06/02/2013

Seis vantagens da aplicação das nossas indulgências às almas do Purgatório.

Nota: o blog já está em preparação para a Quaresma de 2013 e oferece aos leitores este extraordinário texto de Pe. Faber sobre as almas do Purgatório. Quaresma é tempo de pensarmos em nossos pecados e nos Novíssimos.

Tudo por Jesus, Pe. W.F. Faber,
trad. portuguesa,
H. Garnier, Livreiro-Editor, s.d.
 
Há pessoas que aplicam às almas do purgatório todas as indulgências que lucram; outras pelo contrário, guardam-nas todas para si mesmas, e ninguém tem o direito, certamente, de condenar este modo de proceder. Pois quem ousaria contestar a quem quer que fosse uma liberdade que a Igreja lhe concede? Graças a Deus, não tenho semelhante pretensão. Sem embargo, vou expor livremente o meu modo de sentir a este respeito. Contudo, cingir-me-ei estritamente ao que dizem sobre esta matéria os teólogos e os autores espirituais.

A graça é um benefício tão grande, que devemos procurar aumentá-la por todos os meios possíveis; e não há caminho mais curto para chegar a este fim, que converter a satisfação em mérito: é o que faremos ganhando indulgências para as almas do purgatório. Esta devoção acumular-nos-á grandes tesouros espirituais, e ao mesmo tempo que será agradável a Deus tiraremos dela uma imensa utilidade para nós mesmos. Examinemos alguns dos frutos que produz esta devoção, o que nos tornará mais generosos para essas filhas de Deus, essas esposas do Espirito Santo, que nós favoreceremos com nossas orações e boas obras, sem receio de que o fruto destas seja perdido para nós. Realmente, tira-se um grande proveito não reservando nenhuma parte das próprias obras de satisfação, das indulgências que se ganham, mas oferecendo-as por inteiro pelas santas esposas do nosso amadíssimo Redentor, que gemem entre os mais cruéis sofrimentos.


O primeiro fruto que colheremos será o acréscimo de merecimentos. Das três prerrogativas que Deus concede às boas obras dos justos, a saber, o merecimento, a impetração e a satisfação, a maior é o merecimento, pois nos torna mais agradáveis a Deus, estreita os laços da nossa amizade com Ele, atrai-nos graças mais abundantes, e prepara-nos assim maior glória no céu. E', pois, evidente que quem chegar a converter a satisfação, preço das suas boas obras, em equivalente novo merecimento, independente do mérito, que já houvesse adquirido e a mais desse mérito, muito lucrará nesta troca. Estabeleçamos esta verdade com outro raciocínio. O bem da glória dos bem-aventurados é, sem comparação, muito mais real, muito maior do que o mal dos sofrimentos do purgatório; por consequência, o direito a um aumento de glória vale mais que o direito a uma diminuição de pena. Ora, aquele que oferece pelas almas do purgatório as satisfações das suas boas obras e as indulgências ganhas faz precisamente a troca de que falamos, converte essas satisfações em méritos. Nesta caridade encontra-se um ato heroico de virtude, que confere ao seu autor a vida eterna, cousa que a satisfação não pode fazer, a não ser convertida em merecimento. Este ponto exige alguma reflexão, além de que, como dissemos, a gloria do céu é um bem maior que o mal do purgatório, devemos lembrar-nos que um aumento de glória é cousa eterna, enquanto que um alívio de sofrimentos do purgatório é passageiro, como o próprio purgatório, de sorte que a distância entre o aumento de glória e o refrigério dado aos sofrimentos do purgatório é infinita. O gozo dos bens eternos, mesmo no ínfimo grau, não seria comprado demasiadamente caro pelos sofrimentos e males temporais mais violentos. Devemos acrescentar que em todas as cousas se deve fazer o que é mais agradável aos olhos de Deus, não buscando o que melhor conviria aos nossos interesses e gostos, mas o que mais apraz ao Senhor. Vale mais agradar a Deus que evitar sofrimentos. Ora, um indivíduo que arrecada para si as satisfações e as indulgências que pode ganhar, não tem em mira senão poupar-se a sofrimentos, ao passo que quem as oferece todas em benefício das almas do purgatório torna-se por este mesmo facto mais querido de Deus, pelo requinte de amor que brilha neste ato heroico de misericórdia e de caridade, que não era obrigado a praticar, mas que faz por um rasgo generoso da sua vontade livre.

