesmo em relação ao homem que fora um de seus maiores adversários até fins de 1967: Gustavo Corção. Apenas quatro anos antes, em 1963, Nelson ainda o estava espinafrando e dizendo a seu respeito: “Um homem em que falta a metade satânica não é nada. Um santo sem nenhuma nostalgia do pecado é um monstro de circo de cavalinhos. Por exemplo: o Gustavo Corção. É uma virtude sem brecha, sem racha e se goteira”. E voltava à sua imagem dos anos 50, a de que, entre ser virtuoso como Corção e roubar galinhas, ele preferia assaltar o galinheiro mais próximo.

Mas o ano de 1967 já estava provocando uma rearrumação no tabuleiro. Corção, colaborador do “Diário de Notícias”, escreveu naquele ano que “cada vez mais admiro Nelson Rodrigues e cada vez menos Alceu Amoroso Lima”. Nelson não lia Corção havia anos e quem lhe chamou a atenção para o artigo foi o amigo comum de ambos, Luís Eduardo Borgerth.

Nelson foi ler o artigo e se deu conta de que, se queria defender uma igreja voltada para a vida intelectual, e não para a luta de classes, passara todos aqueles anos combatendo o inimigo errado. Veio-lhe o embrião de uma idéia que ele desenvolveria depois: “O verdadeiro Alceu é o Gustavo Corção”. Pediu a Borgerth que os apresentasse. Tinham passado décadas se atacando e nunca haviam trocado um olhar. (...) Os agravos e arranca-rabos passados foram esquecidos, em nome de uma profunda afinidade que agora os unia: a defesa do Céu contra as hordas de bárbaros coletivistas que o atacavam.

Quem tivesse essas idéias – e se atrevesse a trocar Alceu e dom Hélder por Gustavo Corção – deveria evitar passar pela porta do “Antonio´s”, o restaurante da avenida Bartolomeu Mitre, no Leblon, de onde, segundo Nelson, “as nossas esquerdas guardavam uma sábia distância do Vietnã”. Acontece que Nelson atrevia-se a ir eventualmente ao “Antonio´s”, porque era aonde iam seus amigos – alguns deles, também amigos de Tristão e dom Hélder.

A implicância com dom Hélder realmente começara no episódio de seu casamento com Lúcia. Mas também era verdade que dom Hélder mudara muito e sem pedir a autorização de Nelson. Poucos anos antes, por exemplo, o então bispo auxiliar do Rio era compadre de Roberto Marinho, padrinho de seu filho Roberto Irineu e fazia edificantes sermões pela rádio Globo. De repente, a partir de João XXIII, demitira-se de seu papel de “funcionário do sobrenatural” e só falava na reforma agrária e na luta armada – era louvado pela imprensa internacional com “el arzobispo de La revolución” e “Il arcivescovo rosso del Brasile”.[5]

Nelson não sabia o que mais o impressionava em dom Hélder: se o ator, a vedete, sempre atento a um microfone ou a um flash de fotógrafo – ou se o falso padre sob cuja batina ele imaginava ver os pés de cabra do anti-Cristo.

Mas Nelson não se limitava a martelar contra Alceu, dom Hélder, o “Poder Jovem”, as esquerdas do “Antonio´s” e os “marxistas de galinheiro”. Através das “Confissões”, comprava brigas também com os “padres de passeata” por atacado (tinha horror a padres sem batina, que considerava, “vestidos com um anúncio da ‘Ducal’ ”); o Jornal do Brasil (imaginava ver seu proprietário, “amarrado ao pé de mesa e lhe sendo dado de beber numa cuia de queijo Palmira”); as estudantes de psicologia da PUC; os sociólogos; as grã-finas “amantes espirituais de Guevara”; as feministas (“Todas as feministas são umas patuscas”); Jean-Paul Sartre e Bertrand Russel (“dois Acácios”); e até Alexandre Dumas filho, o de “A damas das camélias” (preferia Dumas pai, o de “Os três mosqueteiros”). Mas seu pendor polêmico se frustrava porque quase ninguém comprava de volta suas brigas. Nelson Rodrigues era um reacionário, um caso perdido ou, para outros, um palavrão.[6]

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[1] E não, por exemplo, como seria de se esperar de um católico, as aparições de Nossa Senhora em Fátima.

[2] Nelson, certamente, não leu Hayek e seu extraordinário “The Road to Serfdom”. Deste livro, da edição comemorativa dos 50 anos de sua primeira edição (The University of Chicago Press, 1994), extraio uma citação de uma frase de Mussolini: “Fomos os primeiros a afirmar que quanto mais complicadas são as formas que a civilização assume, mais restrita deve se tornar a liberdade individual”. Há um capítulo neste livro de Hayek intitulado “As raízes socialistas do Nazismo”. O pulo do fascismo para o socialismo não é só fácil como natural e, talvez, inevitável.

[3] Aqui, Nelson se equivoca, naturalmente. Pois o que ele estava vendo não era uma direita bestial, mas uma esquerda na sua forma mais natural. Quanto a esquerda não é bestial, está só disfarçando, guardando para o futuro toda a sua bestialidade.

[4] Prova cabal de que a análise de Nelson estava errada, pois, não existem ex-marxistas, como nos faz crer Ruy Castro.

[5]Ver, neste blog: Nelson Rodrigues “entrevista” D. Hélder Câmara, Nelson Rodrigues “entrevista” D. Hélder Câmara – Parte II, Nelson Rodrigues é mais católico que a CNBB .

[6] Nelson foi, em certo sentido, o Olavo de Carvalho da década de 1960. Denunciava o então Imbecil Coletivo, que viria ser definido e atacado por Olavo, com instrumentos muito mais cirúrgicos, nos anos 1990. Fizeram com Nelson o mesmo que fazem com Olavo, simplesmente ignoram suas críticas, pois não têm, e não tinham, como contrapô-las.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito boa sua iniciativa de "desencavar" textos antigos. É mais que oportuno lembrar constantemente o passado. Infelizmente os brasileiros já não conseguem sequer lembrar do que ocorreu na semana passada, quanto mais os acontecimentos de quarenta e tantos anos atr´s. Muito bom também o texto sobre as freiras moderninhas. Eu cheguei a ver algumas, do (imagine só!!) Colégio Imaculado Coração de Maria, aqui na minha cidade. Bastou terminar o Concílio que elas jogaram fora o hábito, vestiram saias acima do joelho, muitas tingiram o cabelo, pintavam o rosto. Impressionante a mudança do dia para a noite. Nas demais escolas católicas de meninas aconteceu o mesmo, porém com mais vagar. Nas masculinas a mudança foi grande no colégio dos Salesianos. Alí logo surgiram padres cabeludos, e o que é mais triste foi ver o fechamento do internato e do semi-internato da escola salesiana, onde estudavam centenas de rapazes. A Escola virou uma usina de "encontristas", "cursilhistas", e outras coisas sobre as quais nem quero falar.

Luiz, Rio Grande

Carlos Soares disse...

Prezado Angueth,

Tenho dúvidas se colocar os Padres Marcelo Rossi e Fábio de Melo na mesma bacia estaria correto. Acredito que nesses casos temos três situações: Padre Marcelo: prefiro aquela passagem de Jesus, quem não é contra nós, é por nós. Conheço muitas pessoas que se converteram ouvindo o Padre Marcelo. Já o Padre Fábio de Melo nunca me enganou; embora se enquadre na situação do Padre Marcelo, tem a aproximação com o Chalita. Quanto aos "Freis Betos", concordo completamente com vc. um grande abraço Carlos Soares