05/12/2011

Sobre ler, e ser incapaz de fazê-lo.

Gilbert Keith Chesterton
The Illustrated London News, 8 de dezembro de 1928


Ninguém muito interessado em Literatura demonstra grande interesse pela leitura. O desprezo manifestado pelo iletrado, as regulamentações exclusivas contra classes e raças iletradas, parecerá sempre divertido a quem se recorda de algumas das grandes memórias preservadas em cartas. Homero teria fracassado nos testes educacionais da imigração americana; mas apenas isto não resolve a enfadonha questão de prioridade entre Homero e a Srta. Ella Wheeler Wilcox.[1] São Francisco, que realmente encorajava os homens a serem iletrados, provavelmente serviu mais de inspiração para cartas do que o falecido Sr. Carnegie, que bombardeava as pessoas com livros que ele era incapaz de ler ou entender.[2] Alguns de nós, portanto, têm sempre ficado em dúvida sobre o valor deste teste mecânico. No caso americano, o teste somente exclui fazendeiros, e pode admitir falsificadores. Nas condições gerais européias, ele deliberadamente exagera o tipo de condições que produzem lixo, jargão e clichês jornalísticos, e despreza o tipo de condições que produzem o Livro de Jó ou a Canção de Roland. Então, quando nossos críticos alardearam a auto-evidente superioridade de pessoas perpetuamente ocupadas em ler e escrever, prestamos as devidas homenagens àquelas artes humanas, mas duvidamos se o mero crescimento indefinido delas teria sido sempre um sinal de sabedoria e autodeterminação social. Mas ultimamente uma nova questão tem começado a ocupar minha mente cética e incrédula. Ela surge depois, e em separado, da dúvida sobre se as pessoas que estão lendo mais estão necessariamente pensando mais.

Mas, as pessoas estão lendo mais? Se estão, o fato é apenas um fato em certo sentido e relação, e carece ser consideravelmente modificado pela percepção de outros fatos, e estes são os fatos que nunca são percebidos. É uma verdade que, em certo sentido, as coisas estão sendo cada vez mais facilitadas em relação à leitura. Mas isto acontece às vezes não porque haja uma explosão de bens, mas porque há uma escassez deles. Toda essa aberta e sonora publicidade pode ser mais um modo de persuadir indivíduos relutantes a ler do que um modo de satisfazer ávidos indivíduos com a leitura. A matéria para leitura tem ficado muito mais barata, em mais de um sentido do termo. Mas não prova que um livro é um best-seller o fato de que o livreiro o tenha colocado na caixa “qualquer livro por R$5”. Os indivíduos baixam os preços dos bens para se livrarem deles, tanto quanto para agradarem um público ansioso por adquiri-los; as coisas são baratas às vezes porque ninguém as comprariam se fossem caras. Mas aparte esta patente, embora muito esquecida, verdade econômica, há razões especiais para se duvidar da autenticidade do aumento geral da leitura. Suspeito fortemente que os sólidos caracteres tipográficos nos jornais são muito menos reais do que foram algum tempo atrás. Suspeito que os próprios homens de jornal também suspeitem disso. Isso explica o que de outra forma é completamente inexplicável: a loucura delirante das manchetes.

O jornalista coloca as coisas mais excêntricas em letras grandes, no topo da coluna, simplesmente porque ele duvida que elas sejam lidas se as colocar no meio da coluna. Assim, há todo tipo de detalhes triviais, mas a miúdo verdadeiros, muito naturais em qualquer artigo descritivo, que parecem rematada idiotice quando impressos em maiúsculas, como se fossem o título do artigo. O jornalista mais tradicional, escrevendo sua peça descritiva, se contentava em tratar dessas coisas de forma leve, sabendo que elas, pelo menos, seriam lidas em seus devidos lugares e seriam apreciadas pelo que valessem. Não é necessariamente pedante ou ridículo dizer, no curso de uma longa e ampla descrição de uma Coroação ou de um jogo de cricket, que a Duquesa da Água Parada pareceu se divertir quando um menino desentupidor de calhas fazia piruetas a sua frente, ou que o Bispo de Martelo Maldito aplaudiu entusiasticamente as rebatidas de sua antiga escola. Ao dar uma descrição longa e casual de tais coisas, um homem pode muito bem tanto mencionar a Duquesa quanto o clima, ou perceber o Bispo tanto quanto o menino. A execrável vulgaridade que se nos vociferam os jornais vem, agora, do novo hábito de transferir até os menores detalhes das letras menores para as maiores, colocando a Duquesa e o Bispo na primeira linha, como se eles fossem revoluções na Rússia ou terremotos no Japão. É quando lemos nas manchetes, “Menino de rua ganha um sorriso da Duquesa” ou “Bispo aplaude rebatedor”, que nos contorcemos e rangemos os dentes na mesa do café da manhã e juramos nunca mais abrir um jornal novamente.

