31/03/2007

Ateus solitários da Aldeia Global – Parte IV

Michael Novak


O CRISTIANISMO REAL

Numa estalagem, na pequena vila de Bressanone (Brixten) no norte da Itália, há um afresco pintado muitos séculos atrás, cujo principal sujeito é um elefante, por um pintor que, obviamente, nunca tinha visto um elefante. Ele, claramente, estava tentando representar na parede o que alguém tinha tentado lhe contar sobre elefantes. Ele pintou um cavalo grande e pesado, com umas orelhas incomumente desajeitadas, e um nariz consideravelmente maior do que o de um cavalo comum – mas ainda assim um cavalo com um nariz grande.

É usual rirmos do afresco e, similarmente, o leitor cristão rirá do afresco primitivo do cristianismo pintado por Dawkins, Dennett e Harris. Eles se enganam redondamente sobre a coisa real.

Não se experimenta, tampouco, a coisa real apenas pelo nascimento numa família cristã. Não é nem de longe suficiente tomar parte em rituais maçantes e freqüentar a “Escola Dominical” com uma mente desatenta ou não-questionadora. Como descreve o Cardeal Newman, com algum detalhe, em seu Grammar of Assent (Gramática do Assentimento), um largo e obscuro abismo separa o assentimento “nocional” do “real”. Para este, é necessário pensar sobre a própria fé, questioná-la de todos os ângulos, estudar suas dimensões, implicações e relações com outros modos de conhecer. É necessário “tomar posse da fé”. Não se pode simplesmente ser “jogado” nela por nascimento ou instrução prévia. Fé que não é nutrida de questionamentos e desafios é um pouco como grama em solo raso, que é verde pela manhã, murcha à tarde e morre ao anoitecer. Nossos autores, ao que parece, querem arrancar com o ancinho a grama de raiz curta.

Assim, parece útil – e necessário – esboçar algumas das facetas da fé cristã a que nossos três autores parecem desatentos. Todo cristão (e todo católico) tem, claro, opinião diferente sobre isso, mas de cara eu percebo quatro questões para as quais a fé cristã oferece reflexões interessantes.

Primeira: Uma Teologia do Absurdo. Comece com a cruz ensangüentada do Calvário. Nela morreu o Filho de Deus? A cruz, o próprio símbolo da contradição e do absurdo. Quando os cristãos falam do ato da Criação, não pensamos num artífice perfeccionista fazendo bonecas Lhadró, mas em Deus criando carne e sangue em todas as suas angularidades, deformações, imperfeições e limitações concretas. O mundo de Sua criação é cortado de absurdidades e contradições, espécies que desaparecem, e da fervilhante, exuberante e barulhenta confusão de contingências e acasos. Quando Ele singulariza um povo escolhido, Ele elege uma tribo de uma parte pobre, atrasada e primitiva do mundo (imensamente talentosa, para ser justo, mas sem prestígio, fama, poder ou influência na superfície das coisas). Seus escolhidos são recorrentemente subjugados por inimigos, escravizados e exilados por longos, longos anos. Então, quando o Criador envia Seu Filho para se tornar carne, o Filho também funda Sua nova comunidade entre, principalmente, os pobres, os não instruídos, os humildes, os esquecidos.

Mas então, depois de blasfêmia e mais blasfêmia, esse Filho de Deus é condenado à morte como um criminoso comum, e submetido a mais desgraçada forma de morte conhecida do homem daquele tempo: escárnio público, açoitamento até quase à morte e, então, crucificação num lugar onde o povo podia gritar insultos e até os abutres podiam vir bicar seus olhos.

