26/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte VII

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte V, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte VI e Opondo-se à heresia austríaca



Dr. Peter Chojnowski



F) Bernardino de Sena e Antonino de Florença: santos mal interpretados


Devemos ficar muito surpreendidos quando vemos um estudioso neoliberal, como Raymond de Roover, focalizando sua atenção em dois grandes santos: São Bernardino de Sena e Santo Antonino de Florença. [1] Primeiramente, é, acima de tudo, surpreendente que eles sejam denominados, “Dois grandes pensadores econômicos da Idade Média”, pois eles viveram no coração da florescente Renascença italiana. Que esses pensadores sejam aclamados como profetas das benesses do capitalismo liberal é também surpreendente, pois suas atitudes frente a assuntos econômicos não poderiam estar mais afastadas da mentalidade de Ludwig von Mises, que sustentaria que as leis da propriedade privada e do “livre mercado” são adversas às alegações morais “heterogêneas” advindas da lei natural e divina. Aqui, seria útil recordar a afirmação de Mises:

“A insistência para que as pessoas ouçam a voz de suas consciências e para que elas substituam as considerações a respeito do lucro privado por aquelas a respeito do interesse público, não cria uma ordem social funcional e satisfatória.” [minha ênfase]

A única coisa que os dois grandes santos sob consideração pretendiam com suas pregações e escritos sobre assuntos econômicos era “insistir para que as pessoas ouvissem a voz de suas consciências e substituíssem as considerações a respeito do lucro privado por aquelas a respeito do interesse público”. Eles também sustentavam que somente se isso fosse feito, se atingiria uma justa e satisfatória ordem civil.

Quando consideramos os ensinamentos morais de São Bernardino (1380-1444), como estes concernentes às questões econômicas, o que estamos analisando são 14 sermões que fazem parte de uma coleção maior de sermões intitulada De Evagelio aeterno (Sobre o Evangelho Eterno). Esses sermões em latim, em oposição aos escritos em italiano, eram para ser lidos mais que para ser pregados. Aqui, podemos ver a continuação de uma longa tradição, cujo eco pode ser percebido, em nossa época, através de homens como Heinrich Pesch, S.J., tradição essa de incluir questões econômicas dentro do horizonte mais amplo da ética. Nesses sermões de São Bernardino (um franciscano e grande apóstolo da devoção ao Sagrado Nome de Jesus), encontramos repetidos, mais uma vez, os ensinamentos gerais da Igreja a respeito da vida econômica. Como o próprio De Roover admite, a condenação da usura era um tema proeminente nos escritos de São Bernardino.[2] Tal como no caso de outros escolásticos, São Bernardino estava “preocupado com um outro conjunto de problemas [bem diferente de questões do tipo ‘como o mercado opera’]: o que é justo ou injusto, licito ou ilícito? Em outras palavras, o foco estava na ética: tudo era subordinado ao tema principal.” [3] Ambos, São Bernardino e Santo Antonino, desaprovavam o consumismo como um caminho para o pecado e a eterna perdição. Santo Antonino trata do tópico das transações de mercado na secção de sua Summa Moralis que trata do pecado da avareza.[4] Além do mais, a Economia era discutida dentro estrutura de contratos, como entendia Direito Romano. As virtudes que regulavam as ações econômicas individuais e coletivas eram as virtudes de justiça distributiva e comutativa (i.e., o Estado dando aos cidadãos “suas partes” e os cidadãos “dando a cada um a sua parte”). Ora, a única “parte” que os libertários admitem é o alegado respeito absoluto tanto por parte do governo quanto do cidadão à já demarcada propriedade privada do outro. Eles esquecem o que os distributivistas lembram muito bem: todos os homens têm o direito a uma certa propriedade privada. Aqueles que apóiam a Doutrina Social da Igreja Católica, melhor que seus antagonistas libertários, entendem o papel da propriedade privada na realização pessoal e familiar.

Quando estudamos o livro de De Roover sobre esses dois santos supostamente inovadores, temos dificuldade em encontrar um só ensinamento significativo que não esteja firmemente ancorado na sabedoria do passado católico ou que não tenha sido elucidado, de uma forma puramente tradicional, pela posterior e escolástica Escola de Salamanca. Como o próprio De Roover reconhece, São Bernardino, como os escolásticos medievais antes dele, entendia a determinação do preço como um processo social. O preço não é determinado por um conjunto de decisões arbitrárias de indivíduos, mas ele é determinado coletivamente pela comunidade como um todo.[5] São Bernardino diz isso explicitamente quando afirma, “o preço dos bens e serviços é determinado para o bem comum com a devida consideração à valoração e estimação comum feita coletivamente pela comunidade de cidadãos [minha ênfase].” [6] De acordo com De Roover, nos escritos de São Bernardino há apenas “uma análise mínima das conseqüências, no preço, das alterações da oferta e da procura.” [7]

Com relação à questão do preço discutida acima, como já tínhamos percebido anteriormente quando da análise do pensamento de Santo Tomás de Aquino, a descrição de De Roover sobre as “inovações” de São Bernardino é muito forçada e freqüentemente envolve o uso de afirmações que não provam, em absoluto, seu argumento. De fato, elas provam exatamente o contrário. Um exemplo é sua citação de uma única sentença dos “sermões” de São Bernardino que parece indicar que o santo considerava a idéia de “preço justo” semelhante àquela de “avaliação do mercado”. Para apoiar essa afirmativa, ele cita São Bernardino definindo o “preço justo” como “aquele que prevalece num dado momento segundo a estimação do mercado, isto é, aquele que as mercadorias atingem num certo local.” [8]

Como temos visto, contudo, a respeito dessa determinação do preço baseada na “oferta e demanda” e nas “condições do mercado”, havia uma sólida tradição moral, que passava pelos tempos da escolástica tardia, na qual era considerada perfeitamente razoável que preços de certos itens não-essenciais flutuassem livremente, sendo seus valores determinados pelo que alguém, que não tinha a menor necessidade do item em questão, estivesse disposto a pagar. O próprio De Roover parece reconhecer que a expressão “o ‘preço justo’ é o ‘preço alcançado no mercado’ ” se refere apenas a essa situação e àqueles tipos de bens. Mesmo assim, é claro que De Roover quer insinuar que São Bernardino igualava, em todos os casos, o “preço justo” àquele “que prevalece, num dado momento, segundo a estimação do mercado”. Com sua usual forma de expressão dúbia, ele diz, “Essa afirmação [sobre o preço justo e o preço de mercado], parece-me, é tão clara que não admite qualquer outro entendimento.”

Se, como ele parecer dizer, São Bernardino igualava o preço justo ao preço de mercado, todos os preços deveriam, por uma questão de justiça, ser submetidos ao livre fluxo das forças de mercado – qualquer interferência seria, em conformidade com essa perspectiva, uma interferência no mecanismo de determinação do “preço justo” do mercado. Que essa não é a posição de São Bernardino fica claro, pelos dizeres do próprio De Roover, quando ele admite que o franciscano ensinava que “os preços podem ser fixados em nome do bem comum.” A sociedade, então, é responsável pela determinação do preço. Quem não ouve os ecos de todo o etos econômico da cristandade na afirmação de São Bernardino de que os preços podem ser fixados em nome do bem comum, “porque nada é mais iníquo do que promover os interesses privados[9] às custas do bem-estar geral”?


[1] Raymond de Roover, San Bernadino of Siena and Sant'Antonino of Flor­ence: The Two Great Economic Thinkers of the Middle Ages.
[2] Ibid., p. 1.
[3] Ibid., pp.7-8.
[4] Ibid., p. 1.
[5] Ibid., p.20.
[6] St. Bernadine of Siena, De Evangelic aeterno, sermão 35, art. 2, cap.2 and 3 in Opera omnia, IV, 197-198. Esse texto é citado em de Roover, San Bernadino, p.20.
[7] De Roover, San Bernadino, p.21.
[8] Ibid., p.20.
[9] Ibid., pp.20-21.

19/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte VI

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte V e Opondo-se à heresia austríaca


Dr. Peter Chojnowski


E) A complexidade do preço justo reafirmada

De Soto era, como todo escolástico, um herdeiro de uma tradição acadêmica secular. Suas idéias sobre a conveniência de se “fixar” preços tinham antecedentes profundamente enraizados na Idade Média. Aquele “não-gigante”, o estudioso vienense Heinrich von Langenstein, era um defensor de um rígido sistema de controle de preços. Ele sugere ao príncipe, contudo, fixar preços de acordo com o preço habitual que é determinado pelo “grau do desejo humano”. Além do mais, Langenstein demonstra um ponto de vista completamente equilibrado com respeito à questão do preço justo. Ele reconhece que há no preço um fator objetivo, no sentido de que ele deveria ser fixado por alguma autoridade desde fora do mercado mas, ainda assim, que ele é produto de fatores subjetivos. Alguns desses fatores subjetivos mencionados por Langenstein são: oferta e demanda, utilidade, custo da produção, remuneração do trabalho, custo do transporte e risco. Todos esses devem ser levados em conta quando se determina o valor de um bem.[1] Tal como Santo Tomás de Aquino, Langenstein entendia que a “oferta e demanda” desempenha um papel na determinação do preço. A própria Grice-Hutchinson reconhece esta como sendo a posição mantida pela tradição escolástica quando escreve, “vimos que os conceitos de utilidade e raridade tinham um lugar eminente na lista tradicional de fatores determinantes do valor que fundamentava as discussões escolásticas a respeito do ‘preço justo’.” Ela também admitia, “vimos que nossos escritores escolásticos consideravam a utilidade e a raridade como os determinantes principais do valor, apesar de não serem os únicos [ênfase minha].” [2]

Se fossemos procurar um outro membro da Escola de Salamanca que concordasse como o ensinamento de De Soto sobre a desejável fixação de preços, especialmente de “certas” mercadorias, encontraríamos um certo Pedro de Valencia. Em seu Discurso sobre el precio del trigo, ele afirma

“Aqueles que alegam que uma coisa vale o preço que ela alcança devem ser interpretados como se referindo somente a coisas que não são essenciais à vida, tais como diamantes, falcões, cavalos, espadas, e também a outras coisas mais comuns, desde que não haja fraude, compulsão ou monopólio, e quando vendedor e comprador desfrutarem de igual liberdade ou estiverem submetidos a igual necessidade [ênfase minha]”.