Da mesma forma, o antigo repórter parlamentar tinha suas falhas e fraquezas, mas, para fazê-lo justiça, quando introduzia um parentético toque de algo pitoresco, ao dizer que o Sr. Chamberlain ajeitou sua orquídea[3] ou que o Sr. Gladstone[4] ajustou gravemente seu queixo em seu colarinho gladstone[5], ele o fazia como coisa incidental, à parte de uma peça de prosa descritiva geral, que tratava de todo tipo de outras considerações, todas adequadamente impressas em proporção às suas relevâncias – ou melhor, às suas irrelevâncias. Não teria sido culpa sua se alguém arrancasse algumas frases descritivas casuais de seu contexto e aumentasse de dez vezes o tamanho da referência aos colarinhos ou às orquídeas na primeira linha do jornal. Não teria sido sua culpa se alguém tivesse feito isso; mas, de fato, ninguém o fazia. Nos velhos tempos, quando o Sr. T. P. O’Connor,[6] para citar o exemplo mais brilhante, escrevia suas peças parlamentares pitorescas sobre o grande duelo entre a Orquídea e o Colarinho, nem ele, nem ninguém, jamais pensou em colocar estes detalhes pitorescos em cada título dos artigos. A razão era muito simples. Todo mundo sabia que íamos ler o artigo – quando era um artigo do Sr. T. P. O’Connor. Não é mais seguro que leremos o artigo de alguém. Portanto, se o jornalista está particularmente ansioso para que seu comentário sobre o colarinho ou sua figura de estilo sobre a orquídea seja percebido pelo leitor do jornal, ele tem de colocá-lo em letras grandes, bem no topo da página.

Tudo isso me faz lembrar pessoas retornando às cartilhas de alfabetização e à celebrada frase “O Dado É de Didi”.[7] Isso não me parece um aprimoramento na leitura, mas ao contrário, um recuo à incapacidade de leitura. As coisas que devem ser lidas realmente têm de ser impressas exatamente como costumavam ser impressas para crianças. Elas têm de ser impressas em letras maiúsculas muito claras; e tudo que for para ser percebido deve ser impresso em letras muito grandes.[8] Ora, isso não é o que as pessoas que realmente sabem ler descreveriam como o prazer da Leitura. Talvez isso possa ser comparado à moderna ciência da telegrafia. Mas não é saber ler prosa coerente e culta, dada a devida importância que as coisas maiores e menores têm no equilíbrio geral da composição. Essa é, ao contrário, uma evidência de que as pessoas estão realmente lendo cada vez menos; recuando, ao que parece, mais e mais das distantes luzes da alfabetização, de tal forma que somente sinais muito grandes ou os mais brilhantes flashes conseguem alcançá-los.

Não raro, lemos lendas de perseguições do passado; de perseguições em que os homens eram forçados a ler livros proibidos em segredo. Em comparação com aquelas leituras secretas, pergunto-me sobre o quanto há, hoje, de uma secreta recusa da leitura. Contam-nos de homens que iam para criptas e cavernas para ocultar o fato de que estavam lendo o Missal ou a Bíblia. Pergunto-me se muitas pessoas não estão, agora, trancadas em gabinetes e bibliotecas, ocultando o fato de que não estão lendo o jornal. Atualmente, supõe-se que todos nós lemos, como antes era suposto, talvez, que muitos de nós não sabíamos ler. Mas suspeito que em ambos os casos haja segredos e surpresas. Suspeito que há muitos homens inteligentes, que hoje caminham por nossas ruas, que passam dias, ou mesmo semanas, sem ler jornais, mas que conseguem manter uma impressão geral de conhecimento fundada inteiramente em boatos. De fato, eles realmente recebem os jornais como seus felizes antepassados recebiam os épicos e os romances, meramente por tradição e repetição oral. Tenho a impressão que inumeráveis pessoas hoje não lêem mais jornais, como, no passado, nunca leram os clássicos, embora eles possam se unir em coro na louvação de ambos. E os jornais estão gritando, como demagogos, cada vez mais alto, porque seus ouvintes estão cada vez mais surdos.



[1] Ella Wheeler Wilcox (1850-1919) foi uma poetisa americana muito popular. (N. do T.)
[2]Chesterton refere-se aqui ao magnata e filantropo americano, Andrew Carnegie (1835-1919), que financiou, com sua imensa fortuna, além de outras coisas, uma rede de bibliotecas nos EUA. (N. do T.)
[3] Joseph Chamberlain (1836-1914), estadista inglês, usava uma orquídea na lapela de seu paletó. (N. do T.)
[4] Hebert John Gladstone (1854-1930), estadista inglês. (N. do T.)
[5] Colarinho com as pontas dobradas para fora. (N. do T.)
[6] Thomas P. O’Connor (1848-1929), jornalista, editor e político nacionalista irlandês. (N. do T.)
[7] A frase original em inglês é a famosa The Cat Sat On The Mat. (N. do T.)
[8] Chesterton devota todo um capítulo em seu livro, Hereges, ao tema da mídia de jornal em sua época. O assunto das letras grandes das manchetes e títulos de artigos mereceu alguns dos melhores trechos do livro, como este: “Os editores usam esse alfabeto gigante ao tratar com os leitores, pela mesma exata razão que pais e professoras usam um alfabeto gigante similar ao ensinar as crianças a soletrar.” (N. do T.)

Um comentário:

Wendy A. Carvalho disse...

Meu Deus! Que ótimo ler isso. Que ótimo soltar o fôlego preso de palavras inexprimíveis pelo fato de serem simples e quase inefáveis. Superficialidade, auto-engano... Até quando vamos suportar essas doenças modernas? O que Chesterton chamava de "fofoca da História" é o que hoje se conhece por Jornalismo, mas até quando as pessoas preferirão fofocas ao Conhecimento e à Sabedoria? Creio que até que elas saibam que o que chamam de Trevas é Luz e o que chamam de Clareza é Escuridão.

Deus te abençoe, Angueth!

Eu já estava com saudade de ler algo novo de Chesterton, pois não estou podendo comprar nada novo. Quem sabe assim eu aprenda a ler as coisas velhas?