Este Criador não é nenhuma Pollyanna. O que Ele faz é assegurar àqueles que sofrem e que se vergam sob o peso do Absurdo que, apesar de às vezes eles sentirem um medo congelante, eles não precisam, afinal, temer. Deus é um bom Deus, e tem Seus próprios propósitos e não se engana quem sempre acredita em Sua bondade. O Criador não nos criou para vivermos num mundo razoável de forma racional, calma e desapaixonada – como um banqueiro novaiorquino, depois de um esplêndido almoço em seu Club, se afunda em sua poltrona favorita na Biblioteca, onde um charuto perfumado ainda é permitido, e lê confortavelmente os jornais do dia. Ao contrário, há guerra, exílio, tortura, injustiça. A vida é para ser compreendida como um julgamento e um tempo de sofrimento. Um vale de lágrimas. Um vale de morte. Mesmo na riqueza, no luxo e na fartura, o câncer, o fracasso e a solidão radical atacam; e mesmo, ainda mais freqüentemente, o simples tédio nos espreita.

Nem de longe uma terra de alegria, nem de longe o mundo perfeito de Cândido. O ateísmo é, principalmente, para o homem confortável, que vive num mundo razoável. Para aqueles em agonia e desespero, o cristianismo parece servir muito melhor e a longo prazo, não porque ele ofereça “consolação”, mas precisamente porque ele não faz isso. Para os cristãos, a cruz é inescapável e devemos sempre estar preparados para carregá-la. Eu próprio presenciei três pessoas profundamente religiosas morrerem desconsoladas, desoladas, vazias de sentimento por Deus. Estar vazio de consolação não é, no entanto, estar vazio de fé. Fé é essencialmente um sereno ato de amor, mesmo na miséria: “Não seja, porém, a minha vontade a fazer-se, mas a tua.”

Como Stephen Jay Gould, nossos três autores pensam que estão destruindo o argumento do design inteligente, mostrando como são pobremente projetadas muitas partes da anatomia humana, quantas espécies pereceram desde o começo dos tempos (algo em torno de 99%), o quanto a casualidade e a falta de razão parecem imperar em muitos passos da seleção natural. Eles desejam mostrar que se há um Criador, ele é incompetente; ou, mais exatamente, que há excessivas evidências para a falta de design inteligente. Que tipo de artífice bêbado eles pensam ser Deus? Nosso Deus é o Deus do Absurdo, da noite, do sofrimento e da paz silenciosa.


Ver também "Ateus solitários da Aldeia Global" - Parte I, Parte II e Parte III

10 comentários:

Anônimo disse...

Sermão de Santo Agostinho, traduzido por Jean Lauand, professor da USP:

III

"No entanto, meus irmãos (que vossa caridade preste especial atenção às minhas palavras), ouvimos a leitura do santo Jó, queperdeu tudo: os bens e os filhos. E até a própria carne - a única coisa que lhe restava - não lhe ficou sã, mas coberta por uma chaga da cabeça aos pés. Ele sentava-se no esterco, com as feridas podres, sofrendo a corrupção do corpo, cheio de vermes, torturado por tormentos insuportáveis (Jó 2, 7). Se nos tivesse sido anunciado que toda a cidade de Roma, vejam bem: a cidade toda, esteve sentada como Jó, sem nada são, com uma chaga terrível, comida pelos vermes, podre como os mortos, não seria isto mais grave do que aquela guerra?

"Penso que é mais tolerável sofrer a espada do que os vermes; jorrar o sangue do que destilar a podridão. Quando vemos um cadáver corrompendo-se, horrorizamo-nos; mas isso é atenuado pelo fato de estar ausente a alma. Jó, porém, a corrupção em vida, com a alma presente à dor, a alma atada ao sofrimento, inclinada a blasfemar. E Jó suportou a tribulação e, por isso, elevou-se a uma santidade grande. Não importa o que um homem sofra, mas como ele se comporta no sofrimento. Ó homem, não está em tua mão sofrer ou não sofrer, mas sim se no sofrimento tua vontade se degrada ou se dignifica.

"Jó sofreu. Sua mulher lhe foi deixada, e isso não para consolação, mas para tentação; não para lhe suavizar os males, mas para aonselhá-lo a blasfemar: 'Amaldiçoa a Deus, diz-lhe, e morre!' Vejam como, para ele, morrer seria um benefício, mas esse benefício ninguém lho dava.

