01/06/2012

50 anos de Vaticano II: Pe. Dominique Bourmaud nos ajuda a entender a confusão.


Nota do blog:  Não conheço texto curto tão claro quanto o que vai abaixo. Se há poucas pessoas a quem devemos responsabilizar pela monstruosa crise da Igreja, estas são exatamente os três mosqueteiros modernistas. Em séculos anteriores, estes senhores seriam calados pela Igreja, excomungados ou até condenados com a pena de morte. Na Igreja conciliar eles foram homenageados, paparicados, elogiados, incensados, purpurados, etc. Leiam e entendam um pouco mais a confusão atual.


Os Três Mosqueteiros Modernistas


Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX
Angelus Magazine, Jan/Fev 2012
Tradução autorizada


É impossível falar sobre a gênese do Concílio Vaticano II sem mencionar as figuras principais de todo o movimento. Mencionemos três nomes, que evidenciam claramente como pessoas de tão diferentes culturas e formações chegaram a conclusões similares: Henri de Lubac, Yves Congar e Karl Rahner.

Muitas coisas unem estes três homens. Todos eles tiveram uma longa história como professores universitários; todos estiverem sob escrutínio teológico por suas ideias modernistas, no pontificado de Pio XII; todos foram de algum modo disciplinados ou retirados de seus cargos. Todos foram, então, miraculosamente reintegrados como periti conciliares às vésperas do Concílio. Suas ideias e ensinamentos passaram a ser conhecidos com o nome genérico de “a nova teologia” e influenciaram os princípios do magistério conciliar. Todos eles se tornaram expertos dos papas subsequentes e muitas honras e louvores lhes foi tributados pela Igreja pós-conciliar.

Pio XII dedicou pouco tempo à nova teologia e seus avançados professores. Eles representavam para ele a cauda atrasada da antiga onda modernista, tão vigorosamente condenada por São Pio X em sua Pascendi de 1907. O papa reiterou a condenação da nova – antiga – tendência na encíclica Humani Generis: “Outros [de Lubac] destroem a gratuidade da ordem sobrenatural, pois Deus, eles dizem, não pode criar seres intelectuais sem ordená-los e orientá-los à visão beatífica...[1] Alguns [de Lubac, Congar] reduzem a uma fórmula sem sentido a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja a fim de obter a salvação eterna. Outros finalmente depreciam o caráter razoável de credibilidade da fé cristã.”

Os Herdeiros dos Modernistas

De Lubac, em suas Mémoires,[2] explica que ele devorou apaixonadamente a estranha filosofia do filomodernista Blodel, mas também a do mais abertamente modernista Lachelier. “Naquele tempo, tais leituras constituíam, em geral, um fruto proibido. Mas graças a professores indulgentes, estas não eram nunca consideradas atividades clandestinas.”[3] Como professor, de Lubac devotava maior parte do seu tempo ensinando e escrevendo a uma distância segura de polêmicas, evitando habilmente qualquer censura.

Congar não teve a mesma sorte. Menos contido, ele era repetidamente exilado em Jerusalém, então chamado a Roma e Cambridge novamente, terminando o período pré-conciliar em Estrasburgo. De Roma, ele podia escrever com toda a impunidade: “O curso que ofereço atualmente, De Ecclesia, apesar do tom ingênuo, é minha resposta real; é minha dinamite real sob os assentos dos escribas! Aguardo e aproveito as ocasiões que surgem para expressar publicamente minha recusa às mentiras do sistema.”[4]

Dos anos iniciais de Rahner pouco é conhecido. Ainda assim, parece que a duplicidade de seus confrades não lhe é totalmente desconhecida. Se não, como pode ele citar Santo Tomás em cada página de sua filosofia, que é o oposto do tomismo? Como pode ele pretender ser um teólogo católico explicando os mistérios fundamentais de nossa fé como uma espécie de panteísmo? O italiano Fabro o acusa, com justiça, de ser um deformador sistemático, chocando-se ruidosamente com teses tomistas, como um homem surdo num concerto musical.[5]

A “Nova Teologia”

O termo “nova teologia” foi cunhado para descrever a escola de pensamento organizada em torno de de Lubac, que atraiu muitos amigos dentre os jesuítas de Fourvière, sua residência no período que lecionava na universidade de teologia de Lion. Esse grupo poderoso incluía os futuros cardeais Danélou e von Balthasar. Eles exerceram alguma influência também sobre o jesuíta Teilhard de Chardim e sobre os dominicanos Chenu e Congar. Uma mente brilhante e um escritor competente, a cultura de de Lubac era universal; todavia, sua preferência se direcionou para a crítica histórica e da patrística, com profusas citações do dúbio Orígenes, ainda mais prontamente por sua aversão à teologia escolástica.

A nova teologia é também caracterizada por sua rejeição a uma autoridade soberana do magistério – que pavimenta o caminho que leva à tradição viva, a uma definição da Revelação como a Pessoa de Cristo vivente – e sua rejeição da ordem sobrenatural que leva ao louvor da dignidade do homem enquanto simplesmente homem. A exaltação do homem e a desvalorização do magistério da Igreja abrem as portas para o diálogo universal tanto com cristãos quanto com não cristãos. Uma fórmula, que condensa todo o espírito lubaquiano, consagraria sua fama no Concílio: “Ao revelar o Pai e por ser revelado por Ele, Cristo completa a revelação do homem a si mesmo... É por meio de Cristo que a pessoa alcança a maturidade, que o homem emerge definitivamente do universo...”[6] O cardeal Siri descreveu certa vez todo o trabalho de Pe. de Lubac como “evasivo”, porque ele efetivamente nega todos os primeiros princípios da filosofia. Pio XII também condenou a Nova Teologia em setembro de 1946, e protestou acerca a duplicidade dos jesuítas de Lion.[7] Nesta curta exposição, só podemos oferecer um relance da principal doutrina que cada mosqueteiro trouxe ao magistério do Concílio. De Lubac poda a essência da verdade; Congar adota um ecumenismo amplo e Rahner ataca o papado.

O Historicismo de de Lubac

Historicismo é a teoria que afirma que a verdade da fé varia segundo a época. A teologia, para permanecer viva, deve evoluir com os tempos. É uma forma mitigada de ceticismo aplicada à Fé. Eis alguns aspectos em que de Lubac se mostra um teólogo historicista: ele rejeita qualquer imposição da fé desde fora. “Nada é mais inadequado à verdade do que doutrinas extrínsecas que mantêm na Igreja apenas a unidade da repressão, a menos que seja a unidade da indiferença... Elas transformam a obediência da fé na fé da pura obediência.”[8]

A verdade nunca é adequadamente definida: “Tal como ontem, quando no estado pré-teológico, não estamos hoje e nem estaremos no futuro de posse de uma perfeita teologia da Igreja... Tal Utopia não se adéqua à natureza nem da verdade revelada nem da inteligência humana...”[9] De fato, a verdade consiste no poder da inclusão, independente do que seja isto! “Esse espírito, que dá o tom e a orientação de todo o seu trabalho, é o da plenitude, da totalidade, a ponto de o poder de inclusão se tornar o caráter primordial da verdade.”[10]

A unidade é obtida por meio da tradição, que é completamente redefinida. Ela é uma entidade “concreta e vivente... que se torna real em conformidade com as necessidades de cada época e que também preserva a verdade revelada.”[11]

“O rio da Tradição não pode nos alcançar se seu leito não é perpetuamente limpo da velha lama e areia.”[12] A “Tradição viva” de de Lubac, que ele descobriu em Blondel, é um retorno à “lei da vida” de Loisy, pela qual a Igreja é deformada e transformada para se tornar sua própria e mais perfeita contradição. A Tradição viva hoje rotula como falsa a verdade de ontem, e a verdade de hoje é o que então era falsidade.[13]
  
O Ecumenismo e a Igreja Ampla de Congar

A Congar devemos a maior parte do esquema da Lumen Gentium. A identidade entre o Corpo Místico e Igreja visível e hierárquica é mencionada de modo positivo, mas isso de forma nenhuma implica o sentido exclusivo que é encontrado em Pe. Tromp: “isso permite a inclusão do famoso ‘subsistit in’ no item 8, descoberta modesta mas decisiva que constitui a substância deste item.”[14] Congar, por exemplo, alega que as igrejas separadas pertencem à Igreja de Cristo – heresia pura.[15]

Onde o magistério tradicional tratou da natureza da Igreja, Congar fala, ao contrário, de mistério e sacramento da Igreja;[16] onde Pio XII define a noção de adesão ao Corpo Místico de Cristo, Congar inseriu a vaga noção tyrreliana[17] de “comunhão do Povo de Deus.” Por quê? Porque alguém é ou não é membro de um corpo, mas é possível estar em mais ou menos comunhão.[18] Em outras palavras, Congar reinterpretou o conceito absoluto de Igreja para que ele se tornasse um termo “um-número-que-serve-a-todos” que pudesse ser aplicado a qualquer grupo religioso. “A Igreja sempre existiu como uma instituição e coisa feita a partir de cima, desde Cristo e os apóstolos. Ela precisava ser refeita e, para isto, precisava ser reinventada como um povo.”[19] Há uma necessidade de reforma para evitar a tentação de se tornar “Sinagoga”, porque “O corpo da Igreja cresceu, mas não sua pele. Então, poderia haver um rompimento. O que são questionáveis são certas características do aspecto temporal que o cristianismo recebeu de um outro momento histórico.”[20] Curioso é que Congar está usando a mesma imagem de 40 anos atrás, criada pelo modernista inglês Tyrrell.[21] Entre a ampla Igreja de Cristo e a salvação universal há apenas um pequeno passo. “Hoje ninguém pode alegar que a razão das missões seja salvar alguma alma do Inferno. Deus as salva sem que elas conheçam o Evangelho. Do contrário, todos teremos de ir para a China.”[22]
  
Rahner e a Colegialidade da Igreja

Colegialidade era outro emblema dos modernistas. Era uma ideia lançada por Rahner, que tinha o apoio da onipotente coalizão do Reno. Este tipo de governo, como entendido pelos esquerdistas, teria feito o papa igual os bispos – primus inter pares, segundo uma tese formalmente condenada. Rahner definira a colegialidade como o destronamento do papa e a democratização da Igreja. Incidentalmente, ele era membro de uma subcomissão que rejeitou sumariamente o legítimo desiderato dos padres conservadores. E, apesar da Nota Explicativa Praevia que excluía a interpretação herética, os esquerdistas estavam jubilantes. Congar declarou que a Igreja teria vencido sua Revolução de Outubro! De fato, parece que depois do Vaticano II, o papado tem sido vítima de esclerose múltipla, virtualmente à mercê de superpoderes de algumas conferências episcopais, que determinam a agenda de Roma Urbi et Orbi.

O Impacto dos Três Teólogos

Há poucas dúvidas de que os três teólogos formularam os princípios teológicos da Igreja conciliar. João Paulo II louvou de Lubac ao fazê-lo cardeal “pelo longo e fiel serviço que este teólogo prestou, usando o melhor da tradição católica em sua meditação acerca das Escrituras, a Igreja, e o mundo moderno [sua Gaudium et Spes].”[23] Congar foi também premiado com a púrpura cardinalícia. E uma das principais surpresas do Reno se Lança sobre o Tibres é que o autor considera Rahner como a autoridade mais influente, talvez a decisiva, por trás de muitas das inovações do Vaticano II. Segundo o próprio Congar, “A atmosfera era a de que: ‘Rahner dixit, ergo verum est.’ ”[24] Que os Céus nos ajudem a encontrar um caminho cristão que nos liberte do presente labirinto, armado por tão poderosas mentes.


[1] O sobrenatural é  “absolutamente impossível e absolutamente necessário ao homem.” (Blondel, Action, p. 357. Cf. Wagner, Henri de Lubac, p. 87). De Lubac, como Blondel, alegava que Deus não poderia ter criado a natureza sem ordená-la ao sobrenatural (in The Angelus, Dec. 1993, p.18).
[2] De Lubac, in Mémoires autour de mes œuvres (Milan: Jaca Books, p. 10) citado in The Angelus, Dec. 1993, p.18.
[3] Ibid, p. 192
[4] In Leprieur, Quand Rome Condamne (Paris: Plon-Cerf, 1989), in One Hundred Years of Modernism (Kansas City: Angelus Press, 2006), p. 243.
[5] Fabro, La Svolta Antroplogica de K. Rahner, textos escolhidos por Innocenti, Influssi Gnostici nella Chiesa d’Oggi, p. 48.
[6] De Lubac, Cathlicism, p. 189; cf. Courrier de Rome, La nouvelle Théologie, p. 103; João Paulo II, Redemptor Hominis, 8, 2. Ver também Théologies d’Occasion, p. 68; Gudium et Spes 22,1; “L’Ahtéisme e Le Sens de l’Homme”m o. 96-112, in Wagner, Henri de Lubac, p. 92.
[7] “O problema é que nós nunca sabemos se o que ele fala ou escreve corresponde ao que ele pensa.” Cf. Mémoires, p. 70 e 296.
[8] La foi Chrétienne, Paria, Aubier-Montaigne, 1969; in Wagner, Henri de Lubac, Cerf 2001, p. 55.
[9] Méditation sur l’Église, tradução para o inglês de Michael Mason, The Splendor of the Church (San Francisco, CA: Ignatius Press, 1986), p. 27; cf. Wagner, Henri de Lubac, p. 166.
[10] V. Carraud, in Wagner, Théologie fondamentale, Cerf 1997, p. 157.
[11] La révélation divine, Cerf. 1983, p. 173.
[12] Paradoxes (Paris, 1959), in Wagner, Henri de Lubac, p. 139.
[13] Ratzinger, Osservatore Romano, 2 de julho de 1990, p. 5. “Seu núcleo permanece válido, mas os detalhes individuais afetados pelas circunstâncias do tempo podem precisar de retificações adicionais.”
[14] Le Concile de Vatican II, Beauchène, Paria, p. 134 e 18.
[15] Tal é a opinião do Cardeal Ottaviani, in Courrier de Rome, Église e Contre-Église, p. 123. Sobre a oposição entre os cadeais Ottaviani e Bea antes do Concílio, ver Courrier de Rome, Église e Contre-Église, p. 122-123.
[16] Lumen Gentium n. 1.
[17] Tyrrell foi um renomado modernista inglês.
[18] Congar, Une Vie pour la Vérité, p. 149.
[19] Jalons pour une Théologie du laïcat, Unam Sanctam 23 (Paris, Cerf, 1952), p. 81.
[20] Vraie et Fausse Réforme dans l’Église, Unam Sanctam 23 (Paris, Cerf, 1953), p. 186.
[21] “O catolicismo é o paganismo cristianizado ou religião mundial, e não o judaísmo cristianizado do Novo Testamento... Isso é uma completa libertação e um ganho espiritual – uma troca de uma roupa apertada para uma elástica.” In One Hundred Years of Modernism, p. 140-41.
[22] Jean Puyo, Jean Puyo Interroge Le Père Congar: Une Vie pour la Vérité (Paris: Centurion, 1975), p. 175.
[23] João Paulo II na morte de Henri de Lubac, Osservatore Romano, edição inglesa, 9 de setembro de 1991, p. 16.
[24] “Rhaner falou, então é verdade.”

Um comentário:

MANOEL CARLOS disse...

enquanto isso no site da Arquidioces de Olinda e Recife...
Bispo que defendeu índios e posseiros e confrontou ditadura comemora 60 anos de ordenação


Para boa parte dos padres católicos, a data da ordenação sacerdotal é mais importante que a do nascimento. Na Ordem Claretiana, congregação religiosa fundada no século 19, o valor simbólico dessa data é ainda maior. Por isso vale a pena registrar aqui os 60 anos da ordenação do missionário catalão Pedro Casaldáliga, comemorados nesta quinta-feira, 31 de maio.

Nomeado bispo em 1971 e enviado para o interior do Brasil, para a Prelazia de São Félix, no Mato Grosso, ele assumiu a defesa dos índios que estavam sendo expulsos de suas terras por grandes projetos agropecuários financiados pelo governo, por meio da antiga Sudam. Uma carta aberta que ele lançou em 1971, denunciando os os problemas enfrentados pelos trabalhadores rurais, é considerada uma espécie de precursora das denúncias do trabalho escravo que acabaram resultando na PEC aprovada dias atrás pelo Congresso. Defensor da Teologia da Libertação, ajudou a criar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Conselho Pastoral da Terra (CPT).

Suas causas eram extraordinariamente difíceis naqueles anos. Passou a ser encarado pelos militares como inimigo nacional e mais de uma vez esteve prestes a ser expulso do País. Enfrentava resistências até mesmo entre colegas mais conservadores, como o leitor poderá ver no material registrado no acervo histórico do jornal, recentemente colocado na Internet.

Ele só não foi expulso porque o papa Paulo VI deixou claro que não aceitaria a expulsão de um príncipe da Igreja. Mesmo assim continuou sofrendo ameaças e viu um de seus principais assessores ser assassinado a tiros. Tornou-se aos poucos um dos símbolos da resistência ao arbítrio e da defesa dos mais fracos.

Aposentou-se em 2005, com 77 anos. Mas continuou vivendo em São Félix. Pobremente, como assinalou o escritor Frei Betto, em artigo daquele época, no qual o chamou de santo e herói. Na Espanha está em andamento um projeto destinado a transformar sua vida em minissérie de TV.



Fonte: Blog Roldão Arruda – O Estadão