17/05/2009

O hedonismo diabólico de Omar Khayyam

Rubaiyat [1] é uma grande meditação sobre a morte. Meditação não, lamentação. Fosse meditação, este famoso poema poderia nos fazer algum bem. A escolha de Khayyam diante da morte é a mais desprezível e covarde: vinho e raparigas. Fosse meditação, nossa vida seria elevada e não degradada. 

O homem depois da Queda, frente à fatalidade da morte, prefere uma queda maior. 
Mais sábio é meditares sobre 
Esta certeza: morrerás 
E não sonharás mais, e os vermes 
Ou os cães comerão teu cadáver[2] (quadra 34) 

Em lugar de te abandonares 
Nos braços desse irmão da Morte, 
Bebe vinho! Para dormir 
Terás, sabes, a eternidade. (quadra 35)

Este hedonismo é diabólico porque considera Deus um criador malicioso. 
Senhor, ó Senhor, responde-nos! 
Deste-nos olhos, permitiste 
Que a beleza das criaturas 
Perturbasse os nossos sentidos 
 Dotaste-nos da faculdade 
De ser felizes, e pretendes 
Todavia que renunciemos 
A gozar dos bens deste mundo? 
 Mas isto é-nos mais impossível 
Que virar, Senhor, uma taça 
Para o chão, sem que se derrame 
O líquido que ela contém. (quadra 112) 

Nossa compulsão ao vinho, para Khayyam, é uma lei tão inexorável quanto a lei da gravidade. Não podemos resisti-la. E isso é culpa de Deus, que nos criou assim. Khayyam segue culpando Deus pela criação do mal, pura gnose de sotaque persa e puro hedonismo diabólico. 
O Criador do Universo e das estrelas 
Superou-se a si mesmo ao criar a dor 
Bocas como rubis e cabeleiras 
Embalsamadas, quantas sois na Terra? (quadra 36) 

Estamos largados neste “vale de lágrimas” sem a menor chance de compreendermos nada. Deus é relapso, irresponsável, indiferente à nossa vida que oscila entre o bem e o mal. Assim, devemos beber vinho! 
Retóricos e sábios 
Morreram sem chegar 
À conclusão nenhuma 
Sobre o ser e o não-ser 
 Nós, ignaros, bebamos
 O bom suco das uvas, 
Deixando aos grandes homens 
O regalo das passas. (quadra 58)

Disputam o bem e o mal 
A primazia na Terra. 
O Céu não é responsável 
Pelas voltas do destino. 
 Não agradeças portanto 
O Céu, nem tampouco o acuses ... 
O Céu é indiferente 
A tuas dores e alegrias. (quadra 51) 

 Deus é enganador. As coisas que Ele criou nos enganam. Isso foi exatamente o que a serpente disse a Eva no Paraíso, pouco antes do Pecado Original. 
Só conhecemos da ventura o nome. 
Nosso mais velho amigo é o vinho novo. 
Afaga o único bem que não engana: 
A urna cheia do sangue dos vinhedos. (quadra 61) 

Se Deus é enganador e criador do mal, Khayyam recusa o perdão de Deus. 
Podes perseguir-me incessante, 
Ó imagem de outra ventura! 
Podeis, ó vozes amorosas, 
Modular os vossos encantos!
 Olho só para o que eu escolhi. 
Só escuto o que já me embalou. 
Dizem-me: “Deus te perdoará.” 
Recuso o perdão que não peço. (quadra 71) 

 E quem recusa Deus, perde a razão e o entendimento. 
Falam de um Criador ... 
Terá formado Então os seres só para destruí-los? 
Por que são feios? 
Quem é o responsável? 
Por que são belos? 
Não compreendo nada. (quadra 76) 

 “Não compreendo nada”: é a voz do vinho, é a voz do nada!
Falam da estrada do Conhecimento ... 
Uns dizem tê-la achado, outros procuram-na. 
Mas um dia uma voz há de exclamar-lhes: 
“Não há estrada nenhuma, nem vereda!” (quadra 77) 

“Não há estrada nenhuma, nem vereda!”: é a voz do bêbado nos indicando o caminho. A contradição é sempre companheira de quem despreza a razão. O apologista do vinho e das raparigas nos diz que é indiferente aos sentidos! 
Se soubesses quão pouco me interesso 
Pelos quatro elementos naturais 
E pelas cinco faculdades do homem! 
Certos sábios da Grécia – ao que me dizes 
 Eram capazes de propor um cento 
De enigmas aos ouvintes. 
É total 
A minha indiferença a tal respeito 
Traz-me vinho, toca o alaúde e que as suas notas 
 Suas modulações façam lembrar-me 
A brisa que cicia nas ramagens 
Das árvores, a brisa leve, leve, Leve ... 
A brisa que passa como nós! (quadra 98) 

 “Traz-me vinho”: como será que Khayyam saboreará este vinho? Com um dos cinco sentidos? “Toca o alaúde”: Khayyam escutará o som do alaúde com um dos cinco sentidos ou com algum outro que o vinho lhe tenha dotado? Este é o samba do persa bêbado. Para terminar este pequeno comentário, vou mostrar um Khayyam cartesiano e kantiano avant la lettre. 
O mundo será abolido, 
Pois do nosso pensamento 
É que a sua realidade 
Depende exclusivamente. (última estrofe, quadra 102) ____________________________________________________________________ 
[1] Escrevo este post estimulado pelo capítulo VII (clique aqui e aqui) de Hereges de Chesterton.
[2] Uso aqui a tradução de Manuel Bandeira, Ediouro, 2001.

2 comentários:

Eduardo Araújo disse...

Caro Angueth,

Acho que essas quadras de Khayyam remetem ao típico niilismo que assola a humanidade atual, bomabardeada que foi por pensadores como Kant, Comte, Marx, Nietszche, Freud e Sartre. É o triunfo da idéia sobre a realidade que, em termos práticos, significa tão-somente a nulidade da existência, reduzida, agora, ao que determinar o pensamento e esmagada sob o peso da inexorabilidade do fim das coisas.

Em termos bíblicos, o hedonismo do persa lembra a advertência que nos oferecem os primeiros capítulos do livro da Sabedoria, preservado no cânon católico. Os excertos aqui citados encaixam-se á perfeição com o insensato que, sob a égide da morte vindoura, entrega-se aos prazeres, atitude que o documento sagrado demonstra, firmemente, ser de uma tolice exemplar.

Abraços

P.S.: você já leu a Epopéia de Gilgamesh? Curiosamente, ela reflete uma busca ímpar pelo sentido da existência, mas no meu entender termina em um pessimismo que já aponta para o hedonismo, como "saída" (o protagonista é incitado a resignar-se diante da fatalidade da morte, restando-lhe somente viver intensamente o que o mundo lhe oferece). Claro, em linha e proporção bem distintas mesmo de Khayyam.

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Eduardo,

Muito bem lembrado o livro da Sabedoria. Talvez eu utilize sua idéia num post futuro, uma comparação entre Rubaiyat e o livro da Sabedoria.

Muito obrigado pela visita.

Antônio Emílio Angueth de Araújo