As santas almas do purgatório não podem tirar nenhum proveito dos seus sofrimentos; o tempo de merecer passou para elas; e enquanto gemem naquele lugar de dores, a Jerusalém celeste conserva-se privada dos seus habitantes, e a Igreja, na terra, também privada de protetores que intercedam por ela junto de Deus. Daí um segundo fruto da nossa devoção. Aquela alma, a quem nós abrimos as portas do purgatório, contraiu conosco uma obrigação especial, em primeiro lugar, por causa da glória cuja posse lhe abreviamos, e depois, por causa dos terríveis sofrimentos a que a arrancamos. Portanto, é para ela um dever obter para os seus benfeitores as graças e bênçãos de Deus. Os bem-aventurados sabem quanto é grande, infinito, o benefício que receberam; e como são essencialmente gratos, esforçam-se por mostrar um reconhecimento proporcionado a felicidade que fruem. Assim, quem oferece as indulgências que ganha em favor das almas do purgatório, tem nestas outros tantos agentes, no céu, a cuidar dos seus interesses eternos; e muito melhor é assegurar a salvação nesta vida, por meio das graças obtidas pelos nossos protetores celestes, do que nos subtrairmos ao perigo de mais demorada permanência no purgatório, por havermos dado a outros o fruto das nossas indulgências. Mas não adquirimos só um direito a benevolência das almas que libertamos; obtemos também o amor dos seus anjos da guarda e dos santos pelos quais essas almas tiveram uma devoção especial; ao mesmo tempo tornamo-nos mais queridos do Coração de Jesus, pelo prazer que experimenta com a libertação da sua cara esposa e com a sua entrada na alegria do céu.

Podemos ainda colher desta devoção um terceiro fruto não menos útil para nós. E' uma grande felicidade termos alguém no céu, que ame, louve e glorifique a Deus por nós. Quem tem por Deus um amor terno e fervoroso não pode abster-se de empregar todos os esforços para que a Majestade divina seja exaltada e glorificada, mas por causa dos nossos pecados e das misérias desta vida, não nos é possível render a esta adorável Majestade as homenagens e o culto perfeitos que os bem-aventurados lhe prestam no céu. Que alegria e consolação não devemos pois sentir ao pensar que outros, arrancados pelas nossas orações às chamas do purgatório, desempenham por nós este sublime dever; e que enquanto nós penamos ainda neste mundo, eles entoam já no céu o cântico dos louvores eternos! Certamente não há nenhuma alma no purgatório que não seja mais santa que a nossa e mais própria para glorificar a Deus. Por isso, quando introduzimos uma alma no céu, proporcionamos com ela mais gloria a Deus do que nós mesmos lhe podemos dar aqui na terra. Enquanto comemos, bebemos, dormimos e trabalhamos (ó delicioso pensamento!), há no céu uma alma, ou almas, apraz-me crê-lo, às quais apressamos a felicidade, e que adoram, glorificam sem cessar a Majestade e a Beleza do Altíssimo, com uma perfeição indizível.

Ainda não é tudo. Esta generosa devoção produz um quarto fruto: faz rejubilar ao mesmo tempo a Igreja militante e a Igreja triunfante. Grande é a festa no céu quando um eleito vai engrossar o número dos seus habitantes; pois se os santos veem com transportes de alegria a penitencia de um pecador, que aliás pode voltar a cair no crime, qual não deve ser o seu prazer quando recebem em seu seio um novo cidadão que já não tornará a ofender a Deus! O seu anjo da guarda rejubila também e recebe mil felicitações dos espíritos bem-aventurados, pelo êxito com que desempenhou as suas funções tutelares. A alegria expande-se entre os santos, principalmente entre aqueles a cujo patrocínio esta alma estava especialmente confiada, e entre os seus parentes e amigos, ao feliz coro dos quais vai reunir-se, Maria rejubila igualmente pelo bom resultado das suas repetidas preces, ao mesmo tempo que Jesus enceleira com amor e complacência a madura messe do seu precioso sangue. O Espirito santo digna-se rejubilar com o triunfo dos seus dons e inspirações inumeráveis, e o Pai Eterno compraz-se na perfeição a que chegou a criatura de sua escolha, com a qual usou por tanto tempo de longanimidade. A Igreja militante também tem a sua parte de alegria, porque obtém um novo advogado. Os parentes, os amigos, a família desta alma para sempre feliz, a freguesia, a nação a que ela pertencia, todos têm motivo para rejubilar com o seu triunfo. Direi mais, todo os predestinados e toda a natureza encontram motivo de júbilo na entrada de um eleito no seio do seu Criador.

Mas podemos ainda colher um quinto fruto desta nossa devoção. O amor não sofre delongas. Poderíamos então deixar permanecer inútil, durante largos anos talvez, um tesouro que pode servir perfeitamente para a gloria de Deus e para os interesses de Jesus? Talvez não tenhamos necessidade, presentemente, das nossas satisfações nem das nossas indulgências. Mas se as escondemos no tesouro da Igreja, quem sabe quantos anos decorrerão sem que as nossas riquezas possam ser utilizadas, admitindo mesmo, com Lugo, que todas as satisfações dos santos serão aplicadas antes do dia do julgamento?[1] Ah! Por que não havemos de pôr desde já este dom ao serviço de Deus, abrindo quanto antes as portas do purgatório a algumas santas almas, que começarão, hoje mesmo talvez, o seu delicioso sacrifício de louvores eternos?

