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IV – O Papa, com a nova ideia que ele faz de sua função, não
é mais o princípio de unidade da fé da Igreja
12. Nos últimos trinta anos, centenas e centenas de bispos,
de superiores religiosos de ordens as mais diversas, de prelados e, finalmente,
o Pontífice Supremo, enfraqueceram progressivamente esse fundamento doutrinal
que dissolve a fé e sua raiz sobrenatural numa miríade de opiniões privadas e
pessoais. Isso provém do fato de que o princípio do Pontificado romano é o
verdadeiro princípio da Igreja; se o Papa se demite, a Igreja se demite e se o
Papa é abatido, a Igreja é abatida. Há um só princípio de autoridade, o
Pontífice Supremo, o Vigário de Cristo que recebeu de Cristo o mandato de
confirmar seus irmãos na fé: “Confirmar” significa “tornar forte”, “tornar
firme”.
13. Assim, da crise do Concílio, uma parte importante provém
das tentativas de partilhar o Magistério infalível do Papa e dos bispos. No seu
conjunto, o movimento antipapal tem prevalecido, apesar da Nota previa, porque esse espírito antipapal, anti-romano,
anti-autoritário é muito difundido. Mesmo os cristãos estão convencidos que a
infalibilidade deve ser interpretada de uma maneira nova. Por outro lado, como
já vimos, o próprio Pontífice João Paulo II faz declarações antipapais: “...e
quando ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de
exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua
missão, se abra a uma situação nova.”, escreve ele no § 95 da Ut
Unum Sint . O que é o mesmo que dizer: não se pode renunciar
mas, ao mesmo tempo, se pode renunciar. É um princípio absoluto, mas não é um
princípio absoluto. A infalibilidade do Papa é uma rocha imutável “mas”... E
quando se diz “mas”, o abrandamento já se operou.
14. A nova fórmula será uma alteração da verdade que se
define inabalável. De fato, as proposições dos teólogos luteranos, sustentadas
pelos teólogos católicos, já circulam, afirmando que os protestantes poderiam
admitir a infalibilidade, admitindo que ela permaneça um costume e uma crença
particular, característica da Igreja romana. E o Santo Padre, pelas palavras
citadas acima, parece aceitar essa ideia. Ele se mostraria então prestes a limitar
a infalibilidade, de tal modo que não sendo mais universal, ela não seria mais
um dogma de fé. Desnecessário dizer que, com isso, a própria natureza da Igreja
seria violada, pois se certas dioceses creem e outras não, a natureza está
comprometida. A Igreja e a fé são uma só e mesma coisa e, portanto, com tal
fórmula, a fé e a Igreja seriam uma em Roma e outra em Berlin.
15. Nos últimos trinta anos, essa supremacia pontifícia tem
recebido golpes mais sórdidos ainda que durante o Concílio. De fato, esta grave
ferida no cume do Santuário divino é ocultada pelo fato de hoje, no mundo, a
autoridade moral do Pontífice cresceu. Mas o crescimento que assistimos não tem
nenhum significado religioso, nenhuma forma sobrenatural. O Papa é reverenciado
na medida em que representa a ideia humanitária que deve constituir o
fundamento do mundo futuro, esta mesma ideia humanitária condenada com tanta
força pelo Syllabus, na proposição
LV: “A Igreja deve estar separada do
Estado, e o Estado da Igreja”; e na proposição LXXX: “O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e tornar-se amigo do
progresso, do liberalismo e da civilização moderna”. Apesar disso, o Santo
Padre parece sustentar essa ideia, pois fala sempre de um “mundo novo”, de um
mundo guiado pela justiça, de um mundo no qual os povos se amam e reverenciam
suas tradições boas e distintas, de um mundo fraternal e pacífico em que a paz
e o bem-estar reinam sobre todos os povos. Mas o Santo Padre, diante os chefes
das Nações, jamais fala da autoridade de Cristo por meio de seu representante
na terra, jamais fala de Cristo-Rei, jamais. O discurso pronunciado na ONU é um
discurso inteiramente humanitário; em certos trechos se faz, somente por
obrigação, alusão a Cristo. Mas são, por assim dizer, apenas alusões formais,
de polidez: o discurso é imbuído de humanitarismo, encharcado de humanitarismo,
pois seu fim é humanitário.
16. O Santo Padre fala ainda de “nova evangelização”: mas
tal “nova evangelização”, ou bem é a lembrança da Boa Nova, ou bem é o anúncio
de certa novidade. A novidade consiste no anúncio humanitário, que faz
abstração da ideia religiosa católica à qual se refere, em contrapartida, a
carta de São Paulo aos Efésios (Ef. 2,4): “Uma
só fé e um só batismo”. Em contraste, a novidade sanciona a religiosidade
humana, pela qual todas as religiões merecem respeito, pois todas concorrem
para o bem comum.
17. Mas se nossa religião se dissolve no sentimento
religioso universal, nossa religião não existe; se nossa religião não é um primum, ela não é nada e, se ela não é a
luz, então ela é a sombra.
18. O único conflito com o mundo se situa sobre os aspectos
da moral; como a indissolubilidade do matrimônio, o aborto, as Tábuas da lei moral
em geral. Sobre esses pontos, o Santo Padre tem perseverado na realização de
seu dever[1],
mas, como vimos acima, em todas as outras posições, ou seja, as posições
dogmáticas, a dissolução da doutrina em opiniões pessoais do Papa é crescente.
19. Os sucessos do Santo Padre no mundo são, de fato, grandiosos:
ele se movimenta entre milhares de jornalistas, participa de encontros com os
grandes da terra; e o Papa participa também, de igual para igual, de reuniões
ecumênicas. Tudo isso é importante, pois, de certo modo, João Paulo II
conquistou o mundo; e o mundo hoje está imbuído de suas ideias sobre o
ecumenismo, sobre a bondade geral, intrínseca e igualmente existente em todas
as religiões, pois todas ex sese (por
si mesmas) conduzem a Cristo, sobre a necessidade da fraternização dos povos,
todos permanecendo com suas práticas tradicionais, com suas próprias convicções
culturais; e outras coisas mais. O Santo Padre é acolhido com entusiasmo, não
enquanto Pontífice romano, mas porque é considerado como o mais alto
representante dessa mentalidade geral “de um mundo bom”.
20. O Papa manifesta sua especificidade, sua particularidade
de soberano, unicamente sobre os pontos complexos da moral negada pelo mundo.
Que ele nega, contudo, sem se dar conta, pois ninguém lembra a ele que a
negação de pontos morais inclui a negação de pontos dogmáticos, pois a lei
moral é a manifestação do Verbo, isto é, da Razão divina, que se encarnou e seu
nome é Cristo. A lei moral se refere diretamente ao Verbo. Então, a negação da
lei moral é uma negação implícita, mas não menos real, do Verbo. O princípio da
Igreja e o princípio de tudo se chama Cristo, que é o Verbo encarnado, a Razão
divina, que exprime a lei moral natural. A lei moral é uma lei racional e é a
expressão da Razão divina: a lei moral é soberanamente razoável.
[1] [Hoje,
infelizmente, com Francisco, este não é mais o caso; mas mesmo que Amerio não
pudesse ainda perceber, ele já tinha visto que tal relativização moral já
estava inscrita na relativização dogmática].
Um comentário:
Professor, poderia traduzir o artigo do padre Álvaro Calderon publicado em 2014 na revista SiSiNoNo? O nome é "Si las consagraciones episcopales reformadas por Pablo VI son válidas?" (https://pt.scribd.com/document/270396261/Consagraciones-Episcopales-de-Pablo-VI-P-Calderon)
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