G.K. Chesterton
O melhor motivo para o ressurgimento da filosofia é que a menos que um homem tenha uma filosofia, certas coisas horríveis acontecerão a ele. Ele será prático; ele será progressista; ele cultivará a eficiência; ele acreditará na evolução; ele realizará o trabalho dele mais próximo e imediato; ele se devotará a feitos, não a palavras. Assim, atingido por rajadas e mais rajadas de estupidez cega e destino aleatório, ele caminhará trôpego para uma morte miserável, sem nenhum conforto, exceto uma série de slogans; tais como esses que cataloguei acima.
Essas coisas são simples substitutos dos pensamentos. Em alguns casos, eles são pedaços esparsos do pensamento de alguém. Isso significa que um homem que se recusa a ter sua própria filosofia não terá nem mesmo a vantagem de uma fera, a de ser deixado à mercê de seus próprios instintos. Ele terá apenas os esgotados fragmentos de alguma filosofia alheia; o que as feras não precisam herdar; daí sua felicidade.
Os homens sempre têm uma de duas coisas: ou uma completa e consciente filosofia ou uma inconsciente aceitação de fragmentos dispersos de alguma incompleta, devastada e, freqüentemente, desacreditada filosofia. Esses fragmentos dispersos são as frases que eu citei: eficiência, evolução etc. A idéia de ser “prático”, em si mesma, é tudo que resta de um Pragmatismo que não se sustenta. É impossível ser prático sem uma Pragma. E o que aconteceria se você abordasse o próximo homem prático que encontrasse e dissesse ao pobre pateta: “Onde está sua Pragma?” Fazer o trabalho mais próximo e imediato é um nonsense óbvio; mesmo assim, isso é repetido em muitos almanaques. Em noventa por cento dos casos, isso significaria fazer o trabalho a que você menos se adequasse, tal como limpar janelas ou esmurrar um policial.
“Feitos em vez de palavras” é, em si mesmo, um excelente exemplo de “Palavras em vez de pensamentos”. Jogar uma pedra no lago é um feito e mandar um preso para a forca é uma palavra. Mas, há palavras verdadeiramente fúteis; quase inteiramente delas consiste esse tipo de jornalismo científico popular e filosófico.
Alguns têm medo de que a filosofia os entediará ou os confundirá; a razão é que eles não pensam apenas numa série de longas palavras, mas também num novelo de complicadas noções. Essas pessoas deixam de perceber toda a natureza da atual situação. Esses são os males que já existem; principalmente pelo desejo de uma filosofia. Os políticos e os jornais estão sempre usando longas palavras. Não se constitui em uma completa consolação o fato de eles as usarem erradamente. As relações políticas e sociais já são desesperadamente complicadas. Elas são muito mais complicadas do que qualquer página de metafísica medieval; a única diferença é que os medievalistas podiam desembaraçar o novelo e entender as complicações; os modernos não podem. As principais coisas práticas atuais, como corrupção financeira e política, são enormemente complicadas. Nos contentamos em tolerá-las porque nos contentamos em não entendê-las, em vez de compreendê-las. O mundo dos negócios precisa de metafísica – para simplificá-lo.
Eu sei que essas palavras serão recebidas com escárnio, e com a reafirmação mal-humorada de que não é momento para nonsense e paradoxo; e que o que é realmente desejável é um homem prático para ir em frente e limpar toda a bagunça. E um homem prático, sem dúvida, aparecerá, um de uma sucessão interminável de homens práticos; e ele, sem dúvida, irá em frente, e talvez “limpará” alguns milhões para si próprio e deixará uma bagunça maior ainda; tal como os homens práticos anteriores fizeram. A razão é perfeitamente simples. Esse tipo de pessoa excessivamente rude e sem consciência sempre aumenta a confusão; porque ela está à mercê de diferentes motivos ao mesmo tempo; e ele não os distingue. Um homem tem, já totalmente entrelaçado em sua mente, (1) um desejo entusiástico e humano por dinheiro, (2) um desejo pedante e superficial de estar progredindo, ou indo pelo caminho de todo mundo, (3) um desconforto por ser considerado muito velho para se relacionar com os jovens, (4) uma certa quantidade de um vago, mas genuíno, patriotismo ou espírito público, (5) uma incompreensão do erro cometido pelo Sr. H. G. Wells, na forma de um livro sobre a Evolução. Quando um homem tem todas essas coisas dentro de sua cabeça e nem sequer tenta resolvê-las, ele é chamado, pelo consenso e aclamação geral, um homem prático. Mas do homem prático não se pode esperar algum aprimoramento em relação à impraticável confusão; pois, ele não pode sequer organizar a confusão de sua própria mente, o que dizer de sua altamente complexa comunidade e civilização. Por alguma estranha razão, é comum dizer que esse tipo de homem prático “sabe o que faz”. É claro que isso é exatamente o que ele não sabe. Ele pode, em alguns casos felizes, conhecer o que ele quer, como um cachorro ou um bebê de dois anos; mas mesmo assim, ele não sabe o porquê de seu desejo. E é o porquê e o como que deve ser considerado quando estamos elucidando a razão de uma cultura ou tradição ter se tornado tão confusa. O que precisamos, como os antigos entenderam, não é um político que é um negociante, mas um rei que é um filósofo.
Peço desculpas pela palavra “rei”, que não é estritamente necessária no contexto; mas eu sugiro que seria uma das funções do filósofo ponderar sobre tais palavras e determinar se elas têm ou não importância. A República Romana e todos os seus cidadãos tinham um horror enorme da palavra “rei”. Como conseqüência eles inventaram e nos impuseram a palavra “imperador”. Os grandes republicanos que fundaram a América também tinham horror da palavra “rei”; que depois reapareceu com a especial qualificação de um Rei do Ferro, um Rei do Petróleo, um Rei do Porco, ou outros monarcas similares, feitos de materiais semelhantes. O negócio de um filósofo não é necessariamente condenar a inovação ou negar a distinção. Mas é sua tarefa perguntar-se exatamente o que é que ele ou os outros desgostam na palavra “rei”. Se o que ele desgosta é um homem usando um casaco cheio de manchas, feito de pele de um animal chamado arminho, ou um homem que tinha um anel de metal colocado sobre sua cabeça por um clérigo, ele terá de decidir. Se o que ele desgosta é que tal casaco ou tal poder seja passado de pai para filho, ele perguntará se isso ocorre nas condições comerciais correntes. Mas, de qualquer forma, ele terá o hábito de testar a coisa pela reflexão; por meio da idéia de que gosta ou desgosta; e não meramente pelo som da sílaba ou a aparência das letras da palavra.
Filosofia é meramente pensamento que foi cuidadosamente considerado. É, freqüentemente, muito enfadonho. Mas, o homem não tem alternativa, exceto entre ser influenciado pelo pensamento refletido ou ser influenciado pelo pensamento irrefletido. O último é o que comumente chamamos, hoje, de cultura e erudição. Mas o homem é sempre influenciado por pensamento de algum tipo, seu próprio ou de alguém; de alguém que ele confia ou de alguém de quem ele nunca ouviu falar, pensamento de primeira, segunda ou terceira mão; pensamento de lendas esquecidas ou de rumores não confirmados; mas sempre algo com a sombra de um sistema de valores e uma razão para preferência. Um homem testa qualquer coisa por meio de alguma coisa. A questão aqui é se ele alguma vez testa o teste.
Tomarei um exemplo, entre milhares que poderia escolher. Qual é a atitude de um homem comum ao ser informado sobre um evento extraordinário: um milagre? Quero dizer um tipo de coisa que é informalmente chamado de sobrenatural, mas que deveria ser chamado propriamente de preternatural. Pois, a palavra sobrenatural aplica-se somente ao que é mais elevado que o homem; e muitos milagres modernos são como se viessem de um lugar consideravelmente inferior. De qualquer forma, o que os homens modernos dizem quando se confrontam com algo que, aparentemente, não pode ser explicado naturalmente? Bem, a maioria dos homens modernos diz asneira. Quando uma tal coisa é mencionada, em romances e em histórias de jornais ou revistas, o primeiro comentário que se ouve é, “Mas, meu caro amigo, este é o século XX!” Vale a pena ter um pequeno treino em filosofia, se não por outras razões, pelo menos para não parecer tão surpreendentemente idiota. A afirmação tem, no todo, muito menos sentido ou significado do que, “Mas, meu caro amigo, estamos numa tarde de terça-feira.” Se milagres não podem acontecer, eles não acontecem nem no século XX, nem no século XII. Mas se eles podem acontecer, ninguém pode provar que em algum momento determinado eles não possam acontecer. O melhor que pode ser dito para um cético é que ele não pode explicar o que ele quer dizer, e portanto, o que quer que ele queira dizer, ele não pode explicar o que diz. Mas se ele somente quer dizer que se poderia acreditar em milagres no século XII, mas que não se pode acreditar neles no século XX, então, ele está errado novamente, tanto em teoria quanto em fatos. Ele está errado em teoria, porque um inteligente reconhecimento de possibilidades não depende de datas mas de filosofia. Um ateu poderia ter desacreditado em milagre no primeiro século e um místico poderia continuar a acreditar em milagres no século XXI. E ele está errado em fatos, porque há fortes indícios que haverá muito misticismo e um grande número de milagres no século XXI; e há, certamente, um crescente número deles no século XX.
Mas, eu tomei aquela primeira resposta superficial porque há um significado no mero fato de que ela apareça em primeiro lugar; e sua própria superficialidade revela algo do subconsciente. É uma resposta quase automática; e palavras ditas automaticamente são de alguma importância em psicologia. Não sejamos tão severos com o valoroso cavalheiro que informa seu caro interlocutor que este é o século XX. Nas profundezas misteriosas de seu ser, mesmo aquela enorme asneira significa realmente alguma coisa. A questão é que ele não pode explicar o que ele quer dizer; e este é o argumento para uma melhor educação em filosofia. O que ele realmente quer dizer é algo como, “Há uma teoria a respeito desse misterioso universo para a qual mais e mais pessoas ficaram inclinadas durante a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do XIX; e até este ponto pelo menos, essa teoria cresceu com um crescente número de invenções da ciência às quais devemos nossa presente organização – ou desorganização – social. Essa teoria afirma que causa e efeito têm, desde o início, operado numa seqüência ininterrupta como um destino fixo; e que não há nenhuma vontade por atrás ou no interior desse destino; de tal forma que ele deve trabalhar na ausência de tal vontade, como uma máquina deve funcionar sem a presença de um homem. Havia mais pessoas no século XIX que acreditavam nessa particular teoria do universo do que havia no século IX. Eu mesmo acredito nela; e portanto eu, obviamente, não posso acreditar em milagres.” Isso faz completo sentido; mas também faz a contra-afirmação; “Eu não acredito nela; e portanto eu, obviamente, acredito em milagres.”
A vantagem de um hábito filosófico elementar é que ele permite a um homem, por exemplo, entender uma afirmação como esta, “O fato de poder ou não poder haver exceções a um processo depende da natureza do processo.” A desvantagem de não ter esse hábito é que um homem se tornará impaciente mesmo com um truísmo tão simples; e chama-lo-á lixo metafísico. Ele, então, disparará a seguinte afirmação: “Não se podem ter tais coisas no século XX”; o que é realmente um lixo. Mesmo assim, a última afirmação pode ser explicada a ele em termos suficientemente simples. Se um homem vê as águas de um rio caminhando rio abaixo, ano após ano, ele terá razão em considerar, podemos dizer em apostar, que isso acontecerá até que ele morra. Mas, ele não terá razão em dizer que as águas do rio não podem caminhar rio acima, até que ele saiba porque elas correm rio abaixo. Dizer que isso acontece por causa da gravidade responde a questão física mas não a filosófica. Somente se repete que há uma repetição; não se toca na questão mais profunda sobre se essa repetição pode ser alterada por algo proveniente do exterior. E isso depende da existência de algo no exterior. Por exemplo, suponha que um homem tenha visto o rio apenas num sonho. Ele poderia ter sonhado noventa e nove sonhos, sempre se repetindo e sempre com as águas fluindo rio abaixo. Mas, isso não evitaria que o centésimo sonho pudesse mostrar o rio subindo a montanha; porque o sonho é um sonho, e há algo exterior a ele. Mera repetição não prova realidade ou inevitabilidade. Devemos conhecer a natureza da coisa e a causa da repetição. Se a natureza da coisa é uma Criação, e a causa da coisa um Criador, em outras palavras, se a própria repetição é somente a repetição de algo desejado por uma pessoa, então, não é impossível para essa mesma pessoa desejar uma coisa diferente. Se um homem é um idiota para acreditar num Criador, então ele será um idiota para acreditar num milagre; mas não ao contrário. Ao contrário, ele é simplesmente um filósofo que é consistente com sua filosofia.
Um homem moderno é livre para escolher qualquer uma das filosofias. Mas, a verdadeira questão do homem moderno é que ele não conhece nem mesmo sua própria filosofia, mas somente sua própria fraseologia. Ele pode somente responder à próxima mensagem produzida pelo espiritualista, ou à próxima cura atestada por doutores em Lourdes, com a repetição do que são, geralmente, nada mais que frases; ou são, na melhor das hipóteses, preconceitos.