Finalmente, acrescentarei que aquilo que damos redunda abundantemente em nosso proveito, e este é o sexto fruto da nossa devoção. Em primeiro lugar, o próprio ato de tão grande e generosa caridade é por si mesmo uma satisfação pelos nossos pecados; pois se uma esmola dada para socorrer uma necessidade material satisfaz mais que a maior parte das outras boas obras, qual não será o poder destas esmolas espirituais? Depois, quem sacrifica alguma cousa pela glória de Deus recebe recompensa centuplicada. O Senhor nos concederá pois tais graças, de modo que apenas teremos uma pequena demora no purgatório, ou talvez inspire a outros fieis o pensamento de orarem por nós. De maneira que, se houvéssemos guardado para nós mesmo as nossas indulgências, muito tempo poderíamos gemer naquelas chamas vingadoras, enquanto assim, se por inspiração de Deus outros tratarem de ganhar indulgências para nós, entraremos muito mais depressa na glória celeste. E’ um axioma, que nada se perde quando se perde por Deus. Quando estivermos no purgatório, os bem-aventurados a quem apressamos a hora do triunfo verão em nós os seus benfeitores, e na nossa libertação uma dívida que a justiça lhes impõe. Por outro lado, não serão só eles a reconhecer esta dívida, e Nosso Senhor os ajudará a saldá-la.

Assim, dando todas as nossas satisfações, todas as nossas indulgências às almas do purgatório, longe de transtornarmos a ordem natural da caridade, servimos deste modo os nossos mais caros interesses. E’ uma devoção que promove singularmente a glória de Deus, favorece no mais alto grau os interesses de Jesus, e se inspira no amor das alma: abrange simultaneamente a Igreja militante, a Igreja purgante e a Igreja triunfante. Bendigamos Deus por nos haver concedido, em sua incompreensível liberalidade, o inestimável benefício de dispormos a nosso alvedrio das nossas indulgências e satisfações. E visto que nos pertencem, que podemos usar delas como mais nos agrade, alegre-se o nosso coração empregando-as em aumentar a gloria de Deus e em fazer abençoar o seu nome.

Vede até onde chegaram neste particular alguns grandes servos de Deus. O Padre Fernando de Monroy, homem eminentemente apostólico, fez à hora da morte uma doação por escrito, pela qual transferia para as almas do purgatório todas as missas que houvessem de ser ditas por sua alma, todas as penitencias oferecidas em seu benefício e todas as indulgências que para ele viessem a ser ganhas, Bem podia fazer esta doação, pois quase se não tem necessidade de semelhantes socorros quando se tem tido por Deus um amor tão delicado, quando se abraçaram os interesses de Jesus com tanto ardor como o último ato deste piedoso religioso nos leva a presumir que ele fez. “O amor é forte como a morte; as águas do mar veem quebrar-se contra a caridade, e as suas ondas não a podem submergir” [2]

Agora vedes claramente o que vos peço. E’ necessário servir a Jesus dum modo ou de outro, sem o que não podeis salvar a vossa alma. Estais completamente sob a sua descendência. Não podeis fazer cousa alguma sem n’Ele terdes fé, sem recorrerdes aos méritos da Sua Vida, da Sua Morte, do Seu Sangue; sem a Sua Igreja e Seus Sacramentos. Não podeis dar um passo para o céu sem o Seu auxilio. Cada uma das vossas ações, dos vossos pensamentos, das vossas palavras não tem valor senão pela sua união com os merecimentos d'Ele. Não se pode conceber dependência mais completa, mais absoluta, mais constante, mais indispensável que a vossa dependência d'Ele. Portanto dum modo ou de outro, é necessário que sirvais a Jesus. A questão agora é saber se não vale mais servi-lo por amor. Qual tem sido até hoje a vossa maneira de o servir? Não tereis acaso cumprido os vossos deveres para com Deus como um pobre que paga uma dívida a um credor rico e que, a cada moeda que lhe vai passando para as mãos, espreita de soslaio a fisionomia do seu credor, para ver se este homem está realmente resolvido a esquecer a pobreza do seu devedor e a aceitar-lhe o pagamento integral da dívida? O vosso problema não terá sido encontrar o meio de chegar ao céu com o menor trabalho possível? Não tereis esmiuçado os mandamentos, truncado os preceitos, interpretado as regras, pedido dispensas? Com franqueza é a isto que chamais a vossa religião, o vosso culto a um Deus Encarnado, que levou o amor até à loucura, até se fazer amarrar ensanguentado ao patíbulo da cruz?