"Todas as aflições que esse santo sofreu exercitaram-lhe a paciência, provaram-lhe a fé para refutar a mulher e vencer o diabo. Que grande espetáculo! Em meio da infecta podridão, brilha a beleza da virtude. Um inimigo oculto, que corrói seu corpo, e uma inimiga manifesta, que o quer induzir ao mal, mais companheira do diabo do que de seu marido; ela, uma nova Eva, mas ele, não já um velho Adão. 'Amaldiçoa a Deus e morre!' Arranca com a blasfêmia o que não podes obter com tuas preces. 'Falaste, responde-lhe Jó, como uma mulher insensata' (Jó 2, 10). Reparai bem nas palavras desse forte na fé; disse que está podre por fora, mas íntegro por dentro.

" 'Falaste como uma mulher insensata. Se recebemos os bens das mãos de Deus, por que não receber os males?' Deus é pai, e acaso havemos de amá-lo só quando nos agrada e rejeitá-lo quando nos corrige? Acaso não é Pai tanto quando nos promete a vida quanto quando disciplina? Esquecemos do Eclesiástico (2, 1, 4 e 5)?: 'Filho, quando te aproximas do serviço de Deus, permanece na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação. Aceita o que vier e suporta a dor, e na tua humilhação guarda a paciência. Porque o ouro e a prata se provam pelo fogo, mas os homens se tornam gratos a Deus pelo cadinho da humilhação.' Esquecemo-nos da Escritura (Pr 3,12; Heb 12,6)? 'Deus repreende aquele a quem ama; e castiga a quem reconhece como filho.' "

Santo Agostinho encerra o sermão reiterando a Sabedoria dos desígnios divinos, e nosso dever de aceitá-los:

"VIII

"Oxalá tivéssemos um saudável temor e refreássemos a má concupiscência sequiosa do mundo, que apetece o gozo volúvel do que é pernicioso, perante os sinais com que Deus nos mostra a instabilidade e a caducidade de todas as vaidades do mundo e da mentira de suas loucuras. Aproveitemos esses sinais, em vez de ficar murmurando contra o Senhor.

(...)

"Não nos escandalizemos ao ver o justo neta terra sofrer agravos e ultrajes: acaso esquecemos o que passou com o justo dos justos, o santo dos santos? O que sofreu toda a cidade de Roma, sofreu Ele sozinho. E vede quem Ele é: 'O rei dos reis, o senhor dos senhors' (Ap 19, 16), preso, amarrado, flagelado, objeto de todas as ofensas, suspenso num madeiro e pregado, morto. Comparemos Roma com Cristo; a terra inteira com Cristo; o céu e a terra com Cristo - nenhuma criatura pode ser comparada ao Criador, nenhuma obra ao artífice: 'Todas as coisas foram por Ele feitas, e sem Ele nada foi feito' (Jo 1, 3). E, no entanto, foi desprezado pelos verdugos.

"Suportemos o que Deus quer que suportemos. Ele, que é o médico que nos cura e salva, sabe o que é útil para nós, mesmo que seja a dor. Como bem sabeis, está escrito 'A paciência produz uma obra perfeita' (Tg, 1, 4). Ora, qual será a obra de nossa paciência se não sofrermos nenhuma adversidade? Por que recusamos sofrer os males temporais? Temos medo de nos aperfeiçoar? Não hesitemos em orar e implorar, gemendo e chorando diante do Senhor, para que, também em relação a nós, se cumpra o que diz o Apóstolo: 'Fiel é Deus e não permitirá que sejais provados acima de vossas forças, mas com a tentação ele vos dará os meios de suportá-la e sairdes dela' (I, Cor, 10, 13)."

Anônimo disse...

Pedro,


Lauand não é aquele egresso da Opus Dei ?

Alexandre

Anônimo disse...

Rapaz, eu tenho uma raiva desse cara...
Sim, é ele mesmo. Até deu uma entrevista para aquela revista tão equilibrada ao falar de Catolicismo que é a Época. As perguntas eram sempre em tom tranquilo: "Você acha que a Opus Dei lava o cérebro de adolescentes?" "Você está sendo perseguido até hoje?" e outras pérolas do joranalismo isento. Lauand desvinculou-se da Opus Dei, essa temível e poderosíssima organização conspiratória , e começou a falar mal dela por todos os veículos que achou. O gosto por escândalos da mídia brasileira se externou em toda a sua estupidez maligna. Mas, francamente, sua tradução das obras de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e os Doutores é, para um professor uspiano, muito boa. E ele é católico, e sempre me pareceu honesto. Afinal de contas, eu também (mesmo considerando horrível o show de Jean) também tenho dúvidas sobre a Opus Dei;

Anônimo disse...

Acrescento: não que eu ache que São Josemaría não seja santo, e que sua canonização seja uma espécie de santificação do modernismo. Ignoro muito sobre a prelazia que ele fundou, e minhas dúvidas não são aquelas de 'sugerir intenções ocultas'. Apenas não faço idéia do alcance da Opus Dei no Vaticano.

Anônimo disse...

Pedro,

Vc sabe se o Lauand continuou catolico depois que saiu da Opus , pois o que li dele (em epoca , no site que criou e etc...) sao coisas bem amargas


alexandre

Anônimo disse...

Não sei. Mas deve ter se filiado à Pastoral dos Pobres ou coisa parecida. Eu não vi tudo o que ele disse. Por acaso atacou o 'conservadorismo' da Igreja? Porque já vi gente que começava dizendo "Sou Católico" e logo depois chamava a Igreja de retrógrada...
Não tenho tanta raiva de Lauand, porém. Numa entrevista, ele, num tom de humor, disse que as Universidades brasileiras estavam sendo ivadidas por ostrogodos (tribo bárbara que atacou o Império Romano). Tenho de concordar, especialmente sabendo que ele leciona na Universidade de São Paulo. Acho que isso contribui para sua amargura: um cérebro humano dificilmente sobrevive a algo tão horroroso. Imagina tomar café com a Marilena Chauí, ser chamado de reacionário por uma velha num caminhão, ouvir gente falando que Israel quer bombardear o Brasil, ver comemorações dos cinquenta anos da Revolução Cubana...

Anônimo disse...

Pedro,

vc participa de algum movimento da Igreja ?

Anônimo disse...

Professor,

O Olavo de Carvalho recomendou este texto no blogtalk de ontem.

Por que o senhor não manda a tradução para ele a fim de que tenha maior divulgação ?

Abraços, Alexandre

Anônimo disse...

Tira-Teimas

Movimentos da Igreja

Não, não pertenço a movimentos da Igreja, mas a alguns admiro muito. Principalmente porque a debandada de de católicos após o Vaticano II foi assustadora, e esses movimentos, imagino, são a esperança de uma devoção católica efetiva.

Vaticano II

Paulo VI disse: "A ONU é a última esperança de paz". Eu não concordo. Paulo VI disse : "A religião do Deus que se fez homem se une à do homem que se faz Deus".Não concordo. Não concordo. Missa em vernáculo? Mesas eucarísticas? Padres versus populum? Simplificação? A Eucaristia transformada em 'celebração'? Não concordo. Enfim, não concordo com basicamente nada das 'reformas' do Vaticano II.

São Josemaría Escrivá

Realmente,como disse o professor Antonio Emílio, ele defendeu o Vaticano II.
Bom, isso para mim foi uma tremenda pisada no tomate, francamente. Mas tenho de admitir que a Opus pode, e pode mesmo, trazer consigo uma verdadeira intelectualidade católica.

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Alexandre,

Obrigado pela dica a respeito do prof. Olavo. Eu vou enviar o texto a ele e o link do blog.

Um abraço. Antonio Emilio.