Assim, quando um brilhante homem como o Sr. H. G. Wells diz que tais idéias sobrenaturais se tornaram impossíveis para “pessoas inteligentes”, ele não está (neste caso) falando como uma pessoa inteligente. Em outras palavras, ele não está falando como um filósofo; porque ele não está nem mesmo dizendo o que ele quer dizer. O que ele quer dizer não é “impossível para homens inteligentes”, mas, “impossível para monistas inteligentes”, ou, “impossível para deterministas inteligentes”. Mas, não é uma negação da inteligência afirmar qualquer concepção lógica e coerente de um mundo tão misterioso. Não é uma negação da inteligência pensar que toda experiência é um sonho. Não é pouco inteligente pensá-la como uma ilusão, como alguns budistas fazem; muito menos pensá-la com um desejo criativo, como fazem os cristãos. Estamos sempre ouvindo que os homens não devem manter as divisões tão pronunciadas de suas religiões. Como um passo imediato em direção ao progresso, é mais urgente que eles sejam mais claros e mais pronunciadamente divididos em suas diferentes filosofias.
Publicado por The American Chesterton Society
09/07/2006
O Ressurgimento da Filosofia – Por quê?
02/07/2006
Dawkins está errado
Roger Scruton
Face ao espetáculo de crueldades perpetradas em nome da fé, Voltaire bradou o famoso “Ecrasez l’infâme!” Numerosos pensadores iluministas o seguiram, declarando que a religião organizada é inimiga da raça humana, a força que divide o crente do infiel, com isso, tanto excitando quanto autorizando o assassínio. Richard Dawkins, cuja série de TV “A raiz do mal?” exibe seu último capítulo na próxima segunda-feira[1], é o mais influente exemplo dessa tradição. E ele a está embelezando com sua própria e surpreendente teoria – a teoria da “meme” religiosa. Uma meme é uma entidade mental que coloniza o cérebro das pessoas, de forma similar a que um vírus coloniza uma célula. A meme explora seu hospedeiro para se reproduzir, difundindo-se de cérebro a cérebro, como a meningite, e destruindo os poderes de seu competidor – o argumento racional. Como os gêneros e as espécies, as memes são indivíduos darwinianos, cujo sucesso ou fracasso depende de suas habilidades em encontrar um nicho ecológico que propicie a reprodução. Tal é a natureza do “óleo gerin,”[2] como Dawkins descreve, depreciativamente, a religião.
Essa analogia com a teoria biológica da reprodução tem uma qualidade espantosa. Ela parece explicar o extraordinário poder de sobrevivência do nonsense e o constante “adormecimento da razão” que, na gravura de Goya, convida os monstros. Frente a uma página de Derrida – e sabendo que tal idiotice está sendo lida e reproduzida em milhares de campi americanos – tenho sido, constantemente, tentado pela teoria da meme. A página em minhas mãos é, claramente, o produto de um cérebro doente e a doença é infecciosa, em altíssimo grau: o próprio Derrida admitiu isso quando se referiu ao “vírus desconstrutivo”.
Apesar de tudo, não estou inteiramente persuadido por essa analogia genética. A teoria de que as idéias têm a tendência de se propagar, apropriando-se da energia do cérebro que as hospeda, lembra o perito médico de Molière (Le malade imaginaire) que explicava o fato de o ópio induzir ao sono, referindo-se ao seu virtus domitiva. A coisa só parece uma explicação quando “lemos” nas alegadas causas, as distintas características de seus efeitos, imaginando idéias como entidades cuja existência depende, como a dos gêneros e espécies, da reprodução.
Contudo, concedamos a Dawkins a tentativa de formulação de uma teoria. Devemos ainda lembrar que nem todo organismo dependente destrói seu hospedeiro. Além dos parasitas, há também os simbiantes e os mutualistas – invasores que, ou não impedem, ou mesmo amplificam as possibilidades reprodutivas do hospedeiro. Como classificar a religião? Por que ela tem sobrevivido, se não confere nenhum benefício aos seus adeptos? E o que acontece com as sociedades que se vacinam contra a infecção – a sociedade soviética, por exemplo, ou a Alemanha nazista –, experimentaram elas um ganho em seu potencial reprodutivo? É claro que muito mais pesquisa será necessária se formos apoiar firmemente uma vacinação em massa em vez de (minha opção preferida) respaldar a religião, que parece muito mais adequada a moderar nossos instintos beligerantes, e que, fazendo isso, nos pede para perdoar a quem nos ofende e, humildemente, reparar nossas faltas.
Assim, há memes más e memes boas. Usemos a matemática como exemplo. Ela se propaga através dos cérebros humanos porque é verdadeira; indivíduos inteiramente “a-matemáticos” – que não conseguem contar, subtrair ou multiplicar – não têm filhos, pela simples razão de que eles cometem erros fatais antes disso. A matemática é um mutualista real. O mesmo não é verdade sobre a má matemática, é claro; mas má matemática não sobrevive, precisamente porque ela destrói o cérebro em que se hospeda.
Talvez a religião, a esse respeito, seja como a matemática: sua sobrevivência tem algo a ver com a verdade. Não é uma verdade literal, é claro, nem uma verdade integral. De fato, a verdade de uma religião está menos no que é revelado em suas doutrinas, do que no que é ocultado em seus mistérios. As religiões não revelam seus significados diretamente porque elas não podem fazê-lo; seus significados têm de ser alcançados por adoração e oração, e por uma vida de obediência silenciosa. No entanto, verdades ocultas são ainda verdades; e talvez possamos ser guiados por elas tal como o somos pelo sol, contanto que para ele não olhemos diretamente. O contato direto com a verdade religiosa seria como o encontro de Semele com Zeus, uma conflagração súbita.
Para Dawkins, a idéia de uma verdade puramente religiosa não tem valor algum. Os mistérios da religião, ele diria, existem para vetar todo o questionamento, dando à religião uma vantagem em relação à ciência, na luta pela sobrevivência. De qualquer forma, por que há tantos competidores dentre as religiões, se elas estão competindo pela verdade? Não deveriam as falsas ter desaparecido, como acontece às teorias científicas refutadas? E como a religião aprimora o espírito humano, quando ela parece autorizar os crimes, agora, cometidos por mussulmanos e que são apenas sombras dos crimes espalhados pela Europa quando da Guerra dos Trinta Anos?
Essas são grandes questões, irrespondíveis em um programa de TV, por isso, eis um esboço das minhas respostas. As religiões sobrevivem e florescem porque são um convite ao espírito de grupo – elas promovem os costumes, as crenças e os rituais que unem as gerações numa forma de vida compartilhada e semeiam as sementes do respeito mútuo. Como todas as formas de vida social, elas são inflamadas nas fronteiras, onde competem por territórios com outras profissões de fé. Culpar as religiões pelas guerras conduzidas em seu nome é, no entanto, como culpar o amor pela guerra de Tróia. Todos os motivos humanos, mesmo os mais nobres, alimentarão as chamas do conflito quando reunidos pelo “imperativo territorial” – isso também nos ensinou Darwin, e Dawkins, certamente, deve tê-lo notado. Livre-se da religião, como os nazistas e comunistas fizeram, e você nada faz para suprimir a procura por Lebensraum. Você, simplesmente, remove a principal força de misericórdia no coração humano ordinário e faz, assim, a guerra impiedosa; o ateísmo descobriu sua prova em Estalingrado.
Há uma tendência, alimentada pelo sensacionalismo televisivo, de julgar todas as instituições humanas pelo seu comportamento em tempos de conflito. A religião, como o patriotismo, tem uma imagem negativa entre aqueles para quem a guerra é a única realidade humana, a única ocasião em que o Outro, em todos nós, é perceptível. Mas o teste real de uma instituição humana é o período de paz. A paz é tediosa, cotidiana e, também, cansativa na televisão. Mas, você pode aprender sobre ela nos livros. Aqueles criados na fé cristã sabem que a capacidade do cristianismo em manter a paz no mundo ao nosso redor reflete seu dom de paz interior. Numa sociedade cristã não há necessidade de Asbos[3] e num mundo pós-religioso elas não farão nenhum bem – elas estarão em sua última e desesperada tentativa de nos salvar dos efeitos da ausência do sagrado, e a tentativa está fadada ao fracasso.
Os mussulmanos dizem coisas parecidas, assim como os judeus – na realidade, todos que possuem a verdade. Mas, como saber? Bem, nós não sabemos, nem precisamos saber. Toda a fé depende da revelação, e a prova da revelação está na paz que ela traz. Argumentos racionais só nos podem trazer até aqui, em elevar a fé monoteísta acima de um mundo enlameado de superstições. Podem nos ajudar a entender a diferença real entre a fé que nos exige que perdoemos nossos inimigos e aquela que nos exige que os esfolemos. Mas o salto da fé propriamente dita – o colocar sua vida a serviço de Deus – é um salto sobre o limite da razão. Isso não o faz irracional, tanto quanto se apaixonar não é irracional. Ao contrário, é a submissão do coração a um ideal, e uma aposta no amor, na paz e no perdão que Dawkins está, também, procurando, pois ele, como o resto de nós, foi feito desta mesmíssima forma.
Artigo publicado no The Spectator
[1] Este artigo foi escrito em 12/01/2006. (N. do T.)
[2] Droga alucinógena, altamente viciante. (N. do T.)
[3] Asbo – anti-social behaviour order (ordem anti-social) – ordem judicial, do sistema judicial escocês e inglês, emitida contra uma pessoa que supostamente tenha tido uma conduta anti-social. (N. do T.)
Face ao espetáculo de crueldades perpetradas em nome da fé, Voltaire bradou o famoso “Ecrasez l’infâme!” Numerosos pensadores iluministas o seguiram, declarando que a religião organizada é inimiga da raça humana, a força que divide o crente do infiel, com isso, tanto excitando quanto autorizando o assassínio. Richard Dawkins, cuja série de TV “A raiz do mal?” exibe seu último capítulo na próxima segunda-feira[1], é o mais influente exemplo dessa tradição. E ele a está embelezando com sua própria e surpreendente teoria – a teoria da “meme” religiosa. Uma meme é uma entidade mental que coloniza o cérebro das pessoas, de forma similar a que um vírus coloniza uma célula. A meme explora seu hospedeiro para se reproduzir, difundindo-se de cérebro a cérebro, como a meningite, e destruindo os poderes de seu competidor – o argumento racional. Como os gêneros e as espécies, as memes são indivíduos darwinianos, cujo sucesso ou fracasso depende de suas habilidades em encontrar um nicho ecológico que propicie a reprodução. Tal é a natureza do “óleo gerin,”[2] como Dawkins descreve, depreciativamente, a religião.
Essa analogia com a teoria biológica da reprodução tem uma qualidade espantosa. Ela parece explicar o extraordinário poder de sobrevivência do nonsense e o constante “adormecimento da razão” que, na gravura de Goya, convida os monstros. Frente a uma página de Derrida – e sabendo que tal idiotice está sendo lida e reproduzida em milhares de campi americanos – tenho sido, constantemente, tentado pela teoria da meme. A página em minhas mãos é, claramente, o produto de um cérebro doente e a doença é infecciosa, em altíssimo grau: o próprio Derrida admitiu isso quando se referiu ao “vírus desconstrutivo”.
Apesar de tudo, não estou inteiramente persuadido por essa analogia genética. A teoria de que as idéias têm a tendência de se propagar, apropriando-se da energia do cérebro que as hospeda, lembra o perito médico de Molière (Le malade imaginaire) que explicava o fato de o ópio induzir ao sono, referindo-se ao seu virtus domitiva. A coisa só parece uma explicação quando “lemos” nas alegadas causas, as distintas características de seus efeitos, imaginando idéias como entidades cuja existência depende, como a dos gêneros e espécies, da reprodução.
Contudo, concedamos a Dawkins a tentativa de formulação de uma teoria. Devemos ainda lembrar que nem todo organismo dependente destrói seu hospedeiro. Além dos parasitas, há também os simbiantes e os mutualistas – invasores que, ou não impedem, ou mesmo amplificam as possibilidades reprodutivas do hospedeiro. Como classificar a religião? Por que ela tem sobrevivido, se não confere nenhum benefício aos seus adeptos? E o que acontece com as sociedades que se vacinam contra a infecção – a sociedade soviética, por exemplo, ou a Alemanha nazista –, experimentaram elas um ganho em seu potencial reprodutivo? É claro que muito mais pesquisa será necessária se formos apoiar firmemente uma vacinação em massa em vez de (minha opção preferida) respaldar a religião, que parece muito mais adequada a moderar nossos instintos beligerantes, e que, fazendo isso, nos pede para perdoar a quem nos ofende e, humildemente, reparar nossas faltas.
Assim, há memes más e memes boas. Usemos a matemática como exemplo. Ela se propaga através dos cérebros humanos porque é verdadeira; indivíduos inteiramente “a-matemáticos” – que não conseguem contar, subtrair ou multiplicar – não têm filhos, pela simples razão de que eles cometem erros fatais antes disso. A matemática é um mutualista real. O mesmo não é verdade sobre a má matemática, é claro; mas má matemática não sobrevive, precisamente porque ela destrói o cérebro em que se hospeda.
Talvez a religião, a esse respeito, seja como a matemática: sua sobrevivência tem algo a ver com a verdade. Não é uma verdade literal, é claro, nem uma verdade integral. De fato, a verdade de uma religião está menos no que é revelado em suas doutrinas, do que no que é ocultado em seus mistérios. As religiões não revelam seus significados diretamente porque elas não podem fazê-lo; seus significados têm de ser alcançados por adoração e oração, e por uma vida de obediência silenciosa. No entanto, verdades ocultas são ainda verdades; e talvez possamos ser guiados por elas tal como o somos pelo sol, contanto que para ele não olhemos diretamente. O contato direto com a verdade religiosa seria como o encontro de Semele com Zeus, uma conflagração súbita.
Para Dawkins, a idéia de uma verdade puramente religiosa não tem valor algum. Os mistérios da religião, ele diria, existem para vetar todo o questionamento, dando à religião uma vantagem em relação à ciência, na luta pela sobrevivência. De qualquer forma, por que há tantos competidores dentre as religiões, se elas estão competindo pela verdade? Não deveriam as falsas ter desaparecido, como acontece às teorias científicas refutadas? E como a religião aprimora o espírito humano, quando ela parece autorizar os crimes, agora, cometidos por mussulmanos e que são apenas sombras dos crimes espalhados pela Europa quando da Guerra dos Trinta Anos?
Essas são grandes questões, irrespondíveis em um programa de TV, por isso, eis um esboço das minhas respostas. As religiões sobrevivem e florescem porque são um convite ao espírito de grupo – elas promovem os costumes, as crenças e os rituais que unem as gerações numa forma de vida compartilhada e semeiam as sementes do respeito mútuo. Como todas as formas de vida social, elas são inflamadas nas fronteiras, onde competem por territórios com outras profissões de fé. Culpar as religiões pelas guerras conduzidas em seu nome é, no entanto, como culpar o amor pela guerra de Tróia. Todos os motivos humanos, mesmo os mais nobres, alimentarão as chamas do conflito quando reunidos pelo “imperativo territorial” – isso também nos ensinou Darwin, e Dawkins, certamente, deve tê-lo notado. Livre-se da religião, como os nazistas e comunistas fizeram, e você nada faz para suprimir a procura por Lebensraum. Você, simplesmente, remove a principal força de misericórdia no coração humano ordinário e faz, assim, a guerra impiedosa; o ateísmo descobriu sua prova em Estalingrado.
Há uma tendência, alimentada pelo sensacionalismo televisivo, de julgar todas as instituições humanas pelo seu comportamento em tempos de conflito. A religião, como o patriotismo, tem uma imagem negativa entre aqueles para quem a guerra é a única realidade humana, a única ocasião em que o Outro, em todos nós, é perceptível. Mas o teste real de uma instituição humana é o período de paz. A paz é tediosa, cotidiana e, também, cansativa na televisão. Mas, você pode aprender sobre ela nos livros. Aqueles criados na fé cristã sabem que a capacidade do cristianismo em manter a paz no mundo ao nosso redor reflete seu dom de paz interior. Numa sociedade cristã não há necessidade de Asbos[3] e num mundo pós-religioso elas não farão nenhum bem – elas estarão em sua última e desesperada tentativa de nos salvar dos efeitos da ausência do sagrado, e a tentativa está fadada ao fracasso.
Os mussulmanos dizem coisas parecidas, assim como os judeus – na realidade, todos que possuem a verdade. Mas, como saber? Bem, nós não sabemos, nem precisamos saber. Toda a fé depende da revelação, e a prova da revelação está na paz que ela traz. Argumentos racionais só nos podem trazer até aqui, em elevar a fé monoteísta acima de um mundo enlameado de superstições. Podem nos ajudar a entender a diferença real entre a fé que nos exige que perdoemos nossos inimigos e aquela que nos exige que os esfolemos. Mas o salto da fé propriamente dita – o colocar sua vida a serviço de Deus – é um salto sobre o limite da razão. Isso não o faz irracional, tanto quanto se apaixonar não é irracional. Ao contrário, é a submissão do coração a um ideal, e uma aposta no amor, na paz e no perdão que Dawkins está, também, procurando, pois ele, como o resto de nós, foi feito desta mesmíssima forma.
Artigo publicado no The Spectator
[1] Este artigo foi escrito em 12/01/2006. (N. do T.)
[2] Droga alucinógena, altamente viciante. (N. do T.)
[3] Asbo – anti-social behaviour order (ordem anti-social) – ordem judicial, do sistema judicial escocês e inglês, emitida contra uma pessoa que supostamente tenha tido uma conduta anti-social. (N. do T.)
30/06/2006
Artigo meu no Mídia Sem Máscara
Saiu hoje (30/06/2006) um artigo meu no sítio do Mídia Sem Máscara intitulado "O domínio do homem sobre a natureza". Seu link é http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=5016 .
Sugiro que se leia antes o artigo de Sowell (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=5008) juntamente com os artigos cujos links estão nele sugeridos.
Sugiro que se leia antes o artigo de Sowell (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=5008) juntamente com os artigos cujos links estão nele sugeridos.
22/06/2006
O que aconteceu com a Razão?
Roger Scruton
O iluminismo tornou explícito o que já estava, há muito tempo, implícito na vida intelectual da Europa: a crença de que a inquirição racional leva à verdade objetiva. Mesmo aqueles pensadores iluministas que desconfiavam da razão, como Hume, e aqueles que tentavam restringir seu poder, como Kant, nunca abandonaram a confiança no argumento racional. Hume se opunha à idéia da moralidade racional; mas ele justificava a distinção entre o certo e o errado em termos da ciência natural das emoções, ficando implícito que poderíamos descobrir a verdade sobre a natureza humana e fazer desta verdade uma firme fundação sobre a qual construir. Kant pode ter rebaixado a “razão pura” a um tecido de ilusões, mas ele elevou, em seu lugar, a razão prática, defendendo a validade absoluta da lei moral. Nos 200 anos subseqüentes, a razão manteve sua posição de árbitro da verdade e fundação do conhecimento objetivo.
A razão está agora se retraindo, tanto como um ideal quanto como uma realidade. O seu lugar tem sido tomado pela “visão desde fora” – que coloca em questão nossa tradição inteira. O apelo à razão, nos avisam, é um mero apelo à cultura Ocidental, que fez da razão sua pedra-de-toque e uma petição à objetividade que nenhuma cultura poderia possuir. Além do mais, considerando a razão sua fundamentação, a cultura Ocidental ocultou seu pernicioso etnocentrismo; ela revestiu o pensamento Ocidental como se ele tivesse força universal. A razão, portanto, é uma mentira, e pela exposição da mentira, revelamos a opressão no coração da cultura Ocidental. Por trás do ataque à razão nos espreita uma outra (e mais virulenta) hostilidade: a hostilidade à cultura e ao currículo que herdamos do Iluminismo.
Se examinarmos os gurus do novo establishment universitário, aqueles cujos trabalhos são mais freqüentemente citados no interminável fluxo de artigos, devotados a desbancar a cultura Ocidental, descobriremos que eles são todos oponentes da verdade objetiva. Nietzsche é um dos favoritos, pois ele afirmou explicitamente: “Não existe verdade, somente interpretações.” Mas, ou o que disse Nietzsche é verdade – e, neste caso, não é verdade, pois não existem verdades – ou o que ele disse é falso. Prova suficiente, você imaginaria. Mas, não: essa afirmação pode ser feita de forma menos burlesca e o paradoxo, ocultado. Isso explica a atração dos pensadores posteriores – Michel Foucault, Jacques Derrida e Richard Rorty – que devem sua eminência intelectual não a seus argumentos (que são muito poucos), mas a seus papéis em dar autoridade à rejeição da autoridade, e ao absoluto compromisso deles com a impossibilidade de compromissos absolutos. Em cada um deles você descobrirá a visão de que a verdade, a objetividade, o valor e o significado são quiméricos e que tudo que você pode ter, e tudo que você necessita ter é a cálida segurança de sua própria opinião.
É vão argumentar contra esses gurus. Nenhum argumento, por mais racional que seja, pode conter o enorme desejo em acreditar, que inebria seus leitores normais. Afinal, um argumento racional pressupõe exatamente o que eles questionam – ou seja, a possibilidade do argumento racional. Pelo menos um deles – Michel Foucault – foi o personagem de uma hagiografia, Santo Foucault de David Halperin, pela mensagem libertadora contida em seu ataque à estrutura do pensamento. Mas, cada um deles deve sua reputação a uma nova espécie de fé religiosa: a fé na relatividade das opiniões, incluindo esta.
A verdade, Foucault nos ensina, não é um absoluto, que pode ser compreendido e avaliado de alguma forma trans-histórica, como se fosse através dos olhos de Deus. A verdade é cria do “discurso”, e como o discurso muda, assim acontece com a verdade nele contida. O que significa o termo “discurso”? Consulte qualquer periódico acadêmico na área das humanidades e você o encontrará em meio a milhares de debates artificiais: “Falocentrismo Ocidental e o discurso do gênero,” “O discurso da supremacia branca nos romances de Conrad,” “O discurso de exclusão: uma perspectiva homossexual” etc. Pela descrição dos argumentos como “discurso”, você os desmascara, tendo acesso ao estado mental de onde eles surgem. Você não confronta mais a verdade ou a razoabilidade da opinião do outro, mas se engaja diretamente com a força social que fala por meio dele. A questão não é mais “O que você está dizendo?”, mas “De onde você está falando?” Este é o triunfo de Foucault, fornecer uma palavra que nos capacitaria a re-anexar todo pensamento ao seu contexto e fazer o contexto mais importante do que o pensamento.
O discurso, para Foucault, é o produto de uma época e existe em virtude do “poder” social prevalecente. É o que Marx chamou de “ideologia”: uma coleção de idéias que não tem autoridade própria, mas que despista e mistifica a realidade social. A verdade não contém nada mais do que o poder que a considera conveniente; e pelo desmascaramento do poder, nós “desestabelecemos” a verdade. Em qualquer época, há aqueles que refutam o discurso prevalecente. Estes são denunciados, marginalizados – e mesmo encarcerados como loucos. São deles a voz da não-razão, e, para os detentores da autoridade, o que eles proferem não é verdade, mas delírio. Contudo, afirma Foucault claramente, não há nada de objetivo nessas denúncias de loucura: não é nada além de um dispositivo pelo qual o poder estabelecido, o poder da ordem burguesa, se sustenta, salvaguardando sua própria “verdade” contra o discurso rival que a rejeita.
Foucault e seus discípulos generalizam esse argumento, sugerindo que a visão tradicional do homem, da família, das relações sexuais e da moral sexual, não tem nenhuma autoridade além do poder que a sustenta. Nos três volumes de sua História da Sexualidade, Foucault dá um passo além. O prazer sexual, ele defende, não é intrinsecamente problemático; não há nenhuma razão em controlá-lo ou suprimi-lo. Se o sexo é “problematizado,” para se proibir alguns prazeres e encorajar outros, isto é, na verdade, um curioso fato social, que pode ser explicado, mas nunca justificado. Ele descreve seu próprio estudo do sexo, tomando emprestado o termo de Nietzsche, como uma “genealogia” das morais – uma explicação das crenças que, por não terem nenhuma validade ou verdade intrínseca, devem ser explicadas em termos de seu contexto social, e, portanto, só assim justificadas.
Tal panorama foi extremamente útil para Foucault, cuja homossexualidade descontrolada não sofreria nenhuma censura. Sua morte, causada pela AIDS, trouxe um fim a sua predação sexual. Mas, não limitou sua influência: pelo contrário, corou seu pensamento com um halo de correção política. Foucault não era somente um advogado dos prazeres imediatos, mas um mártir deles. Ainda assim, essa aura de virtude não deve nos levar a aceitar sua desmistificação da moralidade sexual. Pois, a “genealogia” de Foucault não distingue entre causa e efeito. Por mais que Foucault diga ao contrário, a verdade objetiva poderia indicar que as realizações pessoais e da sociedade humana fossem mais facilmente garantidas pelo casamento heterossexual do que pela transgressão sexual, e que o capital político e cultural de uma época fosse mais facilmente transferido onde as pessoas criassem (educassem) suas crianças em seus lares. Em vez de ser efeito do poder social, a velha moralidade poderia bem ser sua causa. Sobre isso – causa e efeito – o diagnóstico de Foucault nada diz. A suposição é que, ao ligar uma crença ao poder daqueles que a sustentam, a alegação de validade se desfaz. Mas, essa suposição pode ser a oposição polar da verdade.
Tão popular – e pelas mesmas razões – quanto à análise foucaultiana do poder é a técnica da desconstrução, associada a Jacques Derrida. Ninguém sabe – ou pelo menos ninguém ainda explicou – o que é desconstrução. Mas, sua própria obscuridade constitui a maior parte de seu apelo. Ao oferecer enorme quantidade de nonsense, o desconstrucionista é capaz de fortalecer sua suposição fundamental: que a significação é impossível. Não existe tal coisa como a significação objetiva, decifrável de uma palavra ou argumento. No jargão oficial, não há “significado transcendental.” Cada palavra, uma vez proferida, é cativa à interpretação e a decisão de interpretar a palavra de uma forma ou de outra é, em última análise, política – as únicas questões reais são aquelas proferidas por Lênin: Quem? e A quem? Quem está interpretando e contra que vítima? Se os Homens Brancos Antepassados monopolizaram a interpretação de Jane Austen, por exemplo, há alguma surpresa no fato de que as leituras “oficiais” dos romances de Austen não reconheçam algum lugar real às mulheres e às suas aspirações? Há alguma surpresa em que esses romances são construídos como vingança, em vez de repúdio, ao casamento burguês? Confrontados por um texto do cânon tradicional, podemos proceder à sua desconstrução como quisermos, pois, as únicas restrições a que estamos submetidos são aquelas que escolhemos. A crítica desconstrucionista é como as produções modernas do teatro tradicional: o texto é lido contra si próprio, de forma a significar qualquer coisa que o crítico ou produtor escolher. E, invariavelmente, o propósito é político: desbancar as velhas autoridades, em nome da liberação.
O “pragmatismo” de Richard Rorty opera de forma similar, alcançando conclusões políticas inevitáveis pela repetição de um truque de prestidigitador. Mas, como o pragmatismo é um produto nativo americano, com uma respeitável história, as pessoas, nem sempre, devotam a ele a suspeita que ele, agora (graças a Rorty), merece. Vale a pena, portanto, examinar suas credenciais subversivas.
O pragmatismo, simplificadamente, é a visão de que “verdadeiro” significa “útil.” A crença mais útil é aquela que me dá o melhor apoio no mundo: a crença que, quando colocada em funcionamento, tem a maior chance de sucesso. Obviamente, essa não é uma caracterização suficiente para distinguir a verdade da falsidade. Qualquer um que anseie por uma carreira em uma universidade americana descobrirá que as crenças feministas são úteis, assim como as crenças racistas o foram para o apparatchik universitário da Alemanha nazista. Mas, isso dificilmente mostra que essas crenças sejam verdadeiras.
Então, o que, realmente, queremos dizer com termo “útil”? Uma sugestão é esta: uma crença é útil quando é parte de uma teoria de sucesso. Mas uma teoria de sucesso é a que faz predições verdadeiras. Assim, estamos andando em círculos, definindo a verdade por meio da utilidade e a utilidade por meio da verdade. De fato, é difícil encontrar um pragmatismo plausível que não se reduza a isto: que uma proposição verdadeira é aquela que é útil de uma forma que a verdadeira proposição seja útil. Impecável, mas lacunar.
A ameaça da vacuidade não detém Rorty, que vê o pragmatismo como uma arma contra a velha idéia da razão. Mesmo que ele fracasse miseravelmente em sua tentativa de dizer o que seja realmente o pragmatismo, esse fracasso não preocupa seus discípulos, que o usa a seu favor, como usaram a vacuidade da “genealogia” foucaultiana das morais e o impenetrável nonsense da desconstrução. É suficiente que Rorty invoque seu pragmatismo como um tipo de encantamento mágico contra a velha idéia da razão e a favor da causa do relativismo cultural. É isso que o qualifica para o cargo de guru em nossos departamentos de humanidades.
Em suas palavras: “Os pragmatistas vêem a verdade como ... o que seja bom acreditar ... Eles vêem o espaço entre verdade e justificação não como algo a ser transposto por meio do isolamento de um tipo de racionalidade natural e trans-cultural que pode ser usada para criticar certas culturas e elogiar outras, mas, simplesmente, como um espaço entre o bom real e o melhor possível ... Para os pragmatistas, o desejo de objetividade não é o desejo de escapar das limitações da própria comunidade, mas, simplesmente, o desejo de acordo intersubjetivo tão grande quanto possível, o desejo de estender a referencia ‘nós’ tanto quanto pudermos.” Em outras palavras, o pragmatismo nos habilita a rejeitar a idéia da “racionalidade trans-cultural.” Não há lugar para as velhas idéias de objetividade e verdade universal; tudo o que importa é sobre o que concordamos.
Mas, quem somos nós? E com que concordamos? Volte aos ensaios de Rorty e você logo descobrirá. “Nós” somos todos feministas, esquerdistas, promotores da liberação gay e do currículo aberto; “nós” não acreditamos em Deus ou em qualquer religião herdada; nem as velhas idéias de autoridade, ordem e autodisciplina têm algum peso para “nós”. Não estamos limitados por nada, além da comunidade a que escolhemos pertencer. E porque não há verdade objetiva, mas somente nosso próprio consenso auto-engendrado, nossa posição é inacessível desde um ponto exterior. O pragmatista pode não somente decidir o que pensar; ele pode se proteger de qualquer um que não pense como ele.
Um verdadeiro pragmatista inventará, sem dúvida, a história, assim como ele inventa tudo o mais, persuadindo-“nos” a concordar com ele. No entanto, vale a pena dar uma olhada na história, senão por outras razões, pelo menos para ver o quão paradoxal e perigoso é a visão de Rorty sobre intelecto humano. O ummah islâmico – a sociedade de todos os crentes – era, e permanece sendo, o mais extenso consenso que o mundo já conheceu. Ele, expressamente, reconhece o consenso (ijma) como um critério de, e de fato um substituto para, a verdade, e está engajado num permanente empreendimento de incluir, tantos quanto possíveis, na sua totalizante primeira pessoa do plural. Além do mais, qualquer que seja, para Rorty, o significado de crenças “boas” ou “melhores”, o mussulmano pio deve, certamente, acreditar que ele tem simplesmente as melhores: crenças que trazem segurança, estabilidade, felicidade, um apoio no mundo, e uma consciência tranqüila quando se explode os kafirs, que pensam de maneira diferente.
Mas, mesmo assim, não fica aquele sentimento desconfortável de que alguma coisa nessas crenças, que aquecem os corações, possa não ser verdadeira, e que as lânguidas opiniões do ateu pós-moderno possam ter algo a ver com isso? Pelo que afirma o pragmatismo de Rorty, isso não é algo que se possa dizer. Afinal, os ateus pós-modernos, diferentemente dos pios mulssulmanos, não compõem uma comunidade – nem mesmo uma comunidade imaginária. Eles não têm nenhum credo ou catecismo, nenhum texto sagrado, nenhum consenso estabelecido. Mesmo assim, Rorty é um ateu pós-moderno. Por quê? Não porque ele pertença a uma comunidade de incrédulos, mas porque ele pensa que o ateísmo é verdadeiro. O pragmatismo que coloca o consenso no lugar da verdade é, no fim e ao cabo, uma fraude.
Em seus próprios olhos, o Iluminismo envolve a celebração de valores universais de uma natureza humana comum. A arte do Iluminismo percorre outros lugares, outros tempos e outras culturas, numa tentativa heróica de justificar uma visão do homem como livre a auto-criado. Esta visão inspirava e era inspirada pelo velho currículo, cujo questionamento tem sido a principal preocupação da universidade pós-moderna. Essa preocupação explica a popularidade de outro guru relativista – Edward Said, cujo livro Orientalismo mostra como desqualificar o próprio Iluminismo como uma forma de imperialismo cultural. O Oriente aparece na arte e literatura Ocidental, diz Said, como algo exótico, irreal, teatral, e portanto frívolo. Longe de ser um generoso reconhecimento de outras culturas, o orientalismo da arte iluminista européia é uma tentativa de apequená-las, de reduzi-las a episódios decorativos no interior do progresso do imperium Ocidental.
O argumento de Said anda de mãos dadas com aqueles que fundamentam o currículo multicultural. O velho currículo, um produto do Iluminismo, é, eles nos dizem, monocultural, devotado à perpetuação da visão da Civilização Ocidental como inerentemente superior às suas rivais. É também patriarcal, produto do Homem Europeu Antepassado, que, há muito, perdeu toda a sua autoridade. E sua suposição de uma perspectiva racional universal, lugar de onde toda a humanidade pode ser estudada, não é nada mais que a racionalização de suas ambições imperialistas. Em contraste, nós, que vivemos no ambiente amorfo e multicultural da cidade pós-moderna, devemos abrir nossos corações e mentes para todas as culturas e não nos ater a nenhuma delas. O resultado inescapável disso é o relativismo: o reconhecimento de que nenhuma cultura nos chama mais a atenção, e que nenhuma cultura pode ser julgada ou desqualificada desde fora.
Mas, uma vez mais, há um paradoxo. Pois, aqueles que advogam essa perspectiva multicultural são, via de regra, veementes na desqualificação da cultura Ocidental. Said não é exceção. Ao mesmo tempo que está nos exortando a julgar outras culturas em seus próprios termos, ele está nos pedindo para julgar a cultura Ocidental do ponto de vista externo – compará-la com as alternativas e julgá-la, adversamente, como etnocêntrica e racista.
Mas, as críticas feitas à cultura Ocidental confirmam, realmente, a verdade do que é criticado. É graças ao Iluminismo e sua visão universal dos valores humanos que a igualdade racial e sexual exerce sobre nosso senso comum um tal apelo. É sua visão universalista do homem que nos faz exigir tanto da arte e da literatura Ocidental – mais do que demandaríamos da arte e da literatura de Java, Bornéu ou China. É a própria tentativa de abraçar outras culturas – uma tentativa que não tem paralelo na arte tradicional da Arábia, Índia ou África – que faz a arte Ocidental refém das críticas capciosas de Said. E é somente uma visão muito estreita de nossa tradição artística que não descobre nela a perspectiva multicultural que é muito mais imaginativa do que qualquer coisa nova ensinada sob este nome. Nossa cultura invoca uma comunidade histórica de sentimento, ao mesmo tempo que celebra os valores humanos universais. Ela é enraizada na experiência cristã que bebe de uma fonte rica em sentimentos humanos que ela difunde por mundos imaginários. De Orlando Furioso de Ariosto ao Don Juan de Byron, de Poppea de Monteverdi ao Hiawatha de Longfellow, de Winter’s Tale a Madame Butterfly, nossa cultura tem, continuamente, se aventurado no território espiritual que não tem lugar no mapa cristão.
O Iluminismo, que nos colocou um ideal de verdade objetiva, também dispersou a bruma da doutrina religiosa. A consciência moral, isolada da observância religiosa, começou a se ver desde fora. Ao mesmo tempo, a crença na natureza humana universal, tão poderosamente defendida por Shaftesbury, Hutcheson e Hume, manteve contido o ceticismo. Seus contemporâneos iluministas teriam considerado absurdo a sugestão de que, traçando o curso da simpatia humana, Shaftesbury e Hume estivessem, meramente, descrevendo um aspecto da cultura “Ocidental”. Para eles, “as ciências morais”, inclusive o estudo da arte e da literatura, incorporava o que T.S. Eliot chamaria mais tarde de “a busca comum do verdadeiro julgamento.” E essa busca comum ocupou os grandes pensadores da Era Vitoriana, que, mesmo quando davam os primeiros passos na sociologia e antropologia, acreditavam na validade objetiva de seus resultados e na natureza humana universal que seria revelada em seus estudos.
Tudo isso mudou completamente. No lugar da objetividade, temos somente “inter-subjetividade” – em outras palavras, consenso. Verdades, significados, fatos e valores são, agora, considerados negociáveis. A coisa curiosa, no entanto, é que esse confuso e vago subjetivismo anda de mãos dadas com uma censura vigorosa. Aqueles que colocam o consenso no lugar da verdade, se descobrem distinguindo a verdade do falso consenso. Assim, o consenso de Rorty, rigorosamente, exclui todos os conservadores, tradicionalistas e reacionários. Somente os esquerdistas podem pertencer a ele; tal como somente as feministas, os radicais, os ativistas gays e os anti-autoridade podem tirar vantagens da desconstrução; tal como somente os oponentes do “poder” podem fazer uso das técnicas de sabotagem moral de Foucault; e como somente os multiculturalistas podem se beneficiar da crítica de Said aos valores do Iluminismo. A conclusão inescapável é que os gurus atuais advogam a subjetividade, a relatividade, e o irracionalismo, não a fim de incluir todas as opiniões, mas, precisamente, para excluir as opiniões de quem acredita nas velhas autoridades e valores objetivos.
Se você estuda as opiniões que prevalecem nas academias modernas, descobrirá que elas são de dois tipos: aquelas que emergem do constante questionamento dos valores tradicionais e aquelas que emergem da tentativa de evitar qualquer questionamento das alternativas esquerdistas. Todas as crenças seguintes estão, efetivamente, proibidas num campus universitário americano: (1) A crença na superioridade da cultura Ocidental; (2) A crença de que possa haver distinções moralmente relevantes entre sexos, culturas e religiões; (3) A crença no bom gosto, quer seja na literatura, na música, na arte, na amizade ou no comportamento; e (4) A crença nos costumes sexuais tradicionais. Você pode até professar essas crenças, mas é perigoso confessá-las, e ainda mais perigoso defendê-las, pois, você pode ser considerado culpado de “hate speech” (discurso de ódio) – em outras palavras, culpado de julgar desfavoravelmente outro grupo de seres humanos. Contudo, a hostilidade a essas crenças não é fundamentada na razão e nunca se sujeita a uma justificativa racional. A universidade pós-moderna não venceu a razão, mas a substituiu por um novo tipo de fé – uma fé sem autoridade e sem transcendência, uma fé ainda mais tenaz por não se reconhecer enquanto tal.
A religião do politicamente correto não está confinada aos EUA. Recentemente, Glen Hoddle, um treinador de futebol, expressou a visão (perfeitamente aceitável, quando proferida por um representante de uma minoria racial) de que pessoas com deficiência estão sofrendo nesta vida pelos pecados que cometeram em outras. Ele foi, imediatamente, castigado pelos seus empregadores, pela mídia e pelo governo, numa série inesquecível de julgamentos-espetáculos. Ele foi, então, despedido. Tais caças às bruxas, cada vez mais freqüentes na Inglaterra, são conduzidas fora dos tribunais, por burocratas ou por comissões quase independentes, tal como a Comissão pela Igualdade Racial. E o princípio orientador é sempre “culpado até prova em contrário.”
De forma similar, você descobrirá que quase todos aqueles que esposam os “métodos” relativísticos introduzidos por Foucault, Derrida e Rorty são veementes apoiadores de um código do politicamente correto que condena a divergência em termos absolutos e intransigentes. Paul de Man, uma vez foi simpático aos nazistas. É um patente absurdo sugerir que tal desarranjo teria algo a ver com a descoberta de que Paul de Man tinha sido comunista – mesmo que ele tivesse tomado parte em alguns dos grandes crimes comunistas. Em tal caso, ele teria contado com o mesmo apoio compassivo que puderam desfrutar os comunistas e companheiros de viagem Lukacs, Merleau-Ponty e Sartre. O ataque ao significado movido pelos desconstrucionistas não é um ataque aos “nossos” significados, que permanecem exatamente o que eles eram: radicais, igualitários e transgressivos. É um ataque aos significados “deles” – significados seqüestrados de uma tradição de pensamento artístico e filosófico e passados à posteridade por meio de antigas formas de ensino.
Vale a pena manter tudo isso na lembrança quando consideramos o estado atual da vida intelectual na Europa e EUA. Apesar de existirem áreas, tais como a filosofia, que tenha se mantido imune ao subjetivismo prevalecente, elas estão, também, começando a sucumbir. Professores que se apegam ao que Rorty chama “um tipo natural e trans-cultural de racionalidade” – em outras palavras, aqueles que acreditam que se possa dizer algo permanente e universalmente verdadeiro sobre a condição humana – consideram cada vez mais difícil despertar o interesse do estudante, para quem a negociação tomou o lugar do argumento racional. Expor a ética de Aristóteles e enfatizar que as virtudes cardeais que ele defendia são tão importantes como parte de nossa felicidade hoje, como o foram para os antigos gregos é convidar problemas e incompreensão. O máximo que o estudante moderno pode gerenciar é a curiosidade: esta, ele admitirá, é a forma como eles viam a questão. Quanto a mim, quem sabe?
Desse estado de ceticismo confuso, o estudante pode dar um salto para a fé. E o salto nunca é para trás, para o antigo currículo, o velho cânon, a antiga crença e padrões objetivos e forma de vida estabelecidas. É sempre um salto adiante, para o mundo da livre escolha e opinião, no qual ninguém tem autoridade e nada é objetivamente certo ou errado. Neste mundo pós-moderno não existe tal coisa como um julgamento desfavorável – a menos que seja proferido por um juiz desfavorável. É um mundo “parque de diversões”, no qual todos têm, igualmente, direito a sua cultura, ao seu estilo de vida e às suas opiniões.
E esta é a razão pela qual, paradoxalmente, a censura está tão presente no currículo pós-moderno – da mesma forma que está presente no esquerdismo. Quando tudo é permitido, é vital proibir o proibidor. Todas as culturas sérias são fundadas em distinções entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o bom e o mau gosto, o conhecimento e a ignorância. À perpetuação dessas distinções, a área das humanidades era, no passado, devotada. Daí o ataque pós-moderno ao currículo e a veemente tentativa de impor um padrão do “politicamente correto” – que significa, de fato, um padrão de não exclusão e não julgamento.
Mas o ataque ao antigo currículo é infundado, pois ele não era nem um pouco monocultural. Nossos ancestrais estudavam – estudavam de verdade –, as culturas que lhes eram inteiramente diferentes. Eles aprenderam as línguas e a literatura da Grécia e de Roma; chegaram a entender, amar e mesmo, a seu modo, adorar os deuses pagãos; traduziram do hebreu, sânscrito e árabe; e vagaram pelo mundo com uma insaciável curiosidade, acreditando firmemente que nada humano lhes seria estranho. Era absolutamente natural ao estudante universitário do século XIX aprender a língua do país ao qual viajava, estudar sua literatura, religião, história e costumes – ao ponto de, freqüentemente, se tornar nativo, como muitos ingleses na Índia e muitos indianos na Inglaterra. O Iluminismo europeu, levado pelo comércio e pela aventura colonial às praias do Mediterrâneo Oriental, inspirou a classe intelectual do Egito e Líbano com a visão do aprendizado universal. Edward Said é um produto disso: uma prova viva contra suas próprias teorias.
Tudo isso nos traz de volta à natureza profundamente paradoxal do novo relativismo. Ao mesmo tempo que afirma que todas as culturas são iguais e a distinção entre elas é absurda, o novo relativismo secretamente apela à crença oposta. Ele está tentando nos convencer de que a cultura Ocidental, e o currículo tradicional, são racistas, etnocêntricos, patriarcais e, portanto, se encontra além do limite da aceitabilidade política. Por falsas que essas acusações sejam, elas pressupõem a visão universalista que elas próprias declaram ser impossível. A consciência subliminar desse paradoxo explica a popularidade dos gurus que tenho aqui discutido. Seus argumentos pertencem a um novo tipo de teologia: a teologia do politicamente correto. Como em toda teologia, não é a qualidade do argumento, mas a natureza da conclusão, que torna a discussão aceitável. As crenças relativistas existem porque elas sustentam uma comunidade – a nova ummah dos desenraizados e descontentes. Assim, em Rorty, Derrida e Foucault encontramos uma duplicidade de propósitos: de um lado o propósito de desmontar todas as alegações de verdade absoluta e de outro, o propósito de sustentar as ortodoxias sobre as quais suas congregações dependem. O mesmo raciocínio estabelecido para destruir as idéias de verdade objetiva e valor absoluto impõe o politicamente correto como absolutamente obrigatório e o relativismo cultural como objetivamente verdadeiro.
Qual deve ser nossa resposta a isso? Certamente, a primeira conclusão que devemos tirar é que o novo relativismo é autocontraditório. Sua censura absoluta já é prova disso; como é também sua constante pressuposição da perspectiva “trans-cultural” que ele nega ser possível. Sem tal perspectiva, a própria idéia de uma pluralidade de culturas não poderia ser expressa. E qual é essa perspectiva – o “ponto de vista além da cultura” – senão a perspectiva da razão?
A segunda conclusão a tirar disso, intelectualmente falando, é que o projeto iluminista, como o chamou Alasdair MacIntyre – o projeto de construir uma moralidade objetiva a partir de argumentos racionais – é tão real para nós quanto foi para Kant ou Hegel. O problema não está em dar fundamentos racionais à moralidade ou aos princípios objetivos da crítica. O problema está em persuadir as pessoas a aceitá-los. Apesar de existirem aqueles que, como John Gray, nos dizem que o projeto fracassou, o fracasso está neles e não no projeto. É possível elaborar uma defesa racional da moralidade tradicional e mostrar exatamente porque a natureza humana e as relações pessoais a exigem. Mas o argumento é difícil. Nem todo mundo é capaz de segui-lo; nem todo mundo tem o tempo suficiente, ou a inclinação, ou a necessária percepção do está em jogo. Assim, a razão, que incita questões fáceis e, ao mesmo tempo, fornece somente respostas difíceis, mais destruirá do que fundamentará nossas devoções.
O que está errado com o projeto iluminista não é a crença que a razão pode oferecer uma moralidade trans-cultural. Pois, essa crença é verdadeira. O que está errado é a suposição de que as pessoas têm algum pálido interesse na razão. A falsidade dessa suposição está aí, para todos verem, em nossas academias: no relativismo de seus gurus e no equivocado absolutismo – absolutismo sobre coisas erradas e por razões erradas, absolutismo que exclui a todos de seu ambiente, exceto os relativistas.
Publicado no City Journal
O iluminismo tornou explícito o que já estava, há muito tempo, implícito na vida intelectual da Europa: a crença de que a inquirição racional leva à verdade objetiva. Mesmo aqueles pensadores iluministas que desconfiavam da razão, como Hume, e aqueles que tentavam restringir seu poder, como Kant, nunca abandonaram a confiança no argumento racional. Hume se opunha à idéia da moralidade racional; mas ele justificava a distinção entre o certo e o errado em termos da ciência natural das emoções, ficando implícito que poderíamos descobrir a verdade sobre a natureza humana e fazer desta verdade uma firme fundação sobre a qual construir. Kant pode ter rebaixado a “razão pura” a um tecido de ilusões, mas ele elevou, em seu lugar, a razão prática, defendendo a validade absoluta da lei moral. Nos 200 anos subseqüentes, a razão manteve sua posição de árbitro da verdade e fundação do conhecimento objetivo.
A razão está agora se retraindo, tanto como um ideal quanto como uma realidade. O seu lugar tem sido tomado pela “visão desde fora” – que coloca em questão nossa tradição inteira. O apelo à razão, nos avisam, é um mero apelo à cultura Ocidental, que fez da razão sua pedra-de-toque e uma petição à objetividade que nenhuma cultura poderia possuir. Além do mais, considerando a razão sua fundamentação, a cultura Ocidental ocultou seu pernicioso etnocentrismo; ela revestiu o pensamento Ocidental como se ele tivesse força universal. A razão, portanto, é uma mentira, e pela exposição da mentira, revelamos a opressão no coração da cultura Ocidental. Por trás do ataque à razão nos espreita uma outra (e mais virulenta) hostilidade: a hostilidade à cultura e ao currículo que herdamos do Iluminismo.
Se examinarmos os gurus do novo establishment universitário, aqueles cujos trabalhos são mais freqüentemente citados no interminável fluxo de artigos, devotados a desbancar a cultura Ocidental, descobriremos que eles são todos oponentes da verdade objetiva. Nietzsche é um dos favoritos, pois ele afirmou explicitamente: “Não existe verdade, somente interpretações.” Mas, ou o que disse Nietzsche é verdade – e, neste caso, não é verdade, pois não existem verdades – ou o que ele disse é falso. Prova suficiente, você imaginaria. Mas, não: essa afirmação pode ser feita de forma menos burlesca e o paradoxo, ocultado. Isso explica a atração dos pensadores posteriores – Michel Foucault, Jacques Derrida e Richard Rorty – que devem sua eminência intelectual não a seus argumentos (que são muito poucos), mas a seus papéis em dar autoridade à rejeição da autoridade, e ao absoluto compromisso deles com a impossibilidade de compromissos absolutos. Em cada um deles você descobrirá a visão de que a verdade, a objetividade, o valor e o significado são quiméricos e que tudo que você pode ter, e tudo que você necessita ter é a cálida segurança de sua própria opinião.
É vão argumentar contra esses gurus. Nenhum argumento, por mais racional que seja, pode conter o enorme desejo em acreditar, que inebria seus leitores normais. Afinal, um argumento racional pressupõe exatamente o que eles questionam – ou seja, a possibilidade do argumento racional. Pelo menos um deles – Michel Foucault – foi o personagem de uma hagiografia, Santo Foucault de David Halperin, pela mensagem libertadora contida em seu ataque à estrutura do pensamento. Mas, cada um deles deve sua reputação a uma nova espécie de fé religiosa: a fé na relatividade das opiniões, incluindo esta.
A verdade, Foucault nos ensina, não é um absoluto, que pode ser compreendido e avaliado de alguma forma trans-histórica, como se fosse através dos olhos de Deus. A verdade é cria do “discurso”, e como o discurso muda, assim acontece com a verdade nele contida. O que significa o termo “discurso”? Consulte qualquer periódico acadêmico na área das humanidades e você o encontrará em meio a milhares de debates artificiais: “Falocentrismo Ocidental e o discurso do gênero,” “O discurso da supremacia branca nos romances de Conrad,” “O discurso de exclusão: uma perspectiva homossexual” etc. Pela descrição dos argumentos como “discurso”, você os desmascara, tendo acesso ao estado mental de onde eles surgem. Você não confronta mais a verdade ou a razoabilidade da opinião do outro, mas se engaja diretamente com a força social que fala por meio dele. A questão não é mais “O que você está dizendo?”, mas “De onde você está falando?” Este é o triunfo de Foucault, fornecer uma palavra que nos capacitaria a re-anexar todo pensamento ao seu contexto e fazer o contexto mais importante do que o pensamento.
O discurso, para Foucault, é o produto de uma época e existe em virtude do “poder” social prevalecente. É o que Marx chamou de “ideologia”: uma coleção de idéias que não tem autoridade própria, mas que despista e mistifica a realidade social. A verdade não contém nada mais do que o poder que a considera conveniente; e pelo desmascaramento do poder, nós “desestabelecemos” a verdade. Em qualquer época, há aqueles que refutam o discurso prevalecente. Estes são denunciados, marginalizados – e mesmo encarcerados como loucos. São deles a voz da não-razão, e, para os detentores da autoridade, o que eles proferem não é verdade, mas delírio. Contudo, afirma Foucault claramente, não há nada de objetivo nessas denúncias de loucura: não é nada além de um dispositivo pelo qual o poder estabelecido, o poder da ordem burguesa, se sustenta, salvaguardando sua própria “verdade” contra o discurso rival que a rejeita.
Foucault e seus discípulos generalizam esse argumento, sugerindo que a visão tradicional do homem, da família, das relações sexuais e da moral sexual, não tem nenhuma autoridade além do poder que a sustenta. Nos três volumes de sua História da Sexualidade, Foucault dá um passo além. O prazer sexual, ele defende, não é intrinsecamente problemático; não há nenhuma razão em controlá-lo ou suprimi-lo. Se o sexo é “problematizado,” para se proibir alguns prazeres e encorajar outros, isto é, na verdade, um curioso fato social, que pode ser explicado, mas nunca justificado. Ele descreve seu próprio estudo do sexo, tomando emprestado o termo de Nietzsche, como uma “genealogia” das morais – uma explicação das crenças que, por não terem nenhuma validade ou verdade intrínseca, devem ser explicadas em termos de seu contexto social, e, portanto, só assim justificadas.
Tal panorama foi extremamente útil para Foucault, cuja homossexualidade descontrolada não sofreria nenhuma censura. Sua morte, causada pela AIDS, trouxe um fim a sua predação sexual. Mas, não limitou sua influência: pelo contrário, corou seu pensamento com um halo de correção política. Foucault não era somente um advogado dos prazeres imediatos, mas um mártir deles. Ainda assim, essa aura de virtude não deve nos levar a aceitar sua desmistificação da moralidade sexual. Pois, a “genealogia” de Foucault não distingue entre causa e efeito. Por mais que Foucault diga ao contrário, a verdade objetiva poderia indicar que as realizações pessoais e da sociedade humana fossem mais facilmente garantidas pelo casamento heterossexual do que pela transgressão sexual, e que o capital político e cultural de uma época fosse mais facilmente transferido onde as pessoas criassem (educassem) suas crianças em seus lares. Em vez de ser efeito do poder social, a velha moralidade poderia bem ser sua causa. Sobre isso – causa e efeito – o diagnóstico de Foucault nada diz. A suposição é que, ao ligar uma crença ao poder daqueles que a sustentam, a alegação de validade se desfaz. Mas, essa suposição pode ser a oposição polar da verdade.
Tão popular – e pelas mesmas razões – quanto à análise foucaultiana do poder é a técnica da desconstrução, associada a Jacques Derrida. Ninguém sabe – ou pelo menos ninguém ainda explicou – o que é desconstrução. Mas, sua própria obscuridade constitui a maior parte de seu apelo. Ao oferecer enorme quantidade de nonsense, o desconstrucionista é capaz de fortalecer sua suposição fundamental: que a significação é impossível. Não existe tal coisa como a significação objetiva, decifrável de uma palavra ou argumento. No jargão oficial, não há “significado transcendental.” Cada palavra, uma vez proferida, é cativa à interpretação e a decisão de interpretar a palavra de uma forma ou de outra é, em última análise, política – as únicas questões reais são aquelas proferidas por Lênin: Quem? e A quem? Quem está interpretando e contra que vítima? Se os Homens Brancos Antepassados monopolizaram a interpretação de Jane Austen, por exemplo, há alguma surpresa no fato de que as leituras “oficiais” dos romances de Austen não reconheçam algum lugar real às mulheres e às suas aspirações? Há alguma surpresa em que esses romances são construídos como vingança, em vez de repúdio, ao casamento burguês? Confrontados por um texto do cânon tradicional, podemos proceder à sua desconstrução como quisermos, pois, as únicas restrições a que estamos submetidos são aquelas que escolhemos. A crítica desconstrucionista é como as produções modernas do teatro tradicional: o texto é lido contra si próprio, de forma a significar qualquer coisa que o crítico ou produtor escolher. E, invariavelmente, o propósito é político: desbancar as velhas autoridades, em nome da liberação.
O “pragmatismo” de Richard Rorty opera de forma similar, alcançando conclusões políticas inevitáveis pela repetição de um truque de prestidigitador. Mas, como o pragmatismo é um produto nativo americano, com uma respeitável história, as pessoas, nem sempre, devotam a ele a suspeita que ele, agora (graças a Rorty), merece. Vale a pena, portanto, examinar suas credenciais subversivas.
O pragmatismo, simplificadamente, é a visão de que “verdadeiro” significa “útil.” A crença mais útil é aquela que me dá o melhor apoio no mundo: a crença que, quando colocada em funcionamento, tem a maior chance de sucesso. Obviamente, essa não é uma caracterização suficiente para distinguir a verdade da falsidade. Qualquer um que anseie por uma carreira em uma universidade americana descobrirá que as crenças feministas são úteis, assim como as crenças racistas o foram para o apparatchik universitário da Alemanha nazista. Mas, isso dificilmente mostra que essas crenças sejam verdadeiras.
Então, o que, realmente, queremos dizer com termo “útil”? Uma sugestão é esta: uma crença é útil quando é parte de uma teoria de sucesso. Mas uma teoria de sucesso é a que faz predições verdadeiras. Assim, estamos andando em círculos, definindo a verdade por meio da utilidade e a utilidade por meio da verdade. De fato, é difícil encontrar um pragmatismo plausível que não se reduza a isto: que uma proposição verdadeira é aquela que é útil de uma forma que a verdadeira proposição seja útil. Impecável, mas lacunar.
A ameaça da vacuidade não detém Rorty, que vê o pragmatismo como uma arma contra a velha idéia da razão. Mesmo que ele fracasse miseravelmente em sua tentativa de dizer o que seja realmente o pragmatismo, esse fracasso não preocupa seus discípulos, que o usa a seu favor, como usaram a vacuidade da “genealogia” foucaultiana das morais e o impenetrável nonsense da desconstrução. É suficiente que Rorty invoque seu pragmatismo como um tipo de encantamento mágico contra a velha idéia da razão e a favor da causa do relativismo cultural. É isso que o qualifica para o cargo de guru em nossos departamentos de humanidades.
Em suas palavras: “Os pragmatistas vêem a verdade como ... o que seja bom acreditar ... Eles vêem o espaço entre verdade e justificação não como algo a ser transposto por meio do isolamento de um tipo de racionalidade natural e trans-cultural que pode ser usada para criticar certas culturas e elogiar outras, mas, simplesmente, como um espaço entre o bom real e o melhor possível ... Para os pragmatistas, o desejo de objetividade não é o desejo de escapar das limitações da própria comunidade, mas, simplesmente, o desejo de acordo intersubjetivo tão grande quanto possível, o desejo de estender a referencia ‘nós’ tanto quanto pudermos.” Em outras palavras, o pragmatismo nos habilita a rejeitar a idéia da “racionalidade trans-cultural.” Não há lugar para as velhas idéias de objetividade e verdade universal; tudo o que importa é sobre o que concordamos.
Mas, quem somos nós? E com que concordamos? Volte aos ensaios de Rorty e você logo descobrirá. “Nós” somos todos feministas, esquerdistas, promotores da liberação gay e do currículo aberto; “nós” não acreditamos em Deus ou em qualquer religião herdada; nem as velhas idéias de autoridade, ordem e autodisciplina têm algum peso para “nós”. Não estamos limitados por nada, além da comunidade a que escolhemos pertencer. E porque não há verdade objetiva, mas somente nosso próprio consenso auto-engendrado, nossa posição é inacessível desde um ponto exterior. O pragmatista pode não somente decidir o que pensar; ele pode se proteger de qualquer um que não pense como ele.
Um verdadeiro pragmatista inventará, sem dúvida, a história, assim como ele inventa tudo o mais, persuadindo-“nos” a concordar com ele. No entanto, vale a pena dar uma olhada na história, senão por outras razões, pelo menos para ver o quão paradoxal e perigoso é a visão de Rorty sobre intelecto humano. O ummah islâmico – a sociedade de todos os crentes – era, e permanece sendo, o mais extenso consenso que o mundo já conheceu. Ele, expressamente, reconhece o consenso (ijma) como um critério de, e de fato um substituto para, a verdade, e está engajado num permanente empreendimento de incluir, tantos quanto possíveis, na sua totalizante primeira pessoa do plural. Além do mais, qualquer que seja, para Rorty, o significado de crenças “boas” ou “melhores”, o mussulmano pio deve, certamente, acreditar que ele tem simplesmente as melhores: crenças que trazem segurança, estabilidade, felicidade, um apoio no mundo, e uma consciência tranqüila quando se explode os kafirs, que pensam de maneira diferente.
Mas, mesmo assim, não fica aquele sentimento desconfortável de que alguma coisa nessas crenças, que aquecem os corações, possa não ser verdadeira, e que as lânguidas opiniões do ateu pós-moderno possam ter algo a ver com isso? Pelo que afirma o pragmatismo de Rorty, isso não é algo que se possa dizer. Afinal, os ateus pós-modernos, diferentemente dos pios mulssulmanos, não compõem uma comunidade – nem mesmo uma comunidade imaginária. Eles não têm nenhum credo ou catecismo, nenhum texto sagrado, nenhum consenso estabelecido. Mesmo assim, Rorty é um ateu pós-moderno. Por quê? Não porque ele pertença a uma comunidade de incrédulos, mas porque ele pensa que o ateísmo é verdadeiro. O pragmatismo que coloca o consenso no lugar da verdade é, no fim e ao cabo, uma fraude.
Em seus próprios olhos, o Iluminismo envolve a celebração de valores universais de uma natureza humana comum. A arte do Iluminismo percorre outros lugares, outros tempos e outras culturas, numa tentativa heróica de justificar uma visão do homem como livre a auto-criado. Esta visão inspirava e era inspirada pelo velho currículo, cujo questionamento tem sido a principal preocupação da universidade pós-moderna. Essa preocupação explica a popularidade de outro guru relativista – Edward Said, cujo livro Orientalismo mostra como desqualificar o próprio Iluminismo como uma forma de imperialismo cultural. O Oriente aparece na arte e literatura Ocidental, diz Said, como algo exótico, irreal, teatral, e portanto frívolo. Longe de ser um generoso reconhecimento de outras culturas, o orientalismo da arte iluminista européia é uma tentativa de apequená-las, de reduzi-las a episódios decorativos no interior do progresso do imperium Ocidental.
O argumento de Said anda de mãos dadas com aqueles que fundamentam o currículo multicultural. O velho currículo, um produto do Iluminismo, é, eles nos dizem, monocultural, devotado à perpetuação da visão da Civilização Ocidental como inerentemente superior às suas rivais. É também patriarcal, produto do Homem Europeu Antepassado, que, há muito, perdeu toda a sua autoridade. E sua suposição de uma perspectiva racional universal, lugar de onde toda a humanidade pode ser estudada, não é nada mais que a racionalização de suas ambições imperialistas. Em contraste, nós, que vivemos no ambiente amorfo e multicultural da cidade pós-moderna, devemos abrir nossos corações e mentes para todas as culturas e não nos ater a nenhuma delas. O resultado inescapável disso é o relativismo: o reconhecimento de que nenhuma cultura nos chama mais a atenção, e que nenhuma cultura pode ser julgada ou desqualificada desde fora.
Mas, uma vez mais, há um paradoxo. Pois, aqueles que advogam essa perspectiva multicultural são, via de regra, veementes na desqualificação da cultura Ocidental. Said não é exceção. Ao mesmo tempo que está nos exortando a julgar outras culturas em seus próprios termos, ele está nos pedindo para julgar a cultura Ocidental do ponto de vista externo – compará-la com as alternativas e julgá-la, adversamente, como etnocêntrica e racista.
Mas, as críticas feitas à cultura Ocidental confirmam, realmente, a verdade do que é criticado. É graças ao Iluminismo e sua visão universal dos valores humanos que a igualdade racial e sexual exerce sobre nosso senso comum um tal apelo. É sua visão universalista do homem que nos faz exigir tanto da arte e da literatura Ocidental – mais do que demandaríamos da arte e da literatura de Java, Bornéu ou China. É a própria tentativa de abraçar outras culturas – uma tentativa que não tem paralelo na arte tradicional da Arábia, Índia ou África – que faz a arte Ocidental refém das críticas capciosas de Said. E é somente uma visão muito estreita de nossa tradição artística que não descobre nela a perspectiva multicultural que é muito mais imaginativa do que qualquer coisa nova ensinada sob este nome. Nossa cultura invoca uma comunidade histórica de sentimento, ao mesmo tempo que celebra os valores humanos universais. Ela é enraizada na experiência cristã que bebe de uma fonte rica em sentimentos humanos que ela difunde por mundos imaginários. De Orlando Furioso de Ariosto ao Don Juan de Byron, de Poppea de Monteverdi ao Hiawatha de Longfellow, de Winter’s Tale a Madame Butterfly, nossa cultura tem, continuamente, se aventurado no território espiritual que não tem lugar no mapa cristão.
O Iluminismo, que nos colocou um ideal de verdade objetiva, também dispersou a bruma da doutrina religiosa. A consciência moral, isolada da observância religiosa, começou a se ver desde fora. Ao mesmo tempo, a crença na natureza humana universal, tão poderosamente defendida por Shaftesbury, Hutcheson e Hume, manteve contido o ceticismo. Seus contemporâneos iluministas teriam considerado absurdo a sugestão de que, traçando o curso da simpatia humana, Shaftesbury e Hume estivessem, meramente, descrevendo um aspecto da cultura “Ocidental”. Para eles, “as ciências morais”, inclusive o estudo da arte e da literatura, incorporava o que T.S. Eliot chamaria mais tarde de “a busca comum do verdadeiro julgamento.” E essa busca comum ocupou os grandes pensadores da Era Vitoriana, que, mesmo quando davam os primeiros passos na sociologia e antropologia, acreditavam na validade objetiva de seus resultados e na natureza humana universal que seria revelada em seus estudos.
Tudo isso mudou completamente. No lugar da objetividade, temos somente “inter-subjetividade” – em outras palavras, consenso. Verdades, significados, fatos e valores são, agora, considerados negociáveis. A coisa curiosa, no entanto, é que esse confuso e vago subjetivismo anda de mãos dadas com uma censura vigorosa. Aqueles que colocam o consenso no lugar da verdade, se descobrem distinguindo a verdade do falso consenso. Assim, o consenso de Rorty, rigorosamente, exclui todos os conservadores, tradicionalistas e reacionários. Somente os esquerdistas podem pertencer a ele; tal como somente as feministas, os radicais, os ativistas gays e os anti-autoridade podem tirar vantagens da desconstrução; tal como somente os oponentes do “poder” podem fazer uso das técnicas de sabotagem moral de Foucault; e como somente os multiculturalistas podem se beneficiar da crítica de Said aos valores do Iluminismo. A conclusão inescapável é que os gurus atuais advogam a subjetividade, a relatividade, e o irracionalismo, não a fim de incluir todas as opiniões, mas, precisamente, para excluir as opiniões de quem acredita nas velhas autoridades e valores objetivos.
Se você estuda as opiniões que prevalecem nas academias modernas, descobrirá que elas são de dois tipos: aquelas que emergem do constante questionamento dos valores tradicionais e aquelas que emergem da tentativa de evitar qualquer questionamento das alternativas esquerdistas. Todas as crenças seguintes estão, efetivamente, proibidas num campus universitário americano: (1) A crença na superioridade da cultura Ocidental; (2) A crença de que possa haver distinções moralmente relevantes entre sexos, culturas e religiões; (3) A crença no bom gosto, quer seja na literatura, na música, na arte, na amizade ou no comportamento; e (4) A crença nos costumes sexuais tradicionais. Você pode até professar essas crenças, mas é perigoso confessá-las, e ainda mais perigoso defendê-las, pois, você pode ser considerado culpado de “hate speech” (discurso de ódio) – em outras palavras, culpado de julgar desfavoravelmente outro grupo de seres humanos. Contudo, a hostilidade a essas crenças não é fundamentada na razão e nunca se sujeita a uma justificativa racional. A universidade pós-moderna não venceu a razão, mas a substituiu por um novo tipo de fé – uma fé sem autoridade e sem transcendência, uma fé ainda mais tenaz por não se reconhecer enquanto tal.
A religião do politicamente correto não está confinada aos EUA. Recentemente, Glen Hoddle, um treinador de futebol, expressou a visão (perfeitamente aceitável, quando proferida por um representante de uma minoria racial) de que pessoas com deficiência estão sofrendo nesta vida pelos pecados que cometeram em outras. Ele foi, imediatamente, castigado pelos seus empregadores, pela mídia e pelo governo, numa série inesquecível de julgamentos-espetáculos. Ele foi, então, despedido. Tais caças às bruxas, cada vez mais freqüentes na Inglaterra, são conduzidas fora dos tribunais, por burocratas ou por comissões quase independentes, tal como a Comissão pela Igualdade Racial. E o princípio orientador é sempre “culpado até prova em contrário.”
De forma similar, você descobrirá que quase todos aqueles que esposam os “métodos” relativísticos introduzidos por Foucault, Derrida e Rorty são veementes apoiadores de um código do politicamente correto que condena a divergência em termos absolutos e intransigentes. Paul de Man, uma vez foi simpático aos nazistas. É um patente absurdo sugerir que tal desarranjo teria algo a ver com a descoberta de que Paul de Man tinha sido comunista – mesmo que ele tivesse tomado parte em alguns dos grandes crimes comunistas. Em tal caso, ele teria contado com o mesmo apoio compassivo que puderam desfrutar os comunistas e companheiros de viagem Lukacs, Merleau-Ponty e Sartre. O ataque ao significado movido pelos desconstrucionistas não é um ataque aos “nossos” significados, que permanecem exatamente o que eles eram: radicais, igualitários e transgressivos. É um ataque aos significados “deles” – significados seqüestrados de uma tradição de pensamento artístico e filosófico e passados à posteridade por meio de antigas formas de ensino.
Vale a pena manter tudo isso na lembrança quando consideramos o estado atual da vida intelectual na Europa e EUA. Apesar de existirem áreas, tais como a filosofia, que tenha se mantido imune ao subjetivismo prevalecente, elas estão, também, começando a sucumbir. Professores que se apegam ao que Rorty chama “um tipo natural e trans-cultural de racionalidade” – em outras palavras, aqueles que acreditam que se possa dizer algo permanente e universalmente verdadeiro sobre a condição humana – consideram cada vez mais difícil despertar o interesse do estudante, para quem a negociação tomou o lugar do argumento racional. Expor a ética de Aristóteles e enfatizar que as virtudes cardeais que ele defendia são tão importantes como parte de nossa felicidade hoje, como o foram para os antigos gregos é convidar problemas e incompreensão. O máximo que o estudante moderno pode gerenciar é a curiosidade: esta, ele admitirá, é a forma como eles viam a questão. Quanto a mim, quem sabe?
Desse estado de ceticismo confuso, o estudante pode dar um salto para a fé. E o salto nunca é para trás, para o antigo currículo, o velho cânon, a antiga crença e padrões objetivos e forma de vida estabelecidas. É sempre um salto adiante, para o mundo da livre escolha e opinião, no qual ninguém tem autoridade e nada é objetivamente certo ou errado. Neste mundo pós-moderno não existe tal coisa como um julgamento desfavorável – a menos que seja proferido por um juiz desfavorável. É um mundo “parque de diversões”, no qual todos têm, igualmente, direito a sua cultura, ao seu estilo de vida e às suas opiniões.
E esta é a razão pela qual, paradoxalmente, a censura está tão presente no currículo pós-moderno – da mesma forma que está presente no esquerdismo. Quando tudo é permitido, é vital proibir o proibidor. Todas as culturas sérias são fundadas em distinções entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o bom e o mau gosto, o conhecimento e a ignorância. À perpetuação dessas distinções, a área das humanidades era, no passado, devotada. Daí o ataque pós-moderno ao currículo e a veemente tentativa de impor um padrão do “politicamente correto” – que significa, de fato, um padrão de não exclusão e não julgamento.
Mas o ataque ao antigo currículo é infundado, pois ele não era nem um pouco monocultural. Nossos ancestrais estudavam – estudavam de verdade –, as culturas que lhes eram inteiramente diferentes. Eles aprenderam as línguas e a literatura da Grécia e de Roma; chegaram a entender, amar e mesmo, a seu modo, adorar os deuses pagãos; traduziram do hebreu, sânscrito e árabe; e vagaram pelo mundo com uma insaciável curiosidade, acreditando firmemente que nada humano lhes seria estranho. Era absolutamente natural ao estudante universitário do século XIX aprender a língua do país ao qual viajava, estudar sua literatura, religião, história e costumes – ao ponto de, freqüentemente, se tornar nativo, como muitos ingleses na Índia e muitos indianos na Inglaterra. O Iluminismo europeu, levado pelo comércio e pela aventura colonial às praias do Mediterrâneo Oriental, inspirou a classe intelectual do Egito e Líbano com a visão do aprendizado universal. Edward Said é um produto disso: uma prova viva contra suas próprias teorias.
Tudo isso nos traz de volta à natureza profundamente paradoxal do novo relativismo. Ao mesmo tempo que afirma que todas as culturas são iguais e a distinção entre elas é absurda, o novo relativismo secretamente apela à crença oposta. Ele está tentando nos convencer de que a cultura Ocidental, e o currículo tradicional, são racistas, etnocêntricos, patriarcais e, portanto, se encontra além do limite da aceitabilidade política. Por falsas que essas acusações sejam, elas pressupõem a visão universalista que elas próprias declaram ser impossível. A consciência subliminar desse paradoxo explica a popularidade dos gurus que tenho aqui discutido. Seus argumentos pertencem a um novo tipo de teologia: a teologia do politicamente correto. Como em toda teologia, não é a qualidade do argumento, mas a natureza da conclusão, que torna a discussão aceitável. As crenças relativistas existem porque elas sustentam uma comunidade – a nova ummah dos desenraizados e descontentes. Assim, em Rorty, Derrida e Foucault encontramos uma duplicidade de propósitos: de um lado o propósito de desmontar todas as alegações de verdade absoluta e de outro, o propósito de sustentar as ortodoxias sobre as quais suas congregações dependem. O mesmo raciocínio estabelecido para destruir as idéias de verdade objetiva e valor absoluto impõe o politicamente correto como absolutamente obrigatório e o relativismo cultural como objetivamente verdadeiro.
Qual deve ser nossa resposta a isso? Certamente, a primeira conclusão que devemos tirar é que o novo relativismo é autocontraditório. Sua censura absoluta já é prova disso; como é também sua constante pressuposição da perspectiva “trans-cultural” que ele nega ser possível. Sem tal perspectiva, a própria idéia de uma pluralidade de culturas não poderia ser expressa. E qual é essa perspectiva – o “ponto de vista além da cultura” – senão a perspectiva da razão?
A segunda conclusão a tirar disso, intelectualmente falando, é que o projeto iluminista, como o chamou Alasdair MacIntyre – o projeto de construir uma moralidade objetiva a partir de argumentos racionais – é tão real para nós quanto foi para Kant ou Hegel. O problema não está em dar fundamentos racionais à moralidade ou aos princípios objetivos da crítica. O problema está em persuadir as pessoas a aceitá-los. Apesar de existirem aqueles que, como John Gray, nos dizem que o projeto fracassou, o fracasso está neles e não no projeto. É possível elaborar uma defesa racional da moralidade tradicional e mostrar exatamente porque a natureza humana e as relações pessoais a exigem. Mas o argumento é difícil. Nem todo mundo é capaz de segui-lo; nem todo mundo tem o tempo suficiente, ou a inclinação, ou a necessária percepção do está em jogo. Assim, a razão, que incita questões fáceis e, ao mesmo tempo, fornece somente respostas difíceis, mais destruirá do que fundamentará nossas devoções.
O que está errado com o projeto iluminista não é a crença que a razão pode oferecer uma moralidade trans-cultural. Pois, essa crença é verdadeira. O que está errado é a suposição de que as pessoas têm algum pálido interesse na razão. A falsidade dessa suposição está aí, para todos verem, em nossas academias: no relativismo de seus gurus e no equivocado absolutismo – absolutismo sobre coisas erradas e por razões erradas, absolutismo que exclui a todos de seu ambiente, exceto os relativistas.
Publicado no City Journal
15/06/2006
Por que acredito no cristianismo[1]
G. K. Chesterton
Não tenho a intenção de desrespeitar o Sr. Blatchford dizendo que nossa dificuldade, em grande medida, está em que ele, como a maioria das pessoas inteligentes atualmente, não entende o que é Teologia. Equivocar-se em ciência é uma coisa, mas equivocar-se sobre a natureza da ciência é outra. Na medida em que leio “God and My Neighbour (Deus e o meu vizinho)”, cresce minha convicção de que ele pensa que Teologia é o estudo sobre se as diversas lendas que a Bíblia conta sobre Deus é historicamente demonstrável. É como se ele estivesse tentando provar a um sujeito que o Socialismo seria, na verdade, a sólida ciência da Economia Política[2] e começasse a perceber, no meio do caminho, que o sujeito considerava a Economia Política o estudo sobre se os políticos eram econômicos.
É muito difícil de explicar brevemente a natureza de todo um ativo campo de estudo, tanto quanto o é explicar o que é política ou ética. Pois, quanto maior e mais óbvia é uma coisa, e quanto mais ela te encara face a face, mais difícil é defini-la. Todo mundo pode definir concologia.. Ninguém pode definir a moral.
No entanto, toca-nos tentar explicar essa filosofia religiosa que era, e de novo será, o estudo dos maiores intelectuais e a fundamentação das mais fortes nações, mas que nossa diminuta civilização, há algum tempo, esqueceu, da mesma forma que esqueceu como dançar e como se vestir decentemente. Tentarei explicar porque eu considero necessária uma filosofia religiosa e porque eu considero o cristianismo a melhor filosofia religiosa. Mas, antes que eu faça isso, quero que você se lembre de dois fatos históricos. Não peço para que você tire deles as minhas conclusões ou mesmo qualquer conclusão. Peço que você se lembre deles como simples fatos, ao longo da discussão.
1. O cristianismo surgiu e se expandiu num mundo muito refinado e cínico – num mundo muito moderno. Lucrécio era tão materialista quanto Haeckel e um escritor muito mais persuasivo. O mundo romano tinha lido “God and My Neighbour”, e de uma maneira um tanto sonolenta o considerou verdadeiro. Vale a pena notar que as religiões quase sempre surgem nessas civilizações céticas. Um livro recente sobre a literatura pre-maometana da Arábia descreve uma vida inteiramente luxuosa e refinada. Foi assim com Buda, nascido em berço de ouro, numa antiga civilização. Foi assim com o Puritanismo na Inglaterra e com a Restauração Católica na França e Itália, ambas advindas do racionalismo da Renascença. É assim hoje, e será sempre assim. Vá a dois dos mais modernos centros do pensamento moderno, Paris e EUA, e você encontra-los-á cheios de anjos e demônios, de velhos mistérios e novos profetas. O racionalismo está lutando pela própria vida contra as novas e vigorosas superstições.
2. O cristianismo, que é uma religião muito mística, tem sido, contudo, a religião das porções mais práticas da humanidade. Ele tem mais paradoxos que as filosofias orientais, mas ele também constrói as melhores rodovias. O mussulmano tem uma concepção lógica e pura de Deus, o Alah monístico. Mas ele permanece bárbaro na Europa e a grama não renascerá por onde ele passar. O cristão tem um Deus Trino, “uma trindade oblíqua,” que parece uma caprichosa contradição em termos. Mas, em ação, ele abarca a terra e, mesmo, o mais inteligente oriental só pode com ele lutar, imitando-o a princípio. O Oriente tem sua lógica e vive do arroz. A cristandade tem seus mistérios – e seus automóveis. Não importa a inferência. Como eu disse, registremos os fatos.
Agora com essas duas coisas em mente, deixe-me tentar explicar o que é a Teologia Cristã.
O agnosticismo completo é a atitude óbvia para o homem. Todos somos agnósticos até descobrirmos que o agnosticismo não funciona. Então, adotamos alguma filosofia, a do Sr. Blachford ou a minha, ou alguma outra, pois, o Sr. Blatchford não é mais agnóstico que eu, é claro. O agnóstico diria não estar certo se o homem é responsável pelos seus pecados. O Sr. Blatchford diz que ele tem certeza de que o homem não é.
Aqui temos a semente de toda uma imensa árvore de dogmas. Por que o Sr. Blatchford vai além do agnosticismo e afirma que não há, certamente, livre arbítrio? Porque ele não pode desenvolver seu sistema moral sem afirmar a inexistência do livre arbítrio. Ele deseja que nenhum homem seja culpado de pecado. Portanto, ele tem de convencer seus discípulos de que Deus não os fizeram livres e, por conseguinte, culpáveis. Nenhuma mínima dúvida cristã pode passar pela mente do determinista. Nenhum demônio pode sussurrá-lo, numa hora de angústia, que, talvez, o promotor de vendas fraudulento foi o responsável por ele estar no asilo. Nenhum ataque de ceticismo deve sugeri-lo que, talvez, o professor primário foi o culpado pela surra de matar dada no pequeno garoto. A fé do determinista deve permanecer firme, senão a fraqueza da natureza humana, certamente, fará com que os homens se enfureçam quando são difamados ou devolvam o soco, quando são socados. Em resumo, o livre arbítrio parecerá, em princípio, pertencer ao Desconhecido. Mesmo assim, o Sr. Blatchford não conseguirá pregar o que a ele pareça mera caridade sem afirmar, sobre isso, um dogma. E eu não conseguirei pregar o que me parece ser mera honestidade, sem afirmar outro.
Aqui está a falha do agnosticismo. Que a nossa visão cotidiana das coisas que sabemos (do senso comum), realmente depende de nossa visão de coisas que não sabemos (do senso comum). Tudo bem dizer a um homem, como faz o agnóstico, “cultive seu jardim.” Mas, suponha que ele ignore tudo fora do seu jardim, inclusive o sol e a chuva?
Isso é fato real. Você não pode viver sem dogmas sobre as coisas. Você não pode agir vinte e quatro horas por dia sem decidir se as pessoas são responsáveis ou não. A Teologia é um produto muito mais prático que a Química.
Alguns deterministas imaginam que o cristianismo inventou um dogma como o livre arbítrio por diletantismo – uma simples contradição. Isso é absurdo. Você se confronta com contradições onde quer que você esteja. Os deterministas me dizem, com um grau de verdade, que o determinismo não faz diferença na vida diária. Isso significa que, apesar do determinismo saber que os homens não têm livre arbítrio, mesmo assim, ele continua tratando-os com se tivessem.
A diferença, então, é muito simples. O cristão coloca a contradição em sua filosofia. O determinista a coloca em seus hábitos diários. O cristão afirma, como um mistério declarado, o que o determinista chama nonsense. O determinista tem o mesmo nonsense em seu café da manhã, em seu almoço, em seu chá e em seu jantar, todos os dias de sua vida.
O cristão, repito, coloca o mistério em sua filosofia. Este mistério, pela sua escuridão, ilumina todas as coisas. Depois disso, vida é vida, pão é pão e queijo é queijo: ele pode sorrir e lutar. O determinista torna a questão lógica e lúcida: e à luz dessa lucidez, todas as coisas são obscurecidas, as palavras perdem o sentido, e as ações, o objetivo. Ele fez de sua filosofia um silogismo e dele próprio um lunático delirante. [3]
Essa não é uma questão entre misticismo e racionalidade. É uma questão entre misticismo e loucura. Pois, o misticismo, e somente o misticismo, tem mantido o homem são, desde o início dos tempos. Todos os caminhos retilíneos da lógica levam ao caos, à anarquia ou à obediência passiva, por tratar o universo como uma pura engrenagem material ou então como uma ilusão da mente. É somente o místico, o homem que aceita as contradições, que pode sorrir e caminhar livremente pelo mundo.
Você está surpreso pelo fato de que a mesma civilização que acreditou na Trindade descobriu a máquina a vapor? Todos as grandes doutrinas cristãs são deste tipo. Examine-as você mesmo, cuidadosa e justamente. Tenho espaço para apenas dois exemplos. O primeiro é a idéia cristã de Deus. Tal como temos todos sido agnósticos, também temos sido panteístas. Com uma ingenuidade infantil é fácil dizer, “Por que o homem não pode enxergar Deus num vôo de um pássaro e ser feliz?” Mas, vem o tempo em que, indo além, dizemos, “Se Deu está nos pássaros, sejamos não só bonitos como eles, mas sejamos cruéis como os pássaros, vivamos a vida louca e colorida da natureza.” E algo que mantém sua própria inteireza dentro de nós resiste e nos alerta, “Meu amigo, você está enlouquecendo.”
Então vem o outro lado e dizemos: “Os pássaros são odiosos, as flores são vergonhosas. Um universo com tais coisas não merece meu tributo.” E a coisa inteira em nosso íntimo diz: “Meu amigo, você está enlouquecendo.”
Então vem uma coisa fantástica e nos diz: “Você está certo de gostar dos pássaros, mas errado em copiá-los. Há uma coisa boa em todas essas coisas, mas todas essas coisas são menores que você. O Universo está certo, mas o Mundo está errado. A coisa por trás de tudo não é cruel como um pássaro, mas bondosa como um homem.” E a coisa inteira dentro de nós diz: “Encontrei o caminho da montanha.”
Assim, quando o cristianismo surgiu, o mundo antigo tinha acabado de chegar a esse dilema. Ele ouviu a Voz do Culto à Natureza que rezava, “Todas as coisas naturais são boas. A guerra é saudável como as flores. A luxúria é tão cândida como as estrelas.” E ele ouviu também o lamento dos desesperados Estóicos e Idealistas. “As flores estão em guerra: as estrelas estão maculadas: nada é certo além da consciência do homem e esta foi completamente vencida.”
Ambas as visões eram consistentes, filosóficas e exaltadas: suas únicas desvantagens eram que a primeira levava logicamente ao assassinato, e a segunda, ao suicídio. Depois de uma agonia do pensamento, o mundo descobriu um caminho saudável entre os dois. Era o Deus cristão. Ele fez a Natureza mas, Ele era Homem.
Finalmente, há uma palavra a dizer sobre a Queda. Só poderá ser uma palavra, e ela é esta. Sem a doutrina da Queda, toda a idéia do progresso é sem sentido. O Sr. Blatchford diz que não houve uma Queda, mas uma ascensão gradual. Mas, a própria palavra “ascensão” implica que você saiba em que direção está ascendendo. A menos que haja um padrão, você não pode se dizer em ascensão ou em queda. Mas o ponto principal é que a Queda, tal como todos os outros largos caminhos do cristianismo, está embebida, invisivelmente, na linguagem comum. Qualquer um pode dizer, “Muito poucos homens são realmente humanos.” Ninguém diria, “Muito poucas baleias são realmente, ‘baleiais’.”
Se você quisesse dissuadir um homem de beber sua décima dose de whisky, você bateria em suas costas e diria, “Seja homem.” Ninguém que desejasse dissuadir um crocodilo de comer seu décimo explorador, bateria nas costas da fera e diria, “Seja crocodilo.” Pois, não temos nenhuma noção de um crocodilo perfeito, nenhuma alegoria de uma baleia expulsa do Éden ‘baleial’. Se uma baleia viesse ao nosso encontro e dissesse: “Eu sou um novo tipo de baleia, eu abandonei a ‘baleiez’,” não deveríamos nos preocupar. Mas, se um homem viesse até nós (como muitos logo virão) e dissesse, “Eu sou um novo tipo homem. Eu sou o super-homem. Eu abandonei a misericórdia e a justiça;” deveríamos responder, “Sem dúvida você é novo, mas nem um pouco parecido com o homem perfeito, pois este sempre esteve na mente de Deus. Caímos com Adão e ascenderemos com Cristo; mas preferimos cair com Satã, que ascender com você.”
Publicado em The American Chesterton Society
Não tenho a intenção de desrespeitar o Sr. Blatchford dizendo que nossa dificuldade, em grande medida, está em que ele, como a maioria das pessoas inteligentes atualmente, não entende o que é Teologia. Equivocar-se em ciência é uma coisa, mas equivocar-se sobre a natureza da ciência é outra. Na medida em que leio “God and My Neighbour (Deus e o meu vizinho)”, cresce minha convicção de que ele pensa que Teologia é o estudo sobre se as diversas lendas que a Bíblia conta sobre Deus é historicamente demonstrável. É como se ele estivesse tentando provar a um sujeito que o Socialismo seria, na verdade, a sólida ciência da Economia Política[2] e começasse a perceber, no meio do caminho, que o sujeito considerava a Economia Política o estudo sobre se os políticos eram econômicos.
É muito difícil de explicar brevemente a natureza de todo um ativo campo de estudo, tanto quanto o é explicar o que é política ou ética. Pois, quanto maior e mais óbvia é uma coisa, e quanto mais ela te encara face a face, mais difícil é defini-la. Todo mundo pode definir concologia.. Ninguém pode definir a moral.
No entanto, toca-nos tentar explicar essa filosofia religiosa que era, e de novo será, o estudo dos maiores intelectuais e a fundamentação das mais fortes nações, mas que nossa diminuta civilização, há algum tempo, esqueceu, da mesma forma que esqueceu como dançar e como se vestir decentemente. Tentarei explicar porque eu considero necessária uma filosofia religiosa e porque eu considero o cristianismo a melhor filosofia religiosa. Mas, antes que eu faça isso, quero que você se lembre de dois fatos históricos. Não peço para que você tire deles as minhas conclusões ou mesmo qualquer conclusão. Peço que você se lembre deles como simples fatos, ao longo da discussão.
1. O cristianismo surgiu e se expandiu num mundo muito refinado e cínico – num mundo muito moderno. Lucrécio era tão materialista quanto Haeckel e um escritor muito mais persuasivo. O mundo romano tinha lido “God and My Neighbour”, e de uma maneira um tanto sonolenta o considerou verdadeiro. Vale a pena notar que as religiões quase sempre surgem nessas civilizações céticas. Um livro recente sobre a literatura pre-maometana da Arábia descreve uma vida inteiramente luxuosa e refinada. Foi assim com Buda, nascido em berço de ouro, numa antiga civilização. Foi assim com o Puritanismo na Inglaterra e com a Restauração Católica na França e Itália, ambas advindas do racionalismo da Renascença. É assim hoje, e será sempre assim. Vá a dois dos mais modernos centros do pensamento moderno, Paris e EUA, e você encontra-los-á cheios de anjos e demônios, de velhos mistérios e novos profetas. O racionalismo está lutando pela própria vida contra as novas e vigorosas superstições.
2. O cristianismo, que é uma religião muito mística, tem sido, contudo, a religião das porções mais práticas da humanidade. Ele tem mais paradoxos que as filosofias orientais, mas ele também constrói as melhores rodovias. O mussulmano tem uma concepção lógica e pura de Deus, o Alah monístico. Mas ele permanece bárbaro na Europa e a grama não renascerá por onde ele passar. O cristão tem um Deus Trino, “uma trindade oblíqua,” que parece uma caprichosa contradição em termos. Mas, em ação, ele abarca a terra e, mesmo, o mais inteligente oriental só pode com ele lutar, imitando-o a princípio. O Oriente tem sua lógica e vive do arroz. A cristandade tem seus mistérios – e seus automóveis. Não importa a inferência. Como eu disse, registremos os fatos.
Agora com essas duas coisas em mente, deixe-me tentar explicar o que é a Teologia Cristã.
O agnosticismo completo é a atitude óbvia para o homem. Todos somos agnósticos até descobrirmos que o agnosticismo não funciona. Então, adotamos alguma filosofia, a do Sr. Blachford ou a minha, ou alguma outra, pois, o Sr. Blatchford não é mais agnóstico que eu, é claro. O agnóstico diria não estar certo se o homem é responsável pelos seus pecados. O Sr. Blatchford diz que ele tem certeza de que o homem não é.
Aqui temos a semente de toda uma imensa árvore de dogmas. Por que o Sr. Blatchford vai além do agnosticismo e afirma que não há, certamente, livre arbítrio? Porque ele não pode desenvolver seu sistema moral sem afirmar a inexistência do livre arbítrio. Ele deseja que nenhum homem seja culpado de pecado. Portanto, ele tem de convencer seus discípulos de que Deus