Eis a paisagem obrigatória: – um terreno baldio que tenha, no alto, uma lua de sangue e, por fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes. Além de mim e d. Hélder, a única presença consentida é a de uma cabra vadia. O arcebispo foi pontualíssimo. Chega exatamente quando o sinal dava as doze badaladas. Alhures, uma coruja pia. D. Hélder pergunta: – “E o pessoal? Não vem ninguém?”.
Explico-lhe que o charme das entrevistas imaginárias é o pudor, o sigilo, o mistério. É preciso que ninguém as veja e ninguém as ouça, a não ser a cabra. D. Hélder vira-se: – “Em que jornal trabalha a cabra?” Respondo-lhe que a cabra tem vários defeitos, menos o de ser jornalista. Esclareço ainda: – “A única função da cabra é paisagística”. A frustração do sacerdote foi total. Fechou a questão: – “Só falo para jornal, rádio, televisão.” Pergunto: – “É sua última palavra?”. Era.
E já que não havia outro remédio, tratei de convocar uma imprensa também imaginária para ao local. Instantaneamente, apareceram lá o caminhão da Globo e os locutores-volantes, o Washington Rodrigues, o Pallut, o Paradelas, fotógrafos, correspondentes estrangeiros, a BBC de Londres etc. etc. Essa platéia espectral foi um afrodisíaco para o bom padre. O Justino Martins surgiu e prometeu uma capa de Manchete. O Cláudio Mello e Souza daria uma capa de Fatos & Fotos. Mas d. Hélder parecia ainda insatisfeito: – “E a Life não mandou ninguém?”. Tive que providenciar um enviado imaginário da Life.
Todos presentes, comecei – “D. Hélder, a diretora de um colégio religioso de São Paulo disse o seguinte: – que ser prostituta é uma profissão como outra qualquer. O senhor concorda?”. D. Hélder não respondeu logo. Semicerrou os olhos, juntou as mãos, como se rezasse. Os faunos e as ninfas, que costumam infestar os terrenos baldios, vieram espiar. Suspense aterrador. E, súbito, o arcebispo pula: – “Não! Não!”
Flashes assustam os grilos e os sapos do terreno baldio. Todos sentiram que d. Hélder ia fulminar a iniqüidade. De braços abertos, vai falando: – “Nunca, jamais! Ser prostituta não é uma profissão como outra qualquer. Absolutamente. É uma profissão que exige prendas raras. Raras”.
Instalou-se ali no mato, o caos profundo. A imprensa imaginária já não sabia se d. Hélder estava contra ou a favor. Os taquígrafos não perdem um suspiro do orador. Mas didático, d. Hélder está falando: – “Qualquer uma poder ser datilógrafa, não é exato? Mas uma messalina tem que possuir dons outros, atrativos especiais. Uma gaga não pode ser messalina. Uma bruxa de disco infantil não pode fazer prostituição. Tanto a gaga como o bucho morreriam de fome. Portanto, é injusto falar em ‘uma profissão como outra qualquer’. Ou estou enganado?”. O orador é aplaudido como um tenor no dó de peito.
O representante imaginário da Life faz a sua pergunta: – “É verdade que o senhor brigou com os 2 mil anos da Igreja?”. D. Hélder não ouviu direito. O outro repete: – “É verdade que o senhor brigou com o passado da Igreja?”. A resposta foi de uma rara felicidade: – “Meu amigo, que tem passado é a adúltera recuperada”. Neste momento, uma admiradora de J. G. de Araújo Jorge aparece com um livro: – “O senhor quer escrever isso no meu álbum?”. D. Hélder arranca da batina uma caneta e põe lá: – “Quem tem passado é a adúltera recuperada”. Na sua vaidade autoral, o arcebispo pergunta: – “Gostou?”. E a moça: – “Lindinho”.
Agora era a vez da estagiária do Jornal do Brasil. Eis a pergunta: – “O que é que o senhor acha do amor?”. D. Hélder fez um risonho escândalo. Diz: – “Oh, oh!”. E responde com outra pergunta: – “Que idade você tem?”. Resposta: – “Dezenove”. D. Hélder ralhou, alegremente: – “E como é que você, aos dezenove anos, fale em amor? O que é o amor? Isso não existe, nunca existiu. O amor é a doença do sexo”. Estaca ao som da própria frase. Diz: – “Acho que fui feliz”. E repete: – “O amor é a doença do sexo”. Estimulado pela frase, foi adiante: – “O amor tem que ser exterminado. Nunca a morbidez é do sexo, sempre do amor. O sexo é de uma pureza, de uma inocência, de uma saúde totais. Vejam a lição dos vira-latas e dos gatos vadios. Olhem a praça da República. Não se conhece um Werther entre os gatos do Campo de Santana. Jamais um vira-lata matou, ou se matou, ou deu manchete na Luta ou no Dia. Precisamos matar o amor” .
Era o fim. A aragem fina desfez a imprensa imaginária. O Justino Martins tornou-se diáfano, o Cláudio Mello e Souza, incorpóreo, a estagiária, alada. Paletós, camisas, gravatas e sapatos, tudo se volatilizou. E, por muito tempo, o terreno baldio ficou ressoante da sábia frase: – “O amor é a doença do sexo”.
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Ver também, Nelson Rodrigues “entrevista” D. Hélder Câmara.
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