Pe. Faber
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A segunda visão do Purgatório não nega nenhuma das
características da visão anterior, mas quase as coloca fora do campo de visão, por meio de outras considerações que ela torna mais proeminentes à nossa vista.
A alma adentra o Purgatório com os olhos fascinados e com seu espírito
docemente tranquilizado com a face de Jesus, seu primeiro vislumbre da Sagrada
Humanidade, no Julgamento Particular que tem de sofrer. Esta visão a acompanha,
e adorna os terrores díspares de sua prisão qual uma permanente chuva prateada
de raios de lua que parece provir dos olhos amorosos de nosso Salvador. No mar
de fogo, ela parece se agarrar fortemente a essa imagem. No momento em que, sob
Seu olhar, ela percebe sua própria inadequação ao Céu, ela dirige seu voo
voluntário ao Purgatório, como uma pomba ao seu próprio ninho nas sombras da
floresta. Ela não necessita de anjos para levá-la até lá, pois quem a leva é
seu próprio louvor à pureza de Deus.
É o que se encontra belamente descrito numa revelação de
Santa Gertrude, relatada por Blosius. A santa viu em espírito a alma de uma
religiosa que passou a vida no exercício das mais elevadas virtudes. Ela estava
perante Nosso Senhor revestida de ornamentos de caridade, mas não ousava
levantar os olhos para olhá-Lo. Conservava-os baixos como se envergonhasse por
estar em Sua presença, e mostrava por alguns gestos seu desejo de estar longe
d’Ele. Gertrude, surpresa com a cena, ousou perguntá-Lo: “Misericordioso Deus!
Por que não recebes esta alma nos braços de Vossa infinita caridade? O que são
os estranhos gestos de retraimento que percebo nela?” Então, Nosso Senhor
estendeu amorosamente seu braço direito, como para aproximar d’Ele a alma; mas
ela, com profunda humildade e grande modéstia, se afastou d’Ele. A santa, perdida
em surpresa ainda maior, perguntou a razão de ela fugir das carícias de um
Esposo tão digno de ser amado; e a religiosa respondeu: “Porque ainda não estou
perfeitamente limpa dos rastros que meus pecados deixaram; e mesmo que Ele me
concedesse, neste estado, passe livre para o Céu, eu não aceitaria; pois por
mais resplandecente que eu pareça a seus olhos, sei que eu ainda não sou uma
esposa digna para meu Senhor.”
A beleza das pobres
almas
Neste momento, a alma tem um terno amor por Deus. Aos olhos
dos que partilham desta visão, estas almas se revestem da maior beleza. Como
não ser bela uma amada esposa de Deus? A alma está sendo punida, é verdade; mas
está também em inquebrantável união com Deus. “Ela não tem a mínima lembrança”,
afirma decididamente Santa Catarina de Genova, “a mínima lembrança de seus
pecados passados, ou da terra.” Sua doce prisão, seu santo sepulcro, é o
cumprimento da adorável vontade de seu Pai celestial, e lá ela passa o período
de sua purificação com o mais perfeito contentamento e o mais inefável amor.
Como não é perturbada por nenhuma visão de si mesma ou do pecado, assim também
não é acometida por nenhuma gota de temor, ou por uma dúvida sequer de sua
própria e imperturbável segurança. Ela é impecável; e houve um tempo na terra
que este estado de impecabilidade pareceria conter em si todo o Céu. Ela não
pode cometer sequer uma mínima imperfeição. Não pode sentir o menor movimento
de impaciência. Não pode fazer nada que, no mais mínimo grau, seja desagradável
a Deus. Ela ama Deus acima de qualquer coisa e O ama com o mais puro e
desinteressado amor. É constantemente consolada pelos anjos, e não pode senão regozijar-se
com a assegurada confiança em sua própria salvação. Pelo contrário, suas
agonias mais amargas são acompanhadas por uma profunda e imperturbável paz, que
a linguagem deste mundo não tem palavras para descrever.
O anseio por Deus das
almas sofredoras
Há revelações que falam de algumas almas que estão no
Purgatório, mas não sentem seu fogo. Languescem pacientemente longe de Deus, e isto
lhes é castigo suficiente. Há também revelações que contam acerca de grande
número de almas que não possuem uma prisão local, mas sofrem sua purificação no
ar, ou ao lado de seus túmulos, ou perto de altares onde está o Santíssimo
Sacramento, ou em cômodos daqueles que rezam por elas, ou contemplando cenas de
vaidades e frivolidades por elas anteriormente vividas. Se o sofrimento
silencioso suportado graciosa e docemente é uma coisa tão venerável na terra, o
que não deve ser essa região da Igreja? Comparado com a terra, suas provações,
dúvidas e riscos instigantes e depressivos, quão mais belo – quão mais
desejável – não é aquele reino silente, calmo e paciente sobre o qual reina a
Rainha Maria, que tem Miguel como perpétuo embaixador de sua misericórdia?
O espírito desta visão é o amor, um desejo extremo de que
Deus não seja ofendido, um anseio pelos interesses de Jesus. Seu tom é aquele
que marca o primeiro voo voluntário da alma em direção àquela herança de
sofrimento. Ela toma o partido de Deus contra si mesma, e o faz até o fim. Essa
visão do Purgatório se funda na adoração da pureza e santidade de Deus. Olha
para as coisas sob o ponto de vista de Deus e mescla seus interesses aos d’Ele.
É esta a visão que podemos esperar de São Francisco de Sales e da amorosa Santa
Catarina de Genova. E é o desamparo, e não a desventura, das almas detidas que
move aqueles que partilham desta visão de compaixão e devoção; mas é a glória
de Deus e os interesses de Jesus que, acima de tudo, os influenciam.
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