Reconhecendo, contudo, que em matérias de real necessidade a população está em clara desvantagem em qualquer operação de troca, ele afirma, “no caso do pão, nos anos em que ele é caro, o vendedor sempre desfruta de liberdade e fartura, e o comprador é sempre submetido a necessidade urgente.” Chegamos agora à questão do preço justo:

“O preço justo não é aquele que é determinado pela necessidade do mercenário, nem pode tal preço, em sã consciência, ser exigido. Nenhum preço é justo ou pode ser considerado corrente se está contra o interesse público, que é a primeira e principal consideração que justifica o preço das coisas.”[3]

_______________
[1] Ibid., p.28.
[2] Ibid., p.64.
[3] Pedro de Valencia, Discurso sobre el precio del trigo (reimpresso in Pedro de Valencia, Escritos sociales, in Biblioteca de clasicos sociales espanoles [Madrid, 1945]); o texto é citado em Hutchinson, pp.118-119.

18/08/2007

Introdução ao LIVRO DE JÓ - Parte II

Ver Introdução ao LIVRO DE JÓ - Parte I

G.K. Chesterton

A importância atual do livro de Jó não pode ser expressa adequadamente mesmo se se disser que ele é o mais interessante dentre os livros antigos. Podemos quase dizer que ele é o mais importante dos livros modernos. Na verdade, nenhuma das duas frases cobre a matéria, pois a religião humana fundamental e a irreligião humana fundamental são ambas, ao mesmo tempo, antigas e modernas; a filosofia ou é eterna ou não é filosofia. O hábito moderno de dizer “Isso é minha opinião, mas posso estar enganado” é inteiramente irracional. Se digo que posso estar enganado, digo que isso não é minha opinião. O hábito moderno de dizer “Todo homem tem uma filosofia diferente; esta é minha filosofia e estou satisfeito com ela” – o hábito de dizer isso é meramente uma fraqueza mental. Uma filosofia cósmica não é construída para satisfazer um homem; uma filosofia cósmica é construída para satisfazer o cosmos. Um homem pode tanto possuir uma religião privada quanto pode possuir um sol ou uma lua privados.

Este ensaio de Chesterton será publicado proximamente pela revista Guia Prático de Teologia. Futuramente, ele será republicado no blog, corrigido e acrescentado das partes faltantes na primeira publicação. Aguardem. (Nota acrescentada em 30 de julho de 2012.)

15/08/2007

Introdução ao LIVRO DE JÓ - Parte I

"O homem é confortado, sobretudo, por paradoxos"


G.K. Chesterton


O livro de Jó é, dentre os livros do Antigo Testamento, tanto um enigma filosófico quanto um enigma histórico. É o enigma filosófico que nos interessa numa introdução como esta; assim, dispensemos umas poucas palavras numa explicação geral ou num alerta a respeito do aspecto histórico. Há muito sobrevivem controvérsias sobre que partes desse épico pertencem ao esquema original e quais partes são interpolações de datas muito posteriores. Os doutores discordam, como é do ofício dos doutores; mas, no geral, a tendência da investigação tem sido sempre na direção de sustentar que as partes interpoladas, caso o sejam, são o prólogo e o epílogo, que estão em prosa, e possivelmente o discurso do jovem que faz uma apologia ao final. Não sou competente para decidir tais questões.

Este ensaio de Chesterton será publicado pela revista Guia Prático de Teologia. Futuramente, ele será republicado no blog, corrigido e acrescentado das partes faltantes na primeira publicação. Aguardem. (Nota acrescentada em 30 de julho de 2012.)

12/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte V

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV e Opondo-se à heresia austríaca

Dr. Peter Chojnowski


D) A Escola de Salamanca e o preço justo

Ao considerar o que a supostamente inovadora Escola de Salamanca dizia a respeito da importante questão do “preço justo”, a questão econômica mais importante do medievo, me defrontei com um texto, contido em The School of Salamanca de Grice-Hutchinson, que me levou a refletir por um momento. Ali, numa citação do livro de Domingo de Soto, De Justitia et jure, publicado em 1553, encontramos a seguinte resposta para a questão, “Devem os preços ser determinados de acordo com a avaliação dos próprios comerciantes?”:

“Primeiramente ... excluindo a fraude e a malícia, devemos deixar os comerciantes fixarem o preço de suas mercadorias. Em segundo lugar ... cada homem é o melhor juiz de sua própria mercadoria. Ora, o ofício do comerciante é entender de mercadoria. Então, devemos conceder a eles a determinação dos preços. Em terceiro lugar, um homem por fazer o que bem entender com sua propriedade. Conseqüentemente, ele pode cobrar e receber qualquer quantia por suas mercadorias.”

“Agora”, disse a mim mesmo, “temos um grande problema. Domingo de Soto é uma grande figura na história da Escola de Salamanca. Ele era um dominicano, um contemporâneo de Vitória, fundador da Escola, e considerado um dos melhores escritores sobre assuntos econômicos. Em 1532, De Soto foi nomeado para a cadeira de Teologia em Salamanca. Sua fama era tal que, em 1545, o Imperador do Sacro Império Romano e Rei da Espanha, Carlos V, nomeou De Soto, agora considerado o mais eminente dos teólogos espanhóis depois de Vitória, como seu representante pessoal no Concílio de Trento. Ele se tornou o confessor de Carlos V dois anos mais tarde. Com certeza, se este homem sustenta a opinião de que é o ‘livre mercado’ que determina o preço das mercadorias, tal deve ser o ensinamento genuíno emanado de Salamanca”

Depois de alguma desconfortável consternação, ficou claro para mim o que eu estava lendo. Ao invés de ser a própria opinião e ensinamento de De Soto sobre a questão, estas eram objeções à posição mantida por De Soto, que sempre, claro, aparecem em primeiro lugar em qualquer artigo escolástico propriamente organizado. O ensinamento de De Soto sobre a matéria do preço justo e apropriado está perfeitamente em concordância com o que se esperaria de um teólogo católico de uma civilização ainda florescente e fiel.

A primeira “conclusão” de De Soto a respeito dessa questão faz uma distinção que é o fundamento natural (de senso comum) para qualquer discussão sobre preços: o preço de um bem (ou mercadoria) não é determinado por sua essência (como a coisa se encaixa em toda a hierarquia da Criação), mas ao contrário, “na medida em que ele (bem ou mercadoria) serve às necessidades da humanidade.”[1] Aqui ele afirma o que era ensinado, durante o mesmo período (1554) por outro estudioso de Salamanca, Diego de Covarrubias: “O valor de um artigo não depende de sua natureza essencial, mas da avaliação dos homens, mesmo se essa avaliação for tola.”[2] Os “bens” que citamos aqui são “bens” que são bons na medida em que servem às necessidades humanas. Essas coisas, portanto, têm um preço na medida em que são valorosas aos olhos dos cidadãos; esses bens ou mercadorias que permitem aos cidadãos satisfazerem suas necessidades. De Soto conclui sua alegação fundamental sobre preços dizendo, “Temos de admitir, então, que o desejo é a base do preço.” As coisas são, então, mais desejáveis, e assim terão um preço maior, na medida em que elas mais perfeitamente satisfizerem o desejo humano de realização e subsistência, qualquer que seja o lugar que elas ocupem na hierarquia da Criação. Como diz Santo Agostinho (Cidade de Deus, Livro II, cap. 16), “um homem prefere ter milho do que rato em sua casa”; a despeito de o rato ser ontologicamente mais perfeito que os grãos de milho.

De Soto, quando fala do “necessidade” ser a base de toda a vida econômica, reconhece, de uma forma muito equilibrada, que quando falamos de “necessidade”, não devemos excluir o fato de que a cidade precisa de “adorno”; mesmo não sendo tais coisas necessárias à vida humana, elas tornam a vida “prazerosa e esplêndida.”

Na segunda “conclusão” de De Soto, encontramos uma afirmação que contradiz diretamente as alegações libertárias de que os escolásticos tardios de Salamanca pensavam que nada deveria ser considerado no cálculo do preço, exceto a “oferta e demanda”. De Soto lista a “oferta e demanda” como um dos elementos que entram na determinação do preço justo de um item.

Além disso, temos de considerar o trabalho, os problemas e o risco que a transação envolve. Finalmente, devemos considerar se a troca é, para melhor ou pior, vantajosa ou desvantajosa ao vendedor, se os compradores são escassos ou numerosos, e todas as outras coisas que um homem prudente deve levar propriamente em conta.

Em outras palavras, para consternação dos que insistem que a Escola de Salamanca não reconhecia nada além das necessidades da “oferta e demanda”, encontramos um dos seus mais proeminentes estudiosos asseverando que todo o processo de produção e venda deve ser considerado quando o justo preço é calculado. Prudência social e econômica é o que manda aqui.