Pois eu entendo que servir a Jesus por amor é muito mais fácil do que servi-lo assim. Cousa alguma é fácil quando se não faz de boa vontade. A vossa religião tornou-vos felizes? Oh! não; pelo contrário foi para vós um fardo pesado; e se não fosse esta alternativa – o céu ou o inferno – há muito tempo que vos teríeis desembaraçado dela. Mas o céu e o inferno são fatos, lá estão, não há para nós meio termo. Ora, visto que é necessário sermos religiosos, eu sou pela religião que nos faz felizes. Não vejo a utilidade de me impor um culto penoso, se Deus me dá a escolher. Mas Deus faz mais: deseja que a minha religião me faça feliz; sim Ele quer que a religião seja o sol que alegre a minha vida. Mas uma religião, para fazer alguém feliz, deve ser uma religião de amor. O amor torna tudo fácil. Assim, a minha felicidade não depende senão de Jesus. E' a minha religião que me dá dias felizes. Se servir à Jesus por amor fosse cousa difícil, prodigiosa, como a contemplação dos santos, ou as suas austeridades, então o caso seria diferente. Mas realmente não é nada disso. Servir a Deus por temor de ir para o inferno e por desejo de ir para o céu, é cousa excelente, sem dúvida, e obra sobrenatural; mas é difícil. Pelo contrário, é tão suave servir a Deus por amor, que mal se explica como tanta gente neste mundo deixa de o fazer. Pobres almas, cegas até ao prodígio!

Mas uma felicidade ainda maior, é que tornando-nos felizes a nós mesmos, também fazemos feliz Nosso Senhor. Este pensamento aumenta a nossa alegria a ponto de quase não nos podermos conter, e isto é uma nova origem de contentamento para Jesus. E’ assim que a religião se torna cada vez mais agradável. A vida é uma extensa felicidade quando nela se cumpre sempre a vontade de Deus, e todos os momentos são empregados para glória Sua. Se vos identificais com os interesses de Jesus; se os abraçais como se fossem os vossos, como realmente são, penetra em vós o seu espirito, estabelece no vosso coração o seu trono, aí se coroa, e depois, com uma infinita meiguice, proclama-se rei do vosso coração. Uma amável conspiração lhe entregou o cetro, e durante todo este tempo nunca suspeitastes que o amor divino mirava a este fim. Entretanto, é assim. A glória de Deus torna-se-vos cara, tudo quanto diz respeito a Nosso Senhor é agora o vosso fraco, é como que a menina de vossos olhos sentis-vos atraídos para a salvação das almas porque é a sua obra predileta, e todas as vossas inclinações, todos os vossos gostos tomam este partido. Assim vão correndo as cousas, assim ides vivendo (não digo bem: vós não viveis, é Cristo que em vós vive) e assim morreis. Contudo, nunca vos passou pela ideia que éreis um santo, ou que vos aproximáveis da santidade. A vossa vida oculta-se em Deus com Jesus Cristo, mas é mais oculta para vós do que para os outros. Vós um santo! Semelhante pensamento vos faria rir, se não assustasse a vossa humildade. Mas, ó profunda misericórdia de Jesus, qual não será a vossa surpresa no dia do julgamento, ao ouvirdes a consoladora sentença pronunciada por sua boca, e ao verdes a brilhante coroa que Ele vos preparou! Só surpresa? Quase vos sentireis impelidos a discutir a vossa salvação! Nosso Senhor atribui esta linguagem aos escolhidos, no sagrado Evangelho: — “Senhor, quando foi que vós tivestes fome e eu vos dei de comer? Quando foi que tivestes sede e eu vos dei de beber?” Não podem compreendê-lo. Nunca pensaram que o seu amor tivesse tanta grandeza. Ah! servi, pois, a Jesus por amor; e por muito que façais, sabei que nunca O amareis tanto como Ele vos ama. Repito-vos, servi a Jesus por amor. Se seguirdes o meu conselho, eu ouso prometer-vos, que antes que vossos olhos se fechem, antes que o palor da morte tome o vosso rosto, antes que se certifiquem aqueles que rodearem o vosso leito de que exalastes o último suspiro, já vós tereis ouvido com surpresa, entre os cânticos dos Anjos, a sentença favorável do vosso amoroso Jesus, e a glória de Deus começará a brilhar para vós com um esplendor eterno!
 
___________
[1] A doutrina d'esta passagem, como se lia na primeira edição deste livro, era fundada num trecho duvidoso de Nieremberg, Avarizi* santa, c. 27. Foi agora retificada segundo a teoria de Lugo, Dd Sac. Poenit, disp. 26, szc. 2, n. 24.

[2] Cant. VIII, 6, 7.

Nenhum comentário: