Do livro “A Coisa”, publicado em 1929
Gilbert Keith Chesterton
___________________________________
Nota: Este é aparentemente um texto de crítica literária, mas nas mãos de Chesterton ele se transforma num texto da mais refinada apologética católica. O autor identifica, agrupa e disseca um grupo poderoso e moderno de inimigos da Igreja. Ele mostra como este grupo, constituído dos intelectuais mais influentes, são hereges como o foram os protestantes do século XVI e os revolucionários do século XVIII. Mostra que a forma com que agem os hereges modernos é a mesma de seus “protótipos”, como Chesterton denomina os seus antepassados e, para terminar, ele nos brinda com a sua versão do dogma católico “Extra Ecclesiam nulla salus”.
___________________________________
Acabo de ler o livro “A Crítica Americana”, do Sr. Norman Foerster; espero que não seja desrespeito ao livro como um todo, que é uma série de detalhados estudos sobre pensadores americanos, se digo que sua parte principal se encontra no último capítulo; que propõe certo problema ou desafio ao pensamento moderno. O problema é se o que ele chama de humanismo pode satisfazer a humanidade. De seus outros tópicos seria fácil falar para sempre. Ele geralmente diz a coisa certa; ele às vezes diz a última palavra, naquele estilo sugestivo e provocativo que induz alguém a dizer uma palavra a mais. Em minha própria opinião sobre os autores por ele analisados, Whitman seria muito maior e Lowell muito menor. Sobre Emerson, ele parece sensível e justo; e Emerson certamente tinha distinção; mas justamente aquele tipo de árida distinção em relação a qual sempre temi ser injusto. Um puritano tentou ser pagão; e conseguiu ser um pagão que hesitava sobre se devia ir ver uma garota dançando. Todas estas questões são estimulantes, mas secundárias em relação à questão que tomarei a liberdade de abordar separadamente, e de tentar responder seriamente. Temo que respondê-la seriamente deva significar respondê-la pessoalmente. A questão é realmente se o humanismo pode desempenhar todas as funções da religião; e não posso evitar considerá-la em relação à minha própria religião. É justo dizer que o humanismo é muito diferente do humanitarismo. Seu significado, como explicado aqui, é o seguinte. A ciência e a organização modernas são, em certo sentido, excessivamente naturais. Elas nos arrebanham como animais selvagens, segundo a característica de hereditariedade e o destino tribal; elas prendem o homem à terra como uma planta, em vez de libertá-lo como um pássaro, para não dizer como um anjo. De fato, sua mais recente psicologia é mais inferior que o nível da vida. O que é subconsciente é sub-humano e, supostamente, subterrâneo: ou algo menos que terrestre. Esta luta pela cultura é, acima de tudo, uma luta pela consciência: o que alguns chamariam auto-consciência; mas, de qualquer forma, contra a mera subconsciência. Precisamos de uma reunião de coisas realmente HUMANAS; vontade que seja moral, memória que seja tradição, cultura que seja a frugalidade de nossos pais. Todavia, minha primeira obrigação é responder à questão a mim colocada; e eu a devo responder negativamente.
Não creio que o humanismo possa ser um substituto completo do super-humanismo. Não o creio por causa de certa verdade, tão concreta para mim, que pode ser considerada um fato. Sei que isso soa como algo que é comumente dito em apologética convencional e superficial. Mas não o afirmo naquele sentido vago; longe de herdá-lo como uma convenção, com ele colidi muito recentemente como com uma descoberta. Eu o percebi relativamente tarde na vida, e percebi que ele é realmente toda a história moral de meu próprio tempo. Mas mesmo há poucos anos, quando grande parte de minhas idéias morais e religiosas estavam muito bem consolidadas, eu não o via tão aguda e claramente como o vejo agora.
O fato é este: que o mundo moderno, com todos os seus movimentos modernos, está vivendo do seu capital católico. Está usando, e esgotando, as verdades que permanecem do antigo tesouro da cristandade, incluindo, claro, muitas verdades conhecidas da antiguidade pagã, mas cristalizadas na cristandade. Mas o mundo moderno NÃO está realmente inaugurando suas próprias devoções. A novidade é uma questão de nomes e rótulos, como a propaganda moderna; de quase todas as formas, a novidade é simplesmente negativa. Não está iniciando coisas novas que ele [o mundo moderno] possa conduzir muito longe no futuro. Ao contrário, está tomando coisas antigas que não pode conduzir em absoluto. Pois estas são as duas marcas dos ideais morais modernos. A primeira, que eles são tomados de empréstimo ou arrebatados de mãos antigas ou medievais. A segunda, que ele definha muito rapidamente em mãos modernas. Esta é, muito brevemente, a tese que defendo; e acontece que o livro “A Crítica Americana” quase poderia ter sido escrito para servir de livro-texto para provar minha opinião.
Começarei com um exemplo particular do qual o livro também trata. Toda a minha juventude foi preenchida, como com uma aurora, com o ardente brilho de Walt Whitman. Ele parecia-me algo como uma montanha transformada num gigante, ou como Adão, o Primeiro Homem. Tremia só de ouvir de alguém que ouvira de alguém que o tivesse visto na rua; era como se Cristo ainda vivesse. Não tomava conhecimento se sua poesia sem métrica era ou não uma sábia forma, do mesmo modo que pouco me importava se o Evangelho de Jesus fora rabiscado no pergaminho ou na pedra. Nunca tive a menor idéia do mal que alguns inimigos o atribuíam; se estivesse lá, não estava lá para mim. O que eu saudava era uma nova igualdade, que não era um tedioso nivelamento, mas uma entusiástica elevação; uma clamorosa exaltação pelo simples fato de que os homens eram homens. Homens reais eram maiores que deuses irreais; e cada qual permanecia tão místico e majestoso como um deus, enquanto ele se tornava tão franco e reconfortante como um camarada. A idéia pode ser expressada compactamente por uma das próprias frases de Whitman; ele diz, em algum lugar, que artistas antigos pintavam multidões em que uma cabeça tinha um halo de luz dourada; “mas eu pinto centenas de cabeças, mas não pinto uma cabeça sequer sem seu halo de luz dourada.” A glória era apegar-se aos homens como homens; uma adoração mútua tomava a forma de camaradagem; e o menor e mais desprezível dos homens deve ser incluído nesta camaradagem; um negro corcunda e retardado, com um só olho e uma obsessão homicida, não deve ser pintado sem seu halo de luz dourada. Isto poderia parecer apenas a expansão final de um movimento começado um século antes, com Rousseau e os revolucionários; e eu fui educado para acreditar, e acreditei, que o movimento era o começo de coisas maiores e melhores. Mas estas eram canções antes da aurora; e não há comparação nem mesmo entre o sol e a aurora. Whitman era a irmandade em plena luz do dia, mostrando infindáveis variedades de criaturas radiantes e maravilhosas, ainda mais sagradas por serem sólidas. Shelley adorava o Homem, mas Whitman adorava os homens. Cada face humana, cada característica humana, era motivo para uma poesia mística, como a luz de um fortuito archote, até então, uma face aqui e ali na multidão. Um rei era um homem tratado como todo homem deveria ser tratado. Um deus era um homem adorado como todo homem deveria ser adorado. O que poderiam fazer contra uma raça de deuses e uma república de reis; não verbalmente, mas verdadeiramente, o Mundo Novo?
Bem ... eis que o Sr. Foerster diz sobre a presente posição do fundador do novo mundo da democracia: “Nossa ciência atual proporciona pouco respaldo a uma inerente ‘dignidade do homem’ ou à sua ‘perfectibilidade’. É completamente possível que a ciência do futuro nos afastará da democracia, nos levando a alguma forma de aristocracia. As expectativas milenárias que Whitman edificou sobre a ciência e a democracia assentam-se agora, bem sabemos, sobre bases incertas. A perfeição da natureza, a bondade natural do homem, o ‘grande orgulho do homem em relação a si mesmo’ contra-balançado por um humanitarismo emocional – estes são os materiais de uma estrutura levemente colorida com modernidade. Sua política, ética e religião pertencem ao passado, mesmo aquela superficial ‘religiosidade’ que, ele acreditava, expandiria e completaria a tarefa da ciência e da democracia ... No essencial de sua profecia, Whitman, somos forçados a concluir, foi refutado pelos fatos.” Esta é uma afirmação muito moderada e justa; seria fácil encontrar a mesma coisa numa afirmação muito mais feroz. Eis uma monumental observação do Sr. H.L. Mencken: “Eles (ele quer dizer certos pensadores liberais e ex-liberais) acabaram percebendo que os idiotas a quem eles suaram para salvar, não querem ser salvos, e não merecem ser salvos.” Este é o Novo Espírito, se é que há algum Novo Espírito. “Construirei cidades inconquistáveis, com cada braço em torno de cada pescoço,” clamava Walt Whitman, “por amor aos camaradas, pelo permanente amor aos camaradas.” Fico a pensar no rosto do Sr. Mencken de Baltimore, se algum camarada casual de Pittisburgh tentasse torná-lo inconquistável colocando um braço em torno de seu pescoço. Mas a idéia está morta por causa de homens muito menos ferozes que o Sr. Mencken. Ela está morta num homem como Aldous Huxley, que reclamou recentemente do romantismo “gratuito” da antiga visão republicana da natureza humana. Está morta no mais benevolente e cômico de nossos críticos recentes. Está morta em tantos homens sábios e bons da atualidade, que não posso evitar de pensar que, sob as modernas condições de sua “ciência” favorita, ela estaria morta no próprio Whitman.
Não está morta em mim. Ela permanece real para mim, não por nenhum mérito próprio, mas pelo fato de que essa idéia mística, embora tenha evaporado como temperamento, ainda persiste como credo. Estou inteiramente preparado para declarar, tão firmemente quanto declararia em minha juventude, que um negro corcunda e retardado está decorado como um halo de luz dourada. A verdade é que o extravagante quadro de Whitman, ou o que ele pensava ser um quadro extravagante, é, realmente, um quadro muito antigo e ortodoxo. Há, na verdade, incontáveis quadros antigos em que multidões inteiras são coroadas com halos, para indicar que todos atingiram a Beatitude. Mas, para os católicos, é um dogma fundamental da Fé que todos os seres humanos, sem nenhuma exceção sequer, foram especialmente criados, foram formados e afinados como setas brilhantes, a fim de atingirem o alvo da Beatitude. É verdade que as flechas são cobertas com as penas do livre-arbítrio e, portanto, projetam a sombra das trágicas possibilidades do livre-arbítrio; e que a Igreja (tendo estado consciente por eras sem fim daquele lado obscuro da verdade, que os novos céticos acabaram de descobrir) também chama a atenção para as trevas dessa tragédia potencial. Mas isso não faz a menor diferença para a grandeza da glória potencial. Em certo aspecto, é até mesmo parte dela; pois a liberdade é, em si mesma, uma glória. Neste sentido, eles ainda usariam seus halos até mesmo no inferno.
Mas a questão é que qualquer um que acredite que todos esses seres foram criados para serem santificados, e multidões deles estão provavelmente no caminho da santificação, tem razoável motivo filosófico para considerá-los todos criaturas radiantes e maravilhosas, ou ver todas as suas cabeças circundadas por halos. Essa convicção faz de cada face humana, de cada característica humana, um tema de poesia mística. Mas esta não é em absoluto como a moderna poesia. A mais recente poesia moderna não é poesia da recepção, mas da rejeição, ou melhor, da repulsão. O espírito que habita os mais recentes trabalhos pode ser chamado de uma fúria do fastio. O novo homem de letras não causa impacto dizendo que para ele um negro corcunda tem um halo. Ele causa impacto dizendo que exatamente quando ele estava a ponto de abraçar a mais honrada das mulheres, ele sentiu-se nauseado por uma acne acima da sobrancelha dela ou por uma mancha de gordura em seu polegar esquerdo. Whitman tentou provar que coisas sujas eram realmente limpas, como quando ele glorificava o estrume como a origem da pureza da grama. Seus seguidores no verso livre tentam provar que as coisas limpas são realmente sujas; tentam sugerir algo de leproso e repulsivo na brancura espessa do leite, ou algo pruriginoso e pestilento sobre o inexplicável crescimento do cabelo. Em resumo, todo o temperamento mudou na temática poética. Mas ele não mudou na temática teológica; e este é o argumento a favor de uma teologia imutável. A teologia católica nada tem a ver com a democracia, a favor ou contra, no sentido de um mecanismo de votação ou da crítica de privilégios políticos particulares. Não está comprometida em apoiar o que Whitman dizia a favor da democracia, ou mesmo o que Jefferson ou Lincoln diziam a favor da democracia. Mas ela está completamente comprometida em contradizer o que o Sr. Mencken diz contra a democracia. Haverá perseguições dioclecianas, haverá cruzadas dominicanas, haverá a ruptura de toda a paz e acordo religiosos, ou mesmo o fim da civilização e do mundo, antes que a Igreja Católica admita que um único idiota, ou um único homem, “não mereça a salvação”.
Descobri assim, na meia idade, esse fato curioso sobre a lição de minha vida, e aquela de toda a minha geração. Todos crescemos com uma convicção comum, iluminada pelas chamas do gênio literário de Rousseau, de Shelley, de Vitor Hugo, encontrando seu irrompimento e deflagração final no universalismo de Walt Whitman. Todos nós aceitamos como coisa natural que todos os nossos descendentes iriam aceitá-la como coisa natural. Eu disse que a descoberta da irmandade parecia com a descoberta da luz do dia; de algo de que os homens não se cansariam. Todavia, mesmo no curto período de minha existência, os homens já dela se cansaram. Não podemos agora apelar ao amor da igualdade como uma EMOÇÃO. Não podemos agora abrir um livro de poemas e esperar que ele seja sobre o amor vitalício entre camaradas, ou o “Amor, amada República, que se alimenta de liberdade e vive.”[1] Percebemos que na maioria dos homens ela morreu, porque era um estado de ânimo e não uma doutrina. E começamos a ponderar muito tarde, ao modo sábio dos anciões, como poderíamos jamais ter tido a expectativa de ela durar na forma de estado de ânimo, se ela não era forte o suficiente para perdurar como uma doutrina. E também começamos a perceber que toda a força real que nela havia, que é a única força que nela permanece, era a força original da doutrina. O que realmente aconteceu foi o seguinte: o homem do século XVIII, muitos deles com uma justa impaciência com padres corruptos e cínicos, dirigiram-se a eles com indignação e disseram: “Bem, suponho que vocês se denominam cristãos; assim vocês não podem realmente NEGAR que os homens sejam irmãos ou que seja nossa obrigação ajudar os pobres.” A própria confiança de seu desafio, o próprio tom marcante da voz revolucionária, vinha do fato de que os cristãos reacionários estavam numa falsa posição como cristãos. A exigência democrática venceu porque pareceu irrespondível. E ela pareceu irrespondível, não porque era irrespondível, mas porque nem mesmo os cristãos decadentes ousaram dar a resposta. O Sr. Mencken estará sempre pronto em nos obsequiar com a resposta.
Ora, foi exatamente aqui, para mim, que a coisa começou a ficar estranha e interessante. Pois, olhando em retrospectiva para crises religiosas mais antigas, penso ver certa coincidência, ou melhor, um conjunto de coisas excessivamente coincidentes para ser considerado uma coincidência. Afinal, quando chego a pensar nisso, todas as outras revoltas contra a Igreja, antes da Revolução e especialmente desde a Reforma, contaram a mesma estranha história. Todo grande herege sempre exibiu a combinação de três extraordinárias características. A primeira é que ele escolhia alguma idéia mística do conjunto harmonioso das idéias místicas da Igreja. A segunda característica é que ele usava aquela única idéia mística contra todas as idéias místicas. A terceira (e a mais singular) é que ele parecia não ter tido nenhuma noção de que sua própria idéia mística favorita era uma idéia mística, pelo menos no sentido de uma idéia misteriosa, dúbia ou dogmática. Com uma estranha e incomum inocência, ele aparentemente sempre considerava esta idéia uma coisa natural. Ele a pressupunha inatacável, mesmo quando ele a estava usando para atacar idéias similares. O exemplo mais popular e óbvio é a Bíblia. A um pagão imparcial ou a um observador cético, esta deve ter sempre parecido a mais estranha história do mundo; que homens invadindo um templo para destruí-lo, destruindo o altar e expulsando o padre, encontraram lá certos volumes sagrados intitulados “Salmos” ou “Evangelhos”; e (invés de jogá-los ao fogo com o resto) começaram a usá-los como oráculos infalíveis para invalidar todos os outros sistemas. Se o altar sagrado e principal está errado, por que os documentos sagrados e secundários estariam certos? Se o padre profanava os Sacramentos, por que não poderia ter profanado as Escrituras? Mesmo assim, demorou muito para que ocorresse àqueles que brandiam esta peça do mobiliário da Igreja para quebrar todo o mobiliário da Igreja, quão profano seria examinar este fragmento do mobiliário. As pessoas se surpreenderam muito, e em algumas partes do mundo ainda estão surpresas, que alguém tenha tido a audácia de fazê-lo.
Mais uma vez, os calvinistas tomaram a idéia católica do absoluto conhecimento e poder de Deus; e a trataram como um truísmo pétreo e irredutível, tão sólido que qualquer coisa poderia sobre ele ser construído, não importando quão esmagador e cruel fosse. Eles estavam tão confiantes na lógica de seu princípio fundamental da predestinação, que torturaram o intelecto e a imaginação com terríveis deduções a respeito de Deus, que pareciam transformá-lo num demônio. Mas nunca pareceu ter-lhes ocorrido que alguém pudesse inesperadamente dizer que não acreditava em demônios. Eles ficaram surpresos quando pessoas rotuladas de “infiéis”, aqui e ali, começaram a dizê-lo. Eles tinham suposto a presciência Divina tão definitiva que ela devia, se necessário, consumar-se através da destruição da misericórdia Divina. Então veio Wesley e a reação contra o calvinismo; os evangélicos apoderaram-se da idéia eminentemente católica de que a humanidade tem o sentido do pecado; e eles perambularam por todo o canto a oferecer a todos alívio de sua misteriosa carga de pecado. É um provérbio, e quase uma piada, que eles se dirigissem a um estranho na rua e se oferecessem para abrandar sua secreta agonia do pecado. Mas raramente pareceu ter-lhes ocorrido, até muito mais tarde, que o homem na rua pudesse responder que ele não desejava ser salvo mais do pecado do que da febre maculosa ou da Dança de São Vito; porque estas coisas não estavam causando-lhe nenhum sofrimento. Eles, por sua vez, ficaram muito surpresos quando o resultado do otimismo de Rousseau e da Revolução começou a se expressar nos homens que alegavam uma felicidade e dignidade puramente humanas; um contentamento com a camaradagem com os de sua espécie; terminando com a feliz vociferação de Whitman de que ele não “perde o sono e chora por seus pecados”.
Ora, a verdade pura e simples é que Shelley, Whitman e os otimistas revolucionários estavam, eles próprios, repetindo tudo novamente. Eles, embora menos conscientemente por causa do caos de sua época, também escolheram da antiga tradição católica uma idéia transcendente particular; a idéia de que há uma dignidade espiritual no homem enquanto homem, e uma obrigação universal de amar o homem enquanto homem. E eles agiram exatamente do mesmo modo extraordinário de seus protótipos, os wesleyanos e calvinistas. Consideraram esta idéia absolutamente auto-evidente como o sol ou a lua; que ninguém poderia jamais destruí-la, embora em nome dela eles destruíssem tudo o mais. Eles insistiam permanentemente em sua divindade humana, em sua dignidade humana e no inevitável amor por todos os seres humanos; como se estas coisas fossem simples fatos naturais. E agora eles estão muito surpresos quando novos e incansáveis realistas irrompem de repente e começam a dizer que um açougueiro com suíças ruivas e uma verruga no nariz não lhes parece particularmente divino ou digno, que não sentem o menor impulso sincero de amá-lo, que poderiam não amá-lo se tentassem, que não reconhecem nenhuma particular obrigação de tentar.
Pode parecer que o processo tenha chegado ao fim, que não haja nada mais a ser extraído pelo realista puro. Mas não é assim; o processo pode continuar. Há ainda formas tradicionais de caridade a que os homens se apegam. Há ainda formas tradicionais de caridade para serem descartadas por eles quando descobrirem que elas são apenas tradicionais. Todos devem ter notado nos mais recentes escritores a sobrevivência de um assaz dolorido modo de piedade. Eles não mais honram todos os homens, como São Paulo e outros democratas místicos. Não seria muito dizer que eles desprezam todos os homens; quase sempre (para fazê-los justiça) inclusive eles mesmos. Mas eles se apiedam, em certo sentido, de todos os homens, e particularmente daqueles que são dignos de piedade; atualmente eles estendem este sentimento quase desproporcionalmente a todos os animais. Essa compaixão pelos homens tem também a mancha de sua conexão histórica com a caridade cristã; e mesmo no caso dos animais, com o exemplo de muitos santos cristãos. Nada indica que um novo recuo de tais religiões sentimentais não libertará os homens até da obrigação de se apiedarem da dor do mundo. Não apenas Nietzsche, mas muitos neo-pagãos seguindo suas idéias, sugeriram tal insensibilidade como a mais alta pureza intelectual. E tendo lido muitos poemas modernos sobre o Homem do Futuro, feito de aço e iluminado com nada mais cálido do que o fogo verde, não tenho dificuldade de imaginar uma literatura que se orgulhasse de um desapego impiedoso e metálico. Então, talvez, fosse vagamente conjeturado que a última das virtudes cristãs morrera. Mas enquanto elas viveram, houve cristãos.
Não creio, portanto, que o humanismo e a religião sejam rivais de mesmo nível. Creio ser uma rivalidade entre o rio e a nascente; ou entre o tição e o fogo. Cada um desses antigos intelectuais tirou um tição do fogo imortal; mas a questão é que embora ele tenha agitado a tocha muito loucamente, embora tivesse usado a tocha para incendiar meio mundo, ela se apagou muito rapidamente. Os puritanos não perpetuaram realmente sua sublime exaltação no desamparo; eles apenas a fizeram impopular. Não olhamos indefinidamente as multidões do Brooklyn com os olhos de Whitman; acabamos, com uma singular rapidez, considerando-as com os olhos de Dreiser. Em resumo, desconfio de experiências espirituais fora da tradição espiritual central; pela simples razão de que penso que elas não duram, mesmo quando conseguem se difundir. Elas perduram, no máximo, por uma geração; comumente pelo período de uma moda; no mínimo, pelo período de uma facção. Não creio que tenham o segredo da continuidade; não, certamente, da continuidade corporativa. A um democrata antiquado e combatente como eu pode se desculpar o emprestar alguma leve importância a esta última questão; aquela relativa à vida ordinária da humanidade. Quantos humanistas supostamente existem entre as massas inferiores dos seres humanos? Serão eles, por exemplo, não mais do que foram os filósofos gregos entre a multidão ordinária dos alegres e politeístas pagãos gregos? Serão eles não mais do que foram os homens concentrados na Cultura e Matthew Arnold, dentre a multidão de seguidores de Manning ou do General Both? Não pretendo, de modo algum, escarnecer do humanismo; penso que compreendo a distinção intelectual que ele faz; e tenho tentado compreendê-lo com um espírito de humildade; mas sinto um débil interesse em quantos da abatida e desnorteada raça humana irão supostamente entendê-la. E pergunto com certo interesse pessoal; pois há trezentos milhões de pessoas no mundo que aceitam os mistérios que eu aceito e vivem a fé que eu professo. Desejo realmente saber se está previsto que haverá trezentos milhões de humanistas na humanidade. O otimista pode dizer que o humanismo será a religião da próxima geração, tal como Comte disse que a humanidade seria o Deus da próxima geração, e tal, em certo sentido, ela foi. Mas não é o Deus desta geração. E a questão é qual será a religião da próxima geração depois desta; o de todas as outras gerações (como diz certa antiga promessa) até o fim do mundo.
O humanismo, no sentido do Sr. Foerster, tem um caráter muito sábio e valioso. Ele está realmente tentando ajuntar as peças, isto é, ajuntar todas as peças. Tudo que foi feito antes era primeiro destruição cega e então seleção aleatória e fragmentária; como se garotos tivessem quebrado uma janela de vidro e feito com os cacos óculos de lentes coloridas, os óculos de lentes cor de rosa do republicano ou os óculos verdes ou amarelos do pessimista e do decadente. Mas o humanismo, como o aqui professado, inclinar-se-á para ajuntar tudo que possa; por exemplo, ele é grande o suficiente para inclinar-se e pegar a jóia da humildade. Matthew Arnold, que fez algo do mesmo porte pelo que ele chamava Cultura, em meados do século XIX, tentou algo parecido pela preservação da castidade; que ele chamava, de um modo muito irritante, “pureza”. Mas antes de considerarmos, seja a Cultura, seja o humanismo, um substituto da religião, há uma questão muito simples que pode ser formulada na forma de uma rústica metáfora. O humanismo pode tentar ajuntar as peças; mas pode ele colá-las? Onde está o cimento que fez da religião uma sociedade e a fez popular, que pode impedi-la de ser desfeita em pedaços num escombro de gostos individuais? O que impede um humanista desejar castidade sem humildade, e outro humildade sem castidade, e ainda outro verdade ou beleza sem ambas? O problema de uma ética ou cultura duradoura consiste em se encontrar um arranjo das peças através do qual elas permaneçam relacionadas como acontece com as pedras de um arco. E eu conheço apenas um esquema que provou assim sua solidez, cavalgando por terras e eras com seus arcos gigantes, e conduzindo o elevado rio do batismo sobre os aquedutos de Roma.
[1] “Love, the beloved Republic, that feeds upon freedom and lives,” no original. Verso do poema Hertha, de Algenon Charles Swinburne. (N. do T.)