Descobrimos no próximo parágrafo quem, exatamente, deve emitir o consistente julgamento, utilizando-se essa prudência social e econômica. A resposta a essa questão depende de outra distinção escolástica. Essa distinção é entre o preço “legal” e o preço “natural”. Há, como diz De Soto, um aspecto “duplo” no “preço justo”. Neste ponto descobrimos que o “preço justo legal” é aquele que é fixado pelo príncipe. O preço “discricionário” ou “natural” é aquele que é praticado quando os preços não são controlados. De Soto afirma que essa distinção é deduzida da Ética a Nicômaco, de Aristóteles (V, cap. 7). Note, nesse particular, que De Soto não está fazendo “juízo de valor”, dizendo que o “preço legal” é mau e o “preço natural” é bom. Como veremos, a aplicação desses dois diferentes tipos de preços depende de que tipo de bem ou mercadoria estamos falando.

Os próximos parágrafos da passagem que estamos citando são muito significativos e tiveram eco em outros estudiosos da Escola de Salamanca. De Soto afirma:

“Para entender a conclusão [acima] e julgar sua validade, e ver porque é necessário controlar os preços, devemos perceber que a matéria é de importância capital para a república [no sentido de res publica ou de comunidade] e o governador, que, a despeito dos argumentos acima [i.e, aqueles argumentos favoráveis ao ‘livre mercado’ nas Objeções], deve realmente fixar o preço de todo artigo. Mas como ele não pode fazer isso em todos os casos, a tarefa [de ‘fixação’ do preço daquelas mercadorias que o príncipe não fixou] é deixada para a discrição de compradores e vendedores. O preço que resulta é chamado o preço natural porque reflete a natureza dos bens e a utilidade e conveniência que eles carregam [ênfase minha].”[3]

Como prova de que o termo “preço legal” não contém nenhum valor negativo, podemos citar De Soto dizendo, “Quando um preço é fixado por lei (por exemplo, quando uma medida de trigo, vinho ou tecido é vendida por certa soma) é ilegal aumentar esse preço mesmo que seja de um centavo. Se o excesso for grande, então é pecado mortal e uma situação que exige restituição.” Aqueles preços que não são regulados, especialmente de mercadorias que não compõem as necessidades básicas do cidadão, “podem desfrutar de certa liberdade dentro dos limites da justiça.” Aqui vemos que mesmo os preços livres devem ser mantidos dentro dos limites da justiça; “justiça” que, neste caso, significa as exigências do bem comum.


[1] Domingo de Soto, De Justitia et Jure, Livro VI, Q. 2, Art. 3, pp.546-549 (Salamanca, 1553). Este texto é citado por Hutchinson, pp.83-88.
[2] Diego de Covarrubias, Variarum ex pontificio, regio et caesareo jure resolutionum, Book 4, 1554, vol. li, lib.2, chap.3 como apresentada por Hutchinson, p.48.
[3] Ver Hutchinson, School of Salamanca, pp.84-85.

08/08/2007

Missa Tridentina em Belo Horizonte: próximas datas

Dia 18 de agosto: capela Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
Endereço: rua João de Matos, 214, quase esquina com a rua Jacuí, no bairro Ipiranga.
Horário: 17h


Dia 26 de agosto: Capela do Colégio Sagrado Coração de Jesus (não confundir com a Igreja do Coração de Jesus)
Endereço: Rua Professor Morais (esquina com Getúlio Vargas), 363 -Funcionários
Horário: 10 horas da Manhã
OBS: O Padre estará 1 horas mais cedo (9 horas) para atender confissões

05/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte IV

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III e Opondo-se à heresia austríaca



Dr. Peter Chojnowski



C) A função do dinheiro e a questão da conversão de moedas


As idéias medievais a respeito da origem e das funções do dinheiro são principalmente fundamentadas numas poucas passagens de Aristóteles, na Política e em Ética a Nicômaco. Nestas obras, Aristóteles insiste que a função do dinheiro é seu uso como meio de troca de bens. A moeda foi primeiramente inventada para resolver as dificuldades e necessidade de transporte, que surgem inevitavelmente numa economia de escambo.[1] A moeda, portanto, serviu como um denominador comum entre bens de natureza diversa: “Fazendo todas as coisas comensuráveis, equalizando-as.”[2] Além de tornar comensurável ao vendedor e ao comprador o que, por natureza, é qualitativamente diferente, a moeda podia servir como “capital”, ou como estoque de valor a ser usado no futuro. Aristóteles enfatiza a função da moeda como um instrumento humano, indicando que seu valor se origina no costume e que “depende de nós mudar seu valor ou torná-lo completamente nulo.”[3] Averroes (1126-98), cujos comentários sobre a Ética foi traduzido para o Latim no início do século XIII, segue de perto Aristóteles a respeito da origem e funções do dinheiro.[4]

Desde que Santo Tomás de Aquino formulou sua visão tradicional de que a moeda foi inventada para facilitar a troca, ele sustentou que era ilegal cobrar uma taxa por um empréstimo de dinheiro, que tinha o nome de usura. Temos aqui uma reafirmação da condenação aristotélica da usura. O próprio Santo Tomás aplica essa idéia na questão em discussão, – ou seja, a cobrança de uma taxa pela troca internacional de moeda – condenando-a completamente. Comerciantes que tentam ganhar dinheiro por meio de empréstimo financeiro – emprestando uma quantia num lugar e coletando-a em outro – enfrenta a seguinte afirmação de Santo Tomás em seus Comentários sobre a Política de Aristóteles, I, 1vii:

“É natural ao homem adquirir dinheiro com o propósito de conseguir alimento a partir de coisas naturais com frutas ou animais. Mas quanto o dinheiro é adquirido não por meio de coisas naturais, mas a partir do próprio dinheiro, isso é contra a natureza.”

Esse ensinamento sobre ganhar dinheiro com base no “preço” relativo do dinheiro em dois lugares diferentes, aparece em 1532, quando os comerciantes espanhóis de Antuérpia enviam seu confessor a Paris para conseguir, dos doutores da Universidade, um parecer sobre a legitimidade das transações financeiras internacionais. Eles condenaram, de forma clara, todo o negócio de transações.[5] A conclusão que os neo-liberais, representados por Marjorie Grice –Hutchinson, gostariam de extrair desse incidente é que a taxa de conversão financeira flutua de acordo com a situação da oferta e da demanda e não é calculada a partir do trabalho ou dos custos do credor. A suposição aqui é que o processo de determinação do “preço” do dinheiro é o mesmo que o processo de determinação do preço dos bens. Essa é uma suposição arbitrária. Além do mais, os doutores da Universidade de Paris estão, aparentemente, apenas tratando de uma matéria de fato. Em si mesmo, o parecer não determina o que os doutores escolásticos diriam sobre o “preço justo” de coisas que devem ser vendidas, ou seja os bens. O que podemos extrair dessa resposta é uma reafirmação do ensinamento perene da Era Cristã; o dinheiro não deve se originar do dinheiro. Como afirma Santo Tomás, tal atividade merece justa reprovação, pois, considerada em si mesma, “ela satisfaz a ambição por dinheiro, que não conhece limite e tende ao infinito.”[6]


[1] The Politics of Aristotle, editada e traduzida por Ernest Barker (New York: Oxford University Press, 1945), I, 1257a and 1133b.
[2] Aristotle, Nicomachean Ethics, trans. Terence Irwin (Indianapolis, Indiana: Hackett Publishing, 1985), V, 1133a.
[3] Ibid. Cf. Hutchinson, School of Salamanca, pp.20-21.
[4] Hutchinson, School of Salamanca, p. 22.
[5] Ibid., p. 38.
[6] Ibid., p.35. Cf. ST, II-II, Q. 77, Art. 4.

03/08/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte III

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I, Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II e Opondo-se à heresia austríaca


Dr. Peter Chojnowski


B) Os freis espanhóis e o sistema bancário renascentista

Para provar que os escolásticos, tardios ou não, não aderiram aos princípios libertários da vida econômica, é melhor citar os trabalhos históricos dos próprios neo-liberais. Os dois que nos chamam a atenção são A Escola de Salamanca: a Teoria Monetária Espanhola 1544-1605, de Marjorie Grice-Huntchinson [1] e São Bernardino de Siena e Santo Antonino de Florença: Os dois Grandes Pensadores Econômicos Medievais, de Raymond de Roover.[2] Nossa tarefa pode ser simplificada se pudermos demonstrar, usando a pesquisa dos próprios estudiosos neo-liberais, que os escolásticos tardios espanhóis de Salamanca, assim como os santos mencionados acima, estavam totalmente imersos dentro da grande tradição intelectual, social e econômica da cristandade católica, mais particularmente no que diz respeito à questão do “preço justo”. Se o “preço justo” for formulado de uma forma que inclua vários fatores além das exigências da “oferta e procura” (i.e., se houver um aspecto moral e social na determinação do preço), e, especialmente, se houver um papel para o “príncipe” na determinação dos “preços de mercado”, então podemos seguramente rejeitar a noção de que aqueles estudiosos católicos do passado aceitaram uma concepção peleo-capitalista de determinação do preço e, portanto, da vida econômica da sociedade como um todo.

Mesmo sendo a Universidade de Salamanca o lugar mais proeminente de ensino superior da Europa naquele tempo, foi a posição da Espanha de líder do Novo Mundo que preparou o ambiente para uma concentração de problemas de Economia estudados pelos escolásticos de Salamanca. O ouro e a prata vindos das Américas fez de Sevilha, o porto das embarcações cheias de tesouro, o centro econômico e o principal mercado financeiro da Europa Continental, em meados do século XVI.[3] Temos aqui um lugar onde havia uma grande circulação de dinheiro e um alto nível de preços. Tomas de Mercado (d. 1585), um dominicano mexicano que morou em Sevilha e pregava sobre a moralidade comercial, descreve a situação financeira e mercantil que lá se estabeleceu. Segundo Mercado, quando a frota chegava, cada mercador depositava no banco todo o tesouro que era trazido, para ele, das Índias e os banqueiros davam garantia às autoridades da cidade sobre o que estava depositado em seus estabelecimentos.[4] Os banqueiros prestavam esse serviço de graça e usavam os bens depositados para financiar suas próprias operações. A maior parte do ouro e da prata aportada pela frota passava, desta forma, pelas mãos dos banqueiros e servia como base do crédito. Essas transações ocasionavam a oportunidade para a usura. Como Mercado, então, reclamava, “os trocadores de dinheiro sugavam todo o dinheiro para suas instituições e quando, um mês depois, os mercadores precisavam de recursos, eles lhes emprestavam seu próprio dinheiro a uma taxa exorbitante.” Na Espanha, conclui Mercado, “um banqueiro abarca o mundo todo e abraça mais do que o Oceano, apesar de, algumas vezes, ele não conseguir manter estável todo o sistema e tudo cai por terra.” [5]

Essa crítica de Mercado (que morreu num navio em 1585 no caminho de volta ao México) contra as transações comerciais de banqueiros e comerciantes era a articulação de uma idéia que tinha uma origem antiga. O pagamento de juros pelo simples uso do dinheiro por um certo período de tempo era considerado usura e universalmente condenado. Muito do pensamento moral espanhol sobre Economia neste período era, especialmente, uma tentativa de atacar considerações morais surgidas para evitar a condenação da usura pelo Estado e pela Igreja.

A tentativa de lograr as leis da usura ocorreu de uma forma muito sutil. Ela se originou de uma tentativa aparentemente legítima de tratar de duas dificuldades encontradas pelos comerciantes de então. Primeiramente, havia, de modo geral, falta de moeda na época, o que exigia que os comerciantes contraíssem dívidas uns com os outros nas “feiras” comerciais, que ocorriam em vários lugares, em várias datas ao longo do ano. Em segundo lugar, os comerciantes do período, nas várias feiras, tinham de agir como trocadores de dinheiro, pois, freqüentemente, um débito era contraído num lugar, digamos Sevilha, e quitado em outro, digamos Flanders. A esse respeito, era geralmente aceito, que um comerciante que emprestava o dinheiro num lugar e o recebia em outro, tinha direito a um pagamento por seus serviços. Mesmo em relação a esse tipo de “serviço financeiro,” cobrar uma taxa similar para transferências de dinheiro de uma feira espanhola para outra era proibido por um decreto real de 1551.[6] A Coroa Católica Espanhola estava até mesmo disposta a “desarranjar todo o negócio das feiras” a permitir que os comerciantes se envolvessem com o desnecessário “serviço financeiro.” Havia também situações nas quais o dinheiro emprestado não seria devolvido na próxima feira, mas um ano depois. Devido às “taxas” de tais “serviços financeiros,” estes se tornaram empréstimos camuflados de taxas de serviço e envolviam altos juros. Segundo Grice-Hutchinson, isso gerou “vários decretos tanto da Igreja quanto do Estado.”[7]

É no momento de tratar da questão de transferência de fundos de uma feira a outra, que Grice-Hutchinson, como representante da escola econômica neo-liberal, se atém à questão do “preço” e nos fatores determinantes dos “preços”, tanto do dinheiro quanto dos bens.
[1] Marjorie Grice-Hutchinson, The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary Theory 1544-1605 (Oxford: Clarendon Press, 1952).
[2] Raymond de Roover, San Bernadino of Siena and Sant' Antonino of Florence: The Two Great Economic Thinkers of the Middle Ages (Boston: Harvard University Printing Office, 1967).
[3] Hutchinson, School of Salamanca, pp. 1-6.
[4] Ibid., p8.
[5] De Tomas de Mercado, Tratos y contratos de mecaderes publicado em Salamanca en 1569 citado em Hutchinson, pp.4-8.
[6] Ibid., pp.9-11.
[7] Ibid., p. l&.

27/07/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I e Opondo-se à heresia austríaca


Dr. Peter Chojnowski


A) O sonho libertário de De Roover

Nunca foi uma opção atrativa muito interessante para alguém se basear apenas em concepções prevalecentes em seu próprio tempo. Os Whigs americanos de 1787 inspiraram-se na república romana e os democratas franceses de 1789 recorreram à democracia ateniense. Considerar como um modelo político algo de 2000 anos atrás é um exemplo genuíno do gosto por antiguidades. Pelo menos, Napoleão, com sua admiração tardia por Carlos Magno, retrocedeu apenas 1000 anos para encontrar um exemplo de uma situação em que sua nova forma de governo “funcionara” (Devemos lembrar aqui que a razão de os povos não adotarem, no transcorrer de tanto tempo, esses dois antigos modelos de governo, foi porque eles estavam suficientemente conscientes de que eles não “funcionaram”). Alguns libertários se sentem compelidos a estabelecer uma conexão entre suas idéias e o catolicismo. Resta-nos imaginar quais seriam suas motivações. Contudo, o que é claro é que, na segunda metade do século passado, e mesmo neste século, tem havido libertários que identificam as primeiras idéias capitalistas (considero aqui o capitalismo como a forma econômica do liberalismo – não confundir com o esquerdismo americano) com as que existiam dentro do organismo corporativo da cristandade, antes do “alvorecer” do Iluminismo. Há pensadores libertários mais negligentes que chegariam mesmo a afirmar que não somente há certas anomalias liberais no paradigma do cristianismo histórico, mas ainda, que o liberalismo é o próprio paradigma civilizacional do cristianismo. O foco recorrente de tal “sonho” libertário é a Escola de Salamanca da Renascença Tardia[1] e os santos Bernardino de Sena e Antonino de Florença. A questão principal, apesar de não ser a única, é a do “preço justo”. Será que os escolásticos tardios, representados pela Escola de Salamanca, além de dois santos da Renascença, conhecidos pelos seus sermões a respeito de questões econômicas, podem ser identificados como os primeiros defensores do liberal-capitalismo devido à sua, suposta, insistência de que o “preço justo” que devia ser sustentado pela Igreja, Estado e Sociedade é simplesmente aquele que é dado ao produto devido à inter-relação da oferta do produtor e da demanda do consumidor? Se a “justiça” econômica, no seu nível mais básico e essencial, for simplesmente uma questão de aderência fiel às “leis da oferta e da demanda”, podemos dizer que a visão desses pensadores católicos poderia ser, de fato, caracterizada como um exemplo de um nascente liberalismo econômico. Se há algo mais na “justiça” do que a simples interação da vontade livre do produtor e da escolha livre do consumidor, então o que defendiam esses pensadores não poderia ser denominado uma forma inicial das concepções miseanas/neo-liberais/libertárias.

Ao procurar um exemplo de um neo-liberal que representa essa tentativa de encontrar raízes, num passado distante, das doutrinas liberais que parecem bem modernas, podemos recorrer a Raymond de Roover, que publicou um artigo com o título “O conceito do preço justo: teoria e política econômica” no Journal of Economic History (Dezembro de 1958).[2] É interessante ler o que diz De Roover da “típica” visão medieval, na medida em que ela se relaciona com o tópico “preço justo”. No artigo lemos:

“De acordo com uma crença amplamente disseminada – encontrada em quase todos os livros que trata do assunto – o preço justo estava ligado à concepção medieval de uma hierarquia social e correspondia a um ganho razoável que permitiria o produtor viver e tratar de sua família de uma forma adequada a seu nível de vida [minha ênfase]. Considera-se geralmente que essa doutrina encontrou sua aplicação prática no sistema de guildas. Nesse sentido, as guildas são descritas como agências de bem-estar social, que impediam a competição injusta, protegiam os consumidores contra o logro e a exploração, criavam igualdade de oportunidades para seus membros e asseguravam a eles um meio de vida modesto mas decente, dentro dos padrões tradicionais.” [3]

Indicarei em nota de rodapé todos os autores que compartilhavam esses, universalmente reconhecidos, “equívocos”.[4] Tal era a “idílica” visão da Idade Média sustentada pelo grande economista alemão Max Weber e pelo escritor, polemista e historiador britânico Arthur Penty. Segundo De Roover, outro famoso economista alemão, Werner Sombart (1863-1941), foi ainda além: segundo ele, não somente os artesãos, mas também os comerciantes medievais lutavam por conseguir apenas um ganho suficiente para a sobrevivência em seu nível social, não procurando acumular riqueza ou subir na escala social. Essa atitude, alegava Sombart, estava fundamentada no conceito de preço justo “que dominava inteiramente o período da Idade Média.” [5]


De Roover, contudo, tem um entendimento diferente do ambiente mental da Era Cristã com relação aos preços e à atividade econômica em geral. Em meio a muitos non sequiturs, alegações históricas confusas e, mesmo, contraditórias, encontramos De Roover usando de subterfúgios para desviar a atenção, tais como, “O próprio Tomás de Aquino reconhece que o preço justo não pode ser determinado com precisão, mas pode variar dentro de certa faixa, o que não significa nenhuma injustiça. Isso ... não está de acordo com a dialética marxista; mas concorda com a análise econômica clássica e neo-clássica” [minha ênfase].[6] Assim, uma afirmação moral equilibrada e óbvia sobre um aspecto menor da questão do preço justo, porque ela não está de acordo com a teoria marxista, faz a posição de Santo Tomás de Aquino “concordar com a análise clássica e neo-clássica.”

A lógica bizarra e forçada presente na análise de De Roover só pode ser tratada superficialmente aqui. Por exemplo, um dos economistas “ingênuos”, Werner Sombart, cita Heinrich von Langenstein (1325-97) que diz: “se as autoridades públicas não fixam um preço, o produtor deve fixá-lo, mas ele não deve cobrar mais do que o seu trabalho e as despesas de manutenção de seu nível de vida (per quanto res suas vendendo statum suum continuare posit).” Isso está totalmente de acordo com o entendimento “tradicional” do pensamento social e econômico da Idade Média católica. Langenstein continua na mesma tecla, “E se ele cobra mais a fim de enriquecer-se ou melhorar sua posição, ele comete o pecado da avareza.” [7] Essa posição de Langenstein era “considerada como uma formulação característica da doutrina escolástica do preço justo,” segundo De Roover. A citação de Sombart, De Roover insiste, foi “copiada por todos os autores, desde então.”[8] De Roover tenta jogar água fria no entusiasmo dos historiadores econômicos pelos escritos de Langenstein, dizendo que, “Langenstein não era um dos gigantes da filosofia medieval, mas uma figura menor.”[9] Esta afirmação é, claro, totalmente irrelevante para o tópico em questão. A questão não era se Langenstein era um dos “gigantes” da filosofia medieval, mas se sua afirmação a respeito da teoria e prática econômica pode ser vista como “característica.” Ninguém precisa ser um gigante para ser característico. “Gigantes”, não são, a propósito, nem um pouco característicos, mas isso é uma outra conversa.

Quando De Roover trata de um verdadeiro gigante, Santo Tomás de Aquino, descobrimos afirmações contraditórias em meio a deduções mais que questionáveis. A respeito de Santo Tomás, ele se atém a um tópico que ele – De Roover – acredita confirmará que a “maioria dos doutores [escolásticos]” sustentava que o “preço justo” não correspondia ao custo da produção como determinado pelo status social do produtor, mas era “simplesmente o preço de momento do mercado.” Claramente, De Roover entendia que se o preço justo significasse outra diferente do “preço justo” capitalista, falharia sua tentativa de fundamentar o capitalismo neo-liberal no pensamento e na tradição social católicos. Ele tinha de provar que a “justiça” do preço cobrado na cristandade medieval se realizava exatamente no preço que o item pudesse alcançar no mercado livre. O plano era descrever Santo Tomás como um pioneiro liberal em matéria econômica e, então, indicar como o pensamento escolástico posterior o seguiu, preparando, assim, o terreno para Adam Smith e o liberalismo capitalista de Manchester.

De Roover começa sua análise do pensamento de Santo Tomás de Aquino a respeito do “preço justo” afirmando que nos escritos de Aquino, “as passagens relacionadas ao preço estão dispersas e são tão conflitantes que fizeram surgir interpretações variadas.”[10] Ele então continua, afirmando, claramente, o que Santo Tomás definitivamente quis dizer com o termo “preço justo”. À medida que ele “definitivamente” articula o pensamento de Santo Tomás, ele contradiz não só sua própria interpretação, como também as afirmações de Aquino. Por exemplo, De Roover afirma, “Selecionando apenas aquelas passagens favoráveis às suas teses, certos escritores chegaram mesmo à conclusão de que Alberto Magno e Tomás de Aquino formularam uma teoria do valor-trabalho.” Numa nota de rodapé, na mesma página, ele afirma, “De fato, Aquino chega muito próximo de dizer que qualquer troca de duas mercadorias deve ser baseada na razão da quantidade de trabalho nelas despendido.” Não está ele afirmando, aqui, que Aquino tinha uma “teoria do valor-trabalho,” quando, em apenas um parágrafo acima, ele ralhava com “certos escritores” por estes terem concluído que Santo Tomás “formulou uma teoria do valor-trabalho”?

O raciocínio do pensador liberal se torna algo confuso quando o pegamos, no início de um parágrafo, afirmando que Santo Tomás “em nenhum outro lugar expôs tão claramente a questão [do preço justo],” e ao final do parágrafo dizendo que

“essa [única] passagem [que é apenas uma estória relacionada a uma questão moral menor] destrói, com um simples sopro, a tese que tenta transformar Aquino num marxista, e prova acima de qualquer dúvida que ele considerava justo o preço de mercado.”

Então, num único parágrafo, constituído principalmente de uma estória ilustrativa sobre um comerciante que vende trigo numa cidade quando ele sabe que há mais trigo chegando, partimos de um Aquino, o Ambíguo, e chegamos a um Aquino, o Absoluto. Quando atentamos para o trecho citado por De Roover, na Secunda Secundae da Suma Theologica, descobrimos que o artigo citado não tem nada a ver com o tópico do preço justo. Ele versa sobre a questão da “trapaça” e o artigo específico tem o título “Se o vendedor é obrigado a listar os defeitos da coisa vendida.” Santo Tomás afirma aqui que um vendedor age corretamente, sob o ponto de vista da justiça, se ele meramente aceita o valor oferecido pelo comprador, sem informá-lo de que uma grande quantidade de trigo está chegando. Em outras palavras, não é injusto “não prover informação disponível” sobre o valor de curto prazo de um produto. Santo Tomás termina dizendo, “Se, contudo, ele oferecer a informação, ou se ele abaixar o preço, será extraordinariamente virtuoso de sua parte: apesar de ele não estar obrigado a isso, em nome da justiça.”[11] Dessa estória, a respeito de uma questão moral muito específica que não tem nada a ver propriamente com sistemas econômicos ou com o tópico do preço justo, De Roover tira a prova de que “Aquino apoiava a valoração de mercado ao invés do custo”[12], iniciando então uma tradição pré-capitalista na teologia moral, que deu frutos da Escola de Salamanca da Renascença Tardia[13] e nos sermões econômicos de São Bernardino de Siena e Santo Antonino de Florença no século XV.

Antes de tratar da real atitude dos escolásticos tardios em Salamanca e dos sermões de São Bernardino de Siena e de Santo Antonino de Florença, vale a pena observar uma simples réplica a uma objeção, presente na questão 77, “Sobre a trapaça, que é cometida nos atos de vender e comprar.” No artigo 1, o mesmo artigo do qual De Roover tira sua conclusão sobre as inclinações tomistas ao “mercado livre”, lemos, na réplica à Objeção 2, uma linha de raciocínio que poria, certamente, Santo Tomás, fora das fronteiras de qualquer forma do capitalismo liberal. Aqui ele cita Santo Agostinho que diz,

“o bufão, olhando para si mesmo ou para a experiência dos outros, pensava que todos os homens são inclinados a comprar por uma ninharia e vender por um alto preço. Mas como, na realidade, isso é mau, está ao alcance do poder do homem agir com justiça e resistir e vencer essa inclinação.”

O exemplo, citado por Santo Tomás, que Santo Agostinho usa para ilustrar essa idéia, é aquele do homem que paga o preço justo por um livro a um vendedor que, por ignorância, estava pedindo um preço menor por ele. Aqui vemos o comprador virtuoso, que sabe o real valor do livro, ignorando o valor de mercado do livro (aquele que estava sendo pedido pelo vendedor para aqueles que, livremente, o queriam comprar), e, justamente compensando o vendedor por sua perda. Santo Tomás conclui desse exemplo que a inclinação “capitalista” de comprar tão barato quanto possível e vender tão caro quanto possível – característica de uma inclinação pela aquisição e de um esmagador auto-interesse – pode ser vencida da mesma forma que qualquer outro vício. Ele reconhece, contudo, que essa atitude de auto-interesse – que é, precisamente, a atitude assumida pelo capitalismo liberal – é “comum a muitos que caminham no largo caminho do pecado.”[14] Aqui, vemos claramente que a atitude econômica da cristandade contrastou com a atitude econômica do neo-liberalismo. Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino não são nada neo-liberais. Claramente, o “preço de mercado” não é necessariamente o “preço justo” . Para citar uma frase comumente usada por De Roover, “Este texto ... não se presta a uma diferente interpretação.”[15]

________________________________________________
[1] Acho que aqui o autor queria dizer Escolástica Tardia. (N. do T.)
[2] Ver, mais recentemente, Alejandro A. Chafuem, Faith and Liberty: the economic thought of Late Scholastics, Lexington Books, New York, 2003. (N. do T.)
[3] Raymond de Roover, “The Concept of Just Price: Theory and Economic Policy”, in Journal of Economic History 18 (Dez. 1958), p. 418.
[4] Para uma visão tradicional da história e da economia da Idade Média, rejeitada como um “conto de fadas” por Raymond de Roover, cf. William Ashley, An Introduction to English Economic History and Theory, 4th ed., 2 vols. (London: Longmans, Green, 1920), I, Part II, 391; John M. Clark, The Social Control of Business, 2nd ed. (New York: McGraw-Hill Book Co., 1939), pp.23-24; Shepard B. Clough and Charles W. Cole, Economic History of Europe, rev. ed. (Boston: D.C. Heath, 1946), pp.31, 68; George Clune, The Medieval Guild System (Dublin: Browne and Nolan, 1943), p.55; Alfred de Tarde, L'idee du justeprix (Paris: Felix Alcan, 1907), pp.42-43; Joseph Dorfman, The Economic Mind in American Civilization, 3 vols. (New York: Viking Press, 1946-1949), 1,5; N. S. B. Gras, Business and Capitalism (New York: Crofts, 1939), pp. 122-123; Herbert Heaton, Economic History of Europe, 1st ed. (New York: Harper, 1936), p.204; George O'Brien, An Essay on Medieval Economic Teaching (London: Longmans, Green, 1920), pp. 111-112; Leo S. Schumacher, The Philosophy of the Equitable Distribution of Wealth (Washington, D.C.: The Catholic University of America, 1949), p.47; James Westfall Thompson, An Economic and Social History of the Middle Ages, 300-1300 (New York: Century Co., 1928), p.697. Além desses, incluído também cmo um representante dessa visão errônea da Idade Média, Arthur J. Penty, A Guildman's Interpretation of History (New York: Sunrise Turn, n.d.), pp.38-46. De Roover conclui essas notas de rodapé, dizendo: “Essa lista não está, de forma alguma, completa” [minha ênfase].
[5] Ibid., p.419. Cf. Werner Sombart, Der moderne Kapitalismus (Munich: Duncker & Humblot, 1916), I, 292-293.
[6] De Roover, Just Price, p. 420.
[7] Como fonte desta citação, De Roover cita Heinrich von Langenstein, Tractatus bipartitus de contractibus emptionis et venditionis, Part I, cap. 12, publicado em Johannes Gerson, Opera omina, IV (Cologne, 1484), fol. 191. Segundo De Roover, “Nenhuma edição mais recente está disponível.”
[8] De Roover, Just Price, p. 419.
[9] Ibid., p.420.
[10] Ibid., p.42l.
[11] St. Thomas Aquinas, Summa Theologica, II-II, Q. 77, Art. 3, ad 4.
[12] De Roover, Just Price, p.423.
[13] De novo, acho que o autor queria dizer Escolástica Tardia. (N. do T.)
[14] ST, II-II, Q. 77, Art. I, ad 2.
[15] De Roover, Just Price, p.421.

24/07/2007

Tradição do latim volta à Igreja em Belo Horizonte

Um amigo anônimo deixou o texto que se segue na seção de cartas de meu blog. Deus o abençoe.
A Capela de que fala a reportagem abaixo tem missas tridentinas no 1o. domingo de cada mês, às 10h e aos terceiros sábados de cada mês, às 17h. O telefone é 34220187. Há ainda missas pós-conciliares diariamente.



Daniel de Cerqueira e Queila Ariadne,
Jornal O tempo

"In nominu Pátris, et Fílli et Spíritus Sancti. Amen".

O latim está prestes a voltar para as missas e, quando isso acontecer, o tradicional "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém" será assim. O papa Bento XVI publicou anteontem um decreto (Motu Próprio) para que a missa volte a ser rezada pelo antigo rito romano, com tradições mais conservadoras, entre elas, trechos em latim e cantos gregorianos.

Na capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no bairro Ipiranga, região Nordeste de Belo Horizonte, o latim já está presente há dois anos e meio. A cada 15 dias, padres de Ouro Preto e do município fluminense de Campos vão ao local especialmente para celebrar a chamada missa tridentina, cheia de rituais para intensificar a introspecção religiosa e a fé.

O documento assinado pelo papa não estipula que as missas sejam obrigatoriamente em latim, mas dá autorização para que o antigo rito romano seja retomado pelas igrejas que quiserem, conforme explicou o padre Ivoli Fernando Latrônico.

Em 1969, a Igreja Católica passou a adotar o novo rito, por determinação do papa João Paulo VI. O Motu Próprio não é a primeira manifestação da vontade de Bento XVI de retomar a missa em latim. No início deste ano, o Vaticano publicou a exortação apostólica Sacramentum Caritatis (Sacramento do Amor) declarando o desejo de que pelo menos as missas internacionais tenham trechos em latim.

Unidade

Embora a volta do latim possa ser considerada por alguns como um retrocesso, para os fiéis que freqüentam a missa tridentina na capital, o uso da língua é aprovado. "O latim representa a sacralidade da Igreja e torna a missa única. Seja rezada no Brasil ou no Japão, não haverá tradução. O significado nunca será deturpado", afirma o gerente de recursos humanos Frederico Saviotti Azevedo, que sai de Venda Nova para assistir a missa no Ipiranga.

"Fui coroinha em uma época em que as missas ainda eram rezadas em latim e tenho muita saudade, sou a favor de que esse ritual seja expandido. Assim manifestamos melhor a nossa fé", destaca o engenheiro eletricista José Artur Silva, morador do bairro Ouro Preto, na Pampulha. Segundo o padre Ivoli Fernando Latrônico, não existe comprometimento na compreensão. Ele explica que, além de a missa não ser inteiramente em latim, o missal - folheto distribuído para os fiéis - traz a tradução. A liturgia da palavra e o Evangelho são obrigatoriamente celebrados em português.

Conforme o padre, por mais difícil que a língua possa soar, o entendimento é facilitado no contexto. "Com o passar do tempo, os fiéis vão se acostumando e aprendem o significado das palavras em latim." As missas tridentinas dessa capela acontecem todos os primeiros domingos e terceiros sábados de cada mês. A capela fica na rua João de Matos, 214, esquina com a rua Jacuí.

---------------------------------------------------------------
DANIEL DE CERQUEIRA

Canto gregoriano é alternado com música religiosa nacional
Mulheres usam véus e não devem vestir calça

A capela é pequena e singela, mas tudo irradia muita fé. A começar pela história da fundadora, Izaltina Luíza de Lima, a dona Tina. Ela transformou a própria casa em uma igreja, com a ajuda da comunidade do bairro Ipiranga. Logo na entrada da capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida, as plantas inspiram sensação de renovação.

No teto, anjos cuidadosamente pintados dão um toque especial para o clima de contemplação. As mulheres sentam-se à esquerda e os homens à direita. A regra é apenas uma recomendação, mas é respeitada pelos fiéis. Outra particularidade é o uso de véus pelas mulheres, que se vestem, preferencialmente, de vestidos e saias. Pede-se que elas não usem calça comprida, mas também não é uma imposição.

Padre

A vestimenta do padre tem uma atenção especial. Antes de começar a rezar a missa, ele veste os paramentos cuidadosamente. “Tudo isso faz parte de uma corrente mais conservadora, é um sinal de respeito”, explica o padre Ivoli Fernando Latrônico. Pelo mesmo motivo, o sacerdote reza a maior parte da missa de frente para a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Não devemos falar que o padre está de costas para os fiéis, mas sim que, assim como todos os fiéis, está voltado para Deus”, destaca o padre.

Outro sinal de respeito é a forma da comunhão. Os fiéis recebem a hóstia diretamente na boca, ajoelhados. Trechos em latim são intercalados com celebrações em português, como é o caso do Evangelho. Os cantos gregorianos são alternados com os cantos religiosos nacionais. (QA)

--------------------------------------------------------------------------------
DANIEL DE CERQUEIRA

Assim como outras mulheres, Karla Zanon usa véu durante as missas em latim em igreja da capitalFamília vinda do Rio trouxe estilo para Minas

Os ritos da missa tridentina chegaram à capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida pelas mãos de uma família: os Borgati. Em 1982, o representante comercial José Ângelo Borgati veio de Bom Jesus do Itabapoana (Rio de Janeiro) para Belo Horizonte. Lá, ele cresceu freqüentando a missa tridentina, tradicional na região. “Eu e minha família, católicos praticantes, sentíamos muita falta desse estilo e, em 1994, começamos a promover missas tridentinas nas casas dos familiares, trazendo o padre da nossa cidade, na região de Campos”, conta Borgati.

Em 2004, Borgati ficou sabendo do trabalho de uma senhora, a dona Tina, para manter a celebração com ritos mais conservadores. De um casamento de valores, nasceu a missa tridentina na capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Para a sua realização, o arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor de Oliveira Azevedo, deu uma autorização por escrito, chamada de direito de uso de ordem. Desde então, todos os primeiros domingos e terceiros sábados de cada mês, o capelão padre da Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Waldemar Lopes de Almeida, cede a capela para a celebração.

Três padres de Campos se revezam. Na última missa, dia 1º de julho, foi a vez do padre Ivoli Fernando Latrônico. Ele chegou a Belo Horizonte às 9h30, celebrou a missa às 10h e, por volta das 12h, pegou a estrada de volta a Campos. Hoje, aos 81 anos, dona Tina continua à frente das missões sociais da capela, sempre ajudando o próximo. Na parede de uma das salas da capela, exibe com orgulho uma carta que recebeu do papa João Paulo VI, enviando bênçãos e reconhecimento. (QA)
(destaques nossos)

18/07/2007

Religião e Sexo

G. K. Chesterton


O homem honesto que diz que deseja que o cristianismo seja meramente prático e não teórico ou teológico, raramente consegue explicar o que ele exatamente quer dizer. Essa é a razão de haver tanta repetição simplesmente verbal no que ele diz. Geralmente, os pobres teóricos e teólogos têm de explicá-lo o que ele quer dizer. De qualquer forma, ele quer dizer algo mais ou menos assim. Um número muito grande de pessoas saudáveis e bondosas é, hoje, oportunista. Todos acreditamos que devemos cortar nosso casaco de acordo com o tecido que temos, no sentido de que ninguém pode fabricar um casaco sem tecido. Mas se o costureiro me diz que todo o tecido em estoque é amarelo-mustarda brilhante, decorado com caveiras escarlates, terei de adiar o quanto puder o uso desse tecido para meu novo casaco, podendo até constranger-me, e ao costureiro, sugerindo-lhe procurar outro tipo de tecido.

Contudo, há um tipo de homem que usará prontamente o casaco amarelo pela simples existência do casaco amarelo. Ele é um oportunista num sentido diferente do meu. Há uma diferença entre um cliente que consegue o que quer, tanto quanto lhe seja possível e aquele que consegue o que não quer porque isso lhe é possível.

Em outras palavras, há uma diferença entre conseguir o que se quer, sob certas condições e permitir que as condições lhe digam o que você pode conseguir, ou mesmo o que você quer. No entanto, é possível passar pela vida sendo controlado pelas circunstâncias dessa forma. Se minha quadra de tênis for inundada, posso, claro, transformá-la num lago ornamental. Ou posso me dar o trabalho de drenar o campo e protegê-lo contra inundações, permanecendo fiel ao ideal abstrato e dogmático de uma quadra de grama. Se uma árvore cai sobre minha casa e faz um buraco no teto, posso transformar o buraco numa clarabóia e a árvore numa saída de emergência. Mas se eu não quiser uma clarabóia e uma saída de emergência, estou sendo manipulado pela árvore. E isso é uma posição indigna para um homem.

É a posição indigna da maioria dos homens modernos. Eles são oportunistas, não só no sentido de conseguirem o que querem da forma mais prática, mas de tentarem querer a coisa mais prática; isto é, meramente a coisa mais fácil. Essa é a razão de eles não entenderem a base do idealismo cristão em muitas questões e especialmente na questão do sexo. Eles estão sempre sendo desviados pelas inundações e árvores caídas, especialmente aquela árvore do conhecimento que é o símbolo da queda e que certamente fez um buraco na casa, no sentido do lar. Mas a questão aqui é que essas pessoas constroem um novo plano ou propósito sexual depois de cada eventual novo acontecimento. Quando há mais mulheres do que homens, eles começam a falar sobre poligamia. Quando há mais crianças do que é conveniente para os indivíduos criarem com um salário decente, eles começam a falar de alguns truques que são um tipo de substituto para o infanticídio.

Ninguém pode entender a teoria do sexo cristã sem entender a idéia do homem ter um plano que ele deseja impor sobre as circunstâncias, ao invés de esperar pelas circunstâncias para então ver que plano ele vai ter. O cristão deseja criar as condições para que o casamento cristão seja possível e digno em si; não aceitar qualquer coisa possível nas mais indignas condições. Porque ele o quer e o que ele realmente é, consideraremos num momento; mas é necessário tornar claro de início que o casamento cristão não é algo que nos é sugerido pelas condições sociais do nosso entorno; é algo que nos é sugerido por Deus, pela nossa consciência comum e pelo sentido de honra da humanidade em geral. E isso é o que nosso pobre amigo quer dizer quando diz que nós não somos práticos; ele quer dizer que nós não estamos sempre consertando nossa casa e alterando nosso jardim para acolher em seu interior uma árvore caída ou uma tromba d’água.

Ele quer dizer que temos um plano para nossa casa e jardim e que estamos sempre tentando restaurá-los e reconstruí-los de acordo com o plano. Não propomos rasgar o plano original e seguir uma seqüência de acidentes; até que a casa seja enterrada sob árvores caídas e os campos sejam inundados e todo o trabalho do homem seja levado pela enxurrada. Isso é o que ele entende por nossa impraticabilidade, e ele está certo.

Descrito em termos humanos, o plano é substancialmente este. Que o amor que faz a juventude bela, e é a fonte natural de tanta canção e romance, tem por objetivo final um ato de criação, a fundação da família. Ao mesmo tempo em que é um ato criativo, como o de um artista, é também um ato coletivo, como o de uma pequena comunidade. É, talvez, o único trabalho artístico em que a colaboração é um sucesso e mesmo uma necessidade. É preciso de dois para começar uma briga, especialmente uma briga de amantes. Precisa-se também de dois para estabelecer um acordo de amantes segundo o qual seu amor deve ser colocado acima da briga. Mas, por definição, o acordo dos dois não é simplesmente concernente aos dois; mas, num sentido terrível, a outros. A fundação de uma família, como todo ato criativo, é uma responsabilidade tremenda. Em outras palavras, a fundação de uma família significa a alimentação de uma família, o treinamento, o ensinamento e a proteção de uma família. É o trabalho de uma vida inteira, e muitos casamentos têm uma vida muito curta. Sua continuidade é garantida, não por “leis matrimoniais” que nossas modernas plutocracias podem criar ao seu bel-prazer, mas por um voto voluntário ou invocação a Deus feita pelas duas partes, que eles vão se ajudar nesse trabalho até a morte. Para aqueles que acreditam em Deus e também acreditam no significado das palavras, isso é final e irrevogável.

Esse ato criativo é em si um ato livre. Esse ato criativo, como todos os atos criativos, não envolve uma perda de liberdade. O homem que constrói uma casa não recupera aquele castelo que ele construiu e reconstruiu no ar quando ele estava planejando a casa. Nesse sentido, podemos dizer, se quisermos, que o homem que constrói uma casa, constrói uma prisão. Há algo de final em todo grande trabalho, mas é possível sentir nesse trabalho um tipo peculiar de finalidade. A paixão de um homem em sua juventude encontrou seu caminho verdadeiro e alcançou seu objetivo e, apesar do amor não precisar acabar, a busca por ele terminou.

Pelo teste desse objetivo e consecução, todas as coisas condenadas pela ética cristã se encaixa em seus vários níveis de erro. Prolongar a busca de uma forma sentimental, muito depois de ela ter qualquer relação com o trabalho real do homem é um erro em vários níveis; quase sempre isso não é mais que ridículo e indigno; turpe senilis amor. Permitir que a busca perambule de forma a destruir outros lares saudavelmente estabelecidos é, por essa definição, obviamente errado. Cultivar uma perversão mental que realmente remova o desejo por um ato frutífero é horrivelmente errado. Comprar um prazer estéril de uma classe estéril é errado. Manobrar cientificamente de forma a furtar o prazer sem assumir a responsabilidade pelo ato, é lógica e inerentemente errado. É como andar por aí com uma medalha sem ter ido à guerra.

Nós acreditamos, sem uma sombra de dúvida e hesitação, que onde as condições se aproximam desse ideal, a humanidade é mais feliz. Assim, o nascimento da paixão é usado com um menor grau de destruição. Assim, a morte da Paixão é aceita com um menor grau de desilusão. Um trabalho construtivo da idade adulta segue naturalmente o trabalho criativo da juventude; à paixão é dada uma extraordinária oportunidade de se perpetuar como afeição, e a vida do homem é tornada plena. Há nela tragédias, como há igualmente tragédias fora dela. Não podemos livrar a vida de tragédias sem livrá-la da liberdade. Não podemos controlar a atitude emocional dos outros nem numa condição de anarquia sexual, nem nas condições de lealdade doméstica. O amor é realmente excessivamente livre para os propósitos dos amantes livres. Mas onde os homens são treinados pela tradição a considerar esse processo normal, e a não esperar por nada diferente, há muito menos probabilidade de trágicos relacionamentos do que no amor chamado livre. Se observamos a literatura real do amor irresponsável, encontraremos um contínuo e dolorido lamento sobre falsas amantes e torturantes casos amorosos.

Em resumo, nós não acreditamos, de forma alguma, na grande felicidade prometida à humanidade pela dissolução de lealdades de uma vida toda; não sentimos o menor respeito pela retórica sentimental e grosseira com que isso nos é recomendado. Mas o resultado prático de nossa convicção e de nossa confiança é este: que quando as pessoas nos dizem – “Seu sistema não é muito inadequado para o mundo moderno,” respondemos – “Se isso é verdade, as coisas parecem bem podres no pobre e antigo mundo moderno.” Quando eles dizem – “Seu ideal de casamento pode ser um ideal, mas não pode ser uma realidade, ” dizemos – “é um ideal numa sociedade doente, é uma realidade numa sociedade saudável. Pois, onde ele é real, ele faz a sociedade saudável.” Não dizemos perfeitamente saudável, pois acreditamos em outras coisas além do casamento; como, por exemplo, na Queda do Homem. Mas a questão é que queremos o que é prático, no sentido de que queremos fazer algo, criar famílias cristãs. Mas eles só querem o que é prático, no sentido do que é mais fácil no momento.

Assim, de acordo com a teoria geral do casamento, a paixão é purificada por sua própria frutificação, quando esta frutificação é o seu dignificante e decente objetivo final. Em poucas palavras, podemos dizer que substituiríamos a meia-verdade do “amor pelo amor”, por uma verdade superior do “amor pela vida”. O amor é sujeito à leis porque é sujeito à vida. É verdade, não só metafisicamente, nem mesmo simplesmente num sentido místico, mas num sentido material, que podemos ter vida e que a podemos ter mais abundantemente. Isso não quer dizer, claro, que o amor não tenha seu próprio valor espiritual, quando honoráveis acidentes o impedem de ser frutífero. Mas isso não significa que, em geral, possamos julgar os amores dos homens por outra metáfora mística que é também um fato material e por seus frutos os conheceremos.

Tal princípio é, ou era até recentemente, compartilhado por todos os que se dizem cristãos. Há um apêndice a este princípio que é professado por todos os que se dizem católicos. É uma idéia mais mística; e talvez somente os católicos se esforçaram em defini-lo racional e filosoficamente. Não é verdade, contudo, que somente católicos já o sentiram. Os antigos pagãos já o sentiram sutilmente em suas visões de Atenas, Ártemis e das Virgens Vestais. Os agnósticos modernos o sentem debilmente em sua adoração pela inocência infantil – em Peter Pan ou no Child’s Garden of Verses. Essa idéia é a de que há, para alguns, uma felicidade ainda mais divina que a do divino sacramento do matrimônio. Este é um assunto muito especial e muito grande para ser tratado aqui; mas dois fatos deveras singulares devem, sobre ele, ser notados. Primeiramente, que os estados industriais modernos estão invocando o pesadelo da super-população, depois de terem, eles próprios destruído as irmandades monásticas que foram uma limitação voluntária e viril a esse pesadelo. Em outras palavras, eles estão, muito relutantemente, recorrendo ao controle de natalidade, depois de realmente suprimirem a prova de que os homens são capazes de auto-controle. Em segundo lugar, se tal abstenção fosse realmente exigida, essa tradição religiosa poderia dar a ela um entusiasmo positivo e poético, onde todas as outras fariam dela apenas uma mutilação negativa. Os católicos acreditam na razão e gostam de ver as coisas práticas provadas; e, atualmente, a necessidade não está provada; somente mencionada como se tivesse, como se comentassem a respeito de Darwin e Einstein. Mas, mesmo se ela estivesse provada, os católicos teriam uma resposta muito melhor do que a dos outros: as trombetas de São Francisco e São Domingos. E os bons protestantes irão finalmente concordar que a resposta é melhor do que a alternativa de um tipo de anarquia secreta e silenciosa, na qual os motivos são estreitos e os resultados nulos. E por este caminho, voltamos ao tema original do casamento ideal; e à verdade principal sobre ele. Uma coisa tão humana não irá, finalmente, desaparecer por entre acidentes de uma sociedade anormal. Essa sociedade nunca será capaz de julgar o casamento. O casamento julgará essa sociedade; e pode possivelmente condená-la.






Publicado em The Chesterton Review

15/07/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I

__________________
Nota do tradutor -- O texto deste artigo é longo. Eu o publicarei em oito partes, além desta introdução, seguindo a segmentação do autor. As partes são: O sonho libertário de De Roover; Os freis espanhóis e o sistema bancário renascentista; A função do dinheiro e a questão da conversão de moedas; A Escola de Salamanca e o preço justo; A complexidade do preço justo reafirmada; Bernardino de Sena e Antonino de Florença: santos mal interpretados; Santo Antonino, o preço justo e o salário justo; Restauração econômica.

Depois de todo o texto traduzido, eu o republicarei na íntegra.
______________


Dr. Peter Chojnowski [1]


Na economia de mercado, o indivíduo é livre para agir no âmbito da propriedade privada e do mercado. Suas escolhas são absolutas” Ludwig von Mises, Ação Humana.


Quando lemos este texto do avô do moderno Neo-Liberalismo[2] (que se manifesta, nos EUA, nos movimentos do Libertarianismo e no Neo-Conservadorismo), não nos surpreendemos. Von Mises – nominalmente um católico, mas verdadeiramente um ateu em sua filosofia política – tenta tornar absoluta a única coisa (além das “forças do mercado”) que ele parece considerar relevante para os acontecimentos humanos, a determinação volitiva dos indivíduos. Tampouco ficamos surpresos quando ele revela sua concepção básica da realidade e a aplica às ações públicas dos indivíduos. Referindo-se a todo o edifício doutrinal e moral da civilização cristã, no que toca à ação humana, e comparando-o à sua idéia do indivíduo autônomo com intenções e interesses próprios, von Mises afirma:

“instar as pessoas a ouvir a voz da própria consciência e a substituir as considerações do lucro pessoal por aquelas do bem comum, não cria uma ordem social funcional e satisfatória” [minha ênfase].[3]

Numa radical declaração, von Mises nega o Cristianismo e todo o ensinamento moral, social e econômico da Igreja Católica; esta declaração também torna “inoperante” toda a tradição moral e filosófica clássica.

Tais afirmações do herói do libertarianismo e do neo-conservadorismo contemporâneo (leia-se, neo-jacobinismo), não nos devem inquietar se as compreendemos em seu verdadeiro significado: afirmações de quem professou a moderna visão liberal e anti-cristã e denegriu a civilização, no todo e em suas partes, construída pela Igreja Católica; essa civilização, é claro, foi construída de um certo modo, na tentativa da Igreja de conformar as circunstâncias e os meios de vida do homem à Lei Eterna, que inclui o Plano Providencial, pelo qual cada criatura é levada ao estado de perfeita realização e satisfação. A cristandade, diferentemente das “forças de mercado”, pressupõe liberdade real; se o homem não fosse livre e criado para se realizar em sua liberdade, o cristianismo não seria necessário. “Liberdade” não tem sentido, e logo se torna bizarra (como em nossa própria cultura de consumo), se não está direcionada ao verdadeiro “bem” que satisfaz à natureza humana. Se a liberdade não almejar a verdadeira satisfação da natureza humana, por que ela é um “bem”? Se, contudo, a liberdade é um “bem” porque satisfaz a natureza humana, a “liberdade” econômica ou a habilidade de vender e comprar bens, deve estar subordinada às considerações gerais sobre o “bem”. Como estamos falando do “bem” público, devemos falar do “bem comum”, no qual o bem privado esta incluído. O bem comum tem como conseqüência a realização da natureza humana em geral. Se todo esse raciocínio é válido, a liberdade econômica de vender e comprar deve estar ordenada no sentido de se alcançar a verdadeira realização da natureza humana, tanto individual quanto publicamente.

Somente aqueles com as mais animalescas concepções do homem poderiam pensar que a habilidade de comprar e vender coisas é um ponto em torno do qual deve girar a vida individual, uma ideologia política ou os esforços do Estado. Que “o homem não vive só de pão” não é somente uma verdade religiosa, mas é, também, uma parte da sabedoria que é verificada pela experiência humana universal. A devoção religiosa do homem, suas ações morais virtuosas e sua expressão e apreciação estética e emocional é que são os aspectos superiores do ser humano que o comércio deve sustentar e facilitar. À luz disso, é perfeitamente racional que as sociedades e governos normais e tradicionais (i.e., não-liberais) do passado tentaram assegurar que as compras e vendas que se davam entre os homens, verdadeiramente, facilitassem o fim genuíno de todo o relacionamento econômico: o completo e total bem do homem, tanto como indivíduo quanto como um componente do corpo cívico em geral. Foi por essa razão que noções tais como “salário justo” e “preço justo” eram normativos, e as limitações a respeito do uso e aquisição de propriedade privada foram instituídas.

No entanto, há um ponto a favor de Ludwig von Mises – não compartilhado por muitos de seus discípulos. É que ele reconhecia que todo o cristianismo histórico, na teoria e na prática, era contra sua concepção da ordem apropriada das coisas. Ele, pelo menos, reconhecia que havia um conceito muito definido de “justiça” no cristianismo medieval. Ele simplesmente o considerava relativo. De uma forma puramente nietzscheana, ele insistia que as alegações sobre a “justiça” deste ou daquele arranjo social ou condição econômica, são meramente uma tentativa, de alguns, de preservar uma “utopia” arbitrariamente adotada.

“Eles chamam ‘justo’ aquele modo de conduta que é compatível com a preservação de sua utopia e tudo o mais, injusto.” [4]

Von Mises, também, não alegava que Santo Tomás de Aquino era um apoiador avant la lettre do capitalismo liberal ou da “economia de mercado”. Ele compreendia que Santo Tomás, como um filósofo e teólogo católico, tinha visões profundamente diferentes das suas, inclusive em matéria de economia. No que diz respeito à questão do “preço justo”, von Mises escreve:

“Se a doutrina de Tomás de Aquino sobre o preço justo tivesse sido posta em prática, a situação econômica do século XIII ainda prevaleceria entre nós. A população seria muito menor e o padrão de vida, muito mais baixo.” [5]

A sentença seguinte deve também interessar a quem deseja perceber a distinção aguda entre o liberalismo de von Mises e a grande tradição do mundo cristão:

“Ambas as doutrinas do preço justo, a filosófica e a popular, concordam em sua condenação dos valores de preços e salários determinados por mercados livres.” [6]

Se Aquino era um capitalista pré-liberal, von Mises certamente não percebeu; de fato, ele usou os ensinamentos de Santo Tomás como modelo da própria mentalidade e perspectiva que ele estava rejeitando.
[1] Este artigo foi publicado na revista The Angelus Magazine, em 2005, sob o título Corporation Christendom: The True School of Salamanca. Esta tradução foi feita com a autorização da revista.
[2] Sobre a dívida do Neo-liberalismo para com Ludwig von Mises no período pós-guerra, ver Erik von Kuehnelt-Leddihn, Leftism Revisited: From De Sade and Marx to Hitler and Pol Pot, no capítulo intitulado “Real Liberalism” (Washington, D.C.: Regnery Gateway, 1990), p. 180.
[3] Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics (New Haven, CT: Yale University Press, 1949), p. 276.
[4] Ibid., p. 728
[5] Ibid.
[6] Ibid., pp. 728-729

07/07/2007

Motu Proprio - Missa de São Pio V

Saiu, hoje (07/07/07), o Motu Próprio SUMMORUM PONTIFICUM (clique aqui para a versão em latim) que reinstitui a Missa de São Pio V. Que Deus abençoe Bento XVI!

In Corde Jesu, semper.