Sidney Silveira
Se acreditássemos na hipótese metafísica da geração espontânea, poderíamos supor que, numa linda manhã ensolarada, os brasileiros subitamente acordaram da letargia multissecular modeladora das nossas mazelas sociais e políticas. E, de maneira mais extraordinária do que aconteceu com a criação divina “ex nihilo”, da noite para o dia beócios viraram Boécios. Viraram Platões, Aristóteles, Cíceros e Agostinhos, numa espécie de milagre em escala que iluminou as inteligências ao ponto de lhes propiciar espírito hipercrítico acerca de nossa atávica corrupção moral. O rumoroso exército de neopensadores políticos engajados resolveu então parar o país, do Oiapoque ao Chuí, e o mais surpreendente de tudo é a mágica intuição coletiva desses ativistas com relação a várias “demandas” sociais: estão irmanados em certezas cívicas sem jamais tê-las discutido entre si! Um fenômeno.
Mas não. Não acreditamos em geração espontânea e sabemos que — desde que o mundo é mundo — onde se juntam mais de três ou quatro pessoas para falar sobre política emergem divergências de todos os tipos possíveis e imagináveis. Ademais, hoje temos conhecimento histórico suficiente para saber que as grandes massas revoltosas, dos primórdios da modernidade até hoje, foram dirigidas por elites, pequenos grupos que lhes deram o vetor de ação e as bandeiras a hastear; o movimento inercial fez o resto do trabalho sujo.
Quanto ao atual quadro brasileiro, não é objetivo do presente texto mapear o conjunto de motores da revolta, pois isto em verdade levará anos de pesquisa investigativa historiográfica, não obstante tenhamos indícios eloqüentes quanto a algumas de suas principais fontes, financeiras e políticas. Ele apenas pretende servir de luz — por pálida que seja — para consciências não recalcitrantes perdidas em meio aos bois de piranha da revolução em curso, que acabou por abrir nos últimos anos um gigantesco fosso entre a coisa pública e os homens devotados às coisas do espírito — situação quase idêntica à descrita por Platão no “Fedro”.
Nesta obra-prima da filosofia política, o genial filósofo grego aponta-nos o seguinte: uma ordem política apodrecida, na qual avultam sofistas, tiranos e demagogos, não mais está em condições de absorver ou aproveitar a substância dos homens mais capazes. Nesta situação arquetípica, a tais almas só resta a heroicização (e o provável martírio), numa atmosfera de violência e cegueira mental em que os maus sequer têm clara noção de sua própria maldade, pois a ilusão em que jazem ultrapassou os umbrais da insanidade. Hábitos de embuste e cupidez carcomeram a alma dos que se ocupam da política, e em tal situação os amantes da beleza e do bem são tomados por homens ridículos e ingênuos aos olhos dos perversos que dominam o cenário.
O caso tupiniquim é particularmente dramático porque o remédio proposto pelas massas traz consigo o veneno que gerou a atual situação: o espírito libertário-filomarxista, produto de décadas de formação espiritual deformante, associado a um democratismo liberal difuso que sequer tem noção da hierarquia de bens a preservar, para não descambarmos numa situação pior, muitíssimo pior do que a atual.
À multidão de pessoas empapuçadas de boas intenções que têm contribuído para algo que as pode engolir em breve — sem nem de longe saberem os porquês —, vale dizer sem meias palavras nem temor de ferir a pruridos ou susceptibilidades: vocês não têm o monopólio do amor à pátria! Em hipótese alguma.
E, por servir de instrumento para atos totalmente contrários ao bem comum e à paz social, o seu brado retumbante é como o veneno do escorpião da fábula de La Fontaine: numa só picada, pode matar a vocês mesmos e às instituições que tornam possível a sua ira.
O verdadeiro amor à pátria pressupõe primordialmente o desejo de servir, que é anterior ao de protestar — de maneira análoga à anterioridade dos deveres com relação aos direitos.
2 comentários:
sim
Recomendo ler o seguinte texto racional sobre a lógica das manifestaçòes:
http://scutumfidei.org/2013/06/26/algumas-consideracoes-sobre-as-manifestacoes/
Luiz Antonio
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