22/10/2018

O deslocamento da função magisterial depois do Concílio Vaticano II, por Romano Amerio - Parte IV



IV – O Papa, com a nova ideia que ele faz de sua função, não é mais o princípio de unidade da fé da Igreja

12. Nos últimos trinta anos, centenas e centenas de bispos, de superiores religiosos de ordens as mais diversas, de prelados e, finalmente, o Pontífice Supremo, enfraqueceram progressivamente esse fundamento doutrinal que dissolve a fé e sua raiz sobrenatural numa miríade de opiniões privadas e pessoais. Isso provém do fato de que o princípio do Pontificado romano é o verdadeiro princípio da Igreja; se o Papa se demite, a Igreja se demite e se o Papa é abatido, a Igreja é abatida. Há um só princípio de autoridade, o Pontífice Supremo, o Vigário de Cristo que recebeu de Cristo o mandato de confirmar seus irmãos na fé: “Confirmar” significa “tornar forte”, “tornar firme”.

13. Assim, da crise do Concílio, uma parte importante provém das tentativas de partilhar o Magistério infalível do Papa e dos bispos. No seu conjunto, o movimento antipapal tem prevalecido, apesar da Nota previa, porque esse espírito antipapal, anti-romano, anti-autoritário é muito difundido. Mesmo os cristãos estão convencidos que a infalibilidade deve ser interpretada de uma maneira nova. Por outro lado, como já vimos, o próprio Pontífice João Paulo II faz declarações antipapais: “...e quando ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova.”, escreve ele no § 95 da Ut Unum Sint . O que é o mesmo que dizer: não se pode renunciar mas, ao mesmo tempo, se pode renunciar. É um princípio absoluto, mas não é um princípio absoluto. A infalibilidade do Papa é uma rocha imutável “mas”... E quando se diz “mas”, o abrandamento já se operou.

14. A nova fórmula será uma alteração da verdade que se define inabalável. De fato, as proposições dos teólogos luteranos, sustentadas pelos teólogos católicos, já circulam, afirmando que os protestantes poderiam admitir a infalibilidade, admitindo que ela permaneça um costume e uma crença particular, característica da Igreja romana. E o Santo Padre, pelas palavras citadas acima, parece aceitar essa ideia. Ele se mostraria então prestes a limitar a infalibilidade, de tal modo que não sendo mais universal, ela não seria mais um dogma de fé. Desnecessário dizer que, com isso, a própria natureza da Igreja seria violada, pois se certas dioceses creem e outras não, a natureza está comprometida. A Igreja e a fé são uma só e mesma coisa e, portanto, com tal fórmula, a fé e a Igreja seriam uma em Roma e outra em Berlin.

15. Nos últimos trinta anos, essa supremacia pontifícia tem recebido golpes mais sórdidos ainda que durante o Concílio. De fato, esta grave ferida no cume do Santuário divino é ocultada pelo fato de hoje, no mundo, a autoridade moral do Pontífice cresceu. Mas o crescimento que assistimos não tem nenhum significado religioso, nenhuma forma sobrenatural. O Papa é reverenciado na medida em que representa a ideia humanitária que deve constituir o fundamento do mundo futuro, esta mesma ideia humanitária condenada com tanta força pelo Syllabus, na proposição LV: “A Igreja deve estar separada do Estado, e o Estado da Igreja”; e na proposição LXXX: “O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e tornar-se amigo do progresso, do liberalismo e da civilização moderna”. Apesar disso, o Santo Padre parece sustentar essa ideia, pois fala sempre de um “mundo novo”, de um mundo guiado pela justiça, de um mundo no qual os povos se amam e reverenciam suas tradições boas e distintas, de um mundo fraternal e pacífico em que a paz e o bem-estar reinam sobre todos os povos. Mas o Santo Padre, diante os chefes das Nações, jamais fala da autoridade de Cristo por meio de seu representante na terra, jamais fala de Cristo-Rei, jamais. O discurso pronunciado na ONU é um discurso inteiramente humanitário; em certos trechos se faz, somente por obrigação, alusão a Cristo. Mas são, por assim dizer, apenas alusões formais, de polidez: o discurso é imbuído de humanitarismo, encharcado de humanitarismo, pois seu fim é humanitário.

16. O Santo Padre fala ainda de “nova evangelização”: mas tal “nova evangelização”, ou bem é a lembrança da Boa Nova, ou bem é o anúncio de certa novidade. A novidade consiste no anúncio humanitário, que faz abstração da ideia religiosa católica à qual se refere, em contrapartida, a carta de São Paulo aos Efésios (Ef. 2,4): “Uma só fé e um só batismo”. Em contraste, a novidade sanciona a religiosidade humana, pela qual todas as religiões merecem respeito, pois todas concorrem para o bem comum.

17. Mas se nossa religião se dissolve no sentimento religioso universal, nossa religião não existe; se nossa religião não é um primum, ela não é nada e, se ela não é a luz, então ela é a sombra.

18. O único conflito com o mundo se situa sobre os aspectos da moral; como a indissolubilidade do matrimônio, o aborto, as Tábuas da lei moral em geral. Sobre esses pontos, o Santo Padre tem perseverado na realização de seu dever[1], mas, como vimos acima, em todas as outras posições, ou seja, as posições dogmáticas, a dissolução da doutrina em opiniões pessoais do Papa é crescente.

19. Os sucessos do Santo Padre no mundo são, de fato, grandiosos: ele se movimenta entre milhares de jornalistas, participa de encontros com os grandes da terra; e o Papa participa também, de igual para igual, de reuniões ecumênicas. Tudo isso é importante, pois, de certo modo, João Paulo II conquistou o mundo; e o mundo hoje está imbuído de suas ideias sobre o ecumenismo, sobre a bondade geral, intrínseca e igualmente existente em todas as religiões, pois todas ex sese (por si mesmas) conduzem a Cristo, sobre a necessidade da fraternização dos povos, todos permanecendo com suas práticas tradicionais, com suas próprias convicções culturais; e outras coisas mais. O Santo Padre é acolhido com entusiasmo, não enquanto Pontífice romano, mas porque é considerado como o mais alto representante dessa mentalidade geral “de um mundo bom”.

20. O Papa manifesta sua especificidade, sua particularidade de soberano, unicamente sobre os pontos complexos da moral negada pelo mundo. Que ele nega, contudo, sem se dar conta, pois ninguém lembra a ele que a negação de pontos morais inclui a negação de pontos dogmáticos, pois a lei moral é a manifestação do Verbo, isto é, da Razão divina, que se encarnou e seu nome é Cristo. A lei moral se refere diretamente ao Verbo. Então, a negação da lei moral é uma negação implícita, mas não menos real, do Verbo. O princípio da Igreja e o princípio de tudo se chama Cristo, que é o Verbo encarnado, a Razão divina, que exprime a lei moral natural. A lei moral é uma lei racional e é a expressão da Razão divina: a lei moral é soberanamente razoável.


[1] [Hoje, infelizmente, com Francisco, este não é mais o caso; mas mesmo que Amerio não pudesse ainda perceber, ele já tinha visto que tal relativização moral já estava inscrita na relativização dogmática].

Um comentário:

Anônimo disse...

Professor, poderia traduzir o artigo do padre Álvaro Calderon publicado em 2014 na revista SiSiNoNo? O nome é "Si las consagraciones episcopales reformadas por Pablo VI son válidas?" (https://pt.scribd.com/document/270396261/Consagraciones-Episcopales-de-Pablo-VI-P-Calderon)