V – O deslocamento do Magistério leva à dissolução da
unidade da fé na multiplicidade de opiniões
21. O princípio da autoridade do Soberano Pontífice resulta
de que sua palavra é vicarial da Palavra divina, ela exprime a lei moral
decorrente da Encarnação do Verbo. As verdades que vibram nas Encíclicas de
João Paulo II são as verdades centrais. E acima de todas essas verdades há a
verdade fundamental do cristianismo: isto é, que Deus se revela hic et nunc, aqui e não lá, agora e não
antes. Contudo, hoje em dia, esta verdade primordial é colocada em dúvida, como
lemos na Carta Apostólica Tertio
Millennio Adveniente; em seus parágrafos se desenvolve a
doutrina que afirma que “o cristianismo é a resposta à aspiração que se eleva
de todas as religiões: do budismo, do hinduísmo, do islamismo”. Mas o
cristianismo não é uma resposta a essas religiões, (“Não entregues senhor – disse
a rainha Ester – o teu cetro àqueles [deuses] que não são nada, para que não
escarneçam de nossa ruína”, Est 14,11) porque o cristianismo e a Palavra divina
revelada somente ao povo eleito, num tempo determinado, num lugar determinado,
como canta o salmo 147,20: “Non fecit
taliter omni nationi [Não fez assim a todas as nações]”.
22. Deus, potência absoluta, pode salvar todo homem sem
batismo, mas por potência ordenada,[1]
não o pode, pois a salvação sem batismo não faz parte do sistema, da economia
desejada por Deus. A salvação dos não batizados é excepcional, é
extra-sistemática, pois ela não pertence ao sistema que é centrado em Cristo e
na concepção trinitária de Deus. Mas quando se diz: o homem se salva sem a
graça, sem o batismo, apenas pela virtude de suas obras de homem religioso,
bom, piedoso, justo, entra-se no sistema pelagiano. O sistema pelagiano tem
merecido bastante atenção da parte dos teólogos modernos, porque o mundo se
impregna do espírito pelagiano.
23. A fase final da síntese mostra que a decadência da
autoridade do Magistério episcopal, abandonando a autoridade aos teólogos, gira
em torno de uma autoridade individual, em torno do desenvolvimento que o Papa
dá a suas opiniões privadas, em detrimento da Doutrina universal e da Tradição.
Mas há uma outra coisa ainda mais aflitiva; há uma segunda realidade, mais
universal, mais impalpável; causada pela demissão do Magistério episcopal, que se
estende ao mundo inteiro ante à arrogância de opiniões teológicas as mais disparatadas,
as mais variadas e as mais ricas.
24. Opiniões disparatadas, pois chamamos disparatadas o que
difere, em alguma coisa, do essencial. Variadas, porque chama-se variada o que
difere, em alguma coisa, do acidental. Duas coisas disparatadas são duas coisas
de gênero diferente; duas coisas variadas são duas coisas que podem pertencer a
um mesmo gênero. O mesmo se aplica às opiniões teológicas que pululam nesses
últimos trinta anos, no mundo católico pós-conciliar. Elas diferem da doutrina una
e santa porque, quando são do mesmo gênero, elas se distanciam segundo os
acidentes. Elas, mais frequentemente, não são do mesmo gênero; isto é, elas não
têm a mesma raiz sobrenatural que faz a doutrina católica um unicum. Em terceiro lugar, finalmente,
eu digo; opiniões teológicas ricas, no sentido em que os mesmos teólogos falam
de riqueza do pensamento teológico quando muitas outras mentalidades se
misturam à mentalidade de nossa fé; a mentalidade de fés estrangeiras tais
como: protestante, hebraica, budista, islâmica, animista.
25. Fazendo convergir os olhares para essa trilogia de opiniões
variadas, disparatadas e ricas, num certo sentido, podemos dizer que hoje a
doutrina da fé não é mais uma única. A unidade da Igreja deveria ser
essencialmente teórica, doutrinal, pois se trata de coisas do intelecto, se
trata da atividade teórica, não de uma unidade de gabinetes ou de indumentária.
Ademais, o Santo Padre sustenta que existe uma unidade moral nas diversas
religiões, todas ordenadas à salvação, de forma que todas as religiões e todas
as culturas são “idealmente” uma só, sem que haja unidade doutrinal. Elas
confessam assim que são doutrinariamente disparatadas: é nos detalhes que se
encontram as diferenças teóricas.
26. Unidade da fé: cada um entre nós deve ter a certeza a priori de pensar que tudo o que pensam
os outros cristãos do mundo, e tudo que pensaram através de todos os séculos, é
idêntico ao que se crê. Devo ter a certeza a
priori de crer tudo o que crê outro cristão sem verificar o que este outro
cristão professa. No meu Iota
Unum, falando da infalibilidade, eu disse também que cada cristão,
quando anuncia uma verdade da fé, é infalível. Por exemplo: o Santo Padre
anunciou infalivelmente que a Virgem Maria é isenta do pecado original, então
quando repito o anúncio do Soberano Pontífice, sou infalível, não posso, pois,
temer enganar-me. Esta doutrina põe em evidência a univocidade da doutrina da fé:
“univocidade” por causa de tantas vozes, de milhões de vozes, de uma miríade de
homens, que professam e sempre professaram a única doutrina do Verbo engendrado
pelo pensamento do Pai. “Ninguém jamais
viu a Deus; o Unigênito, que está no seio do Pai, ele mesmo é que o deu a
conhecer.” (Jo 1, 18)
27. A fé que é, por natureza, una e unívoca, se tornou hoje
aquela dos carismáticos, que não é aquela dos neocatecúmenos, que não é aquela
do cardeal Ratzinger, que não é aquela do cardeal Martini e que não é aquela do
Papa. E cada um vai ao rádio, à televisão, escreve nas revistas e livros e dá
testemunho de sua fé “particular”. Todos esses testemunhos, todas essas manifestações
de fé, têm em comum certa relação com a fé católica; essas são as opiniões em
torno da fé católica e dissidentes da fé católica. Podemos ainda dizer que
esses teólogos são católicos?
[1]
(...) dizemos que Deus pode, por potência absoluta, tudo o que é atribuído ao
seu poder, em si mesmo considerado. E isto abrange tudo o que tem natureza de
ser, como vimos4. Dizemos, porém, que Deus pode, por potência ordenada o que a
esta é atribuído, enquanto executora da ordem da vontade justa. Por onde,
devemos concluir, que, pela potência absoluta, Deus pode fazer coisas diversas
das que previu e preordenou que haveria de fazer. Não é possível, porém, faça
coisas diversas das que previu e predeterminou que haveria de fazer. Pois, o
seu próprio fazer está sujeito à presciência e à preordenação; não porém o seu
poder, que lhe é natural. Por onde, Deus faz o que quer; porém, o que pode não
é porque o queira, mas, porque está na sua natureza. (Sto. Tomás de Aquino,
Suma Teológica, I Parte, Q. 25, Art. 5, Respondeo,
1a. objeção) (N. do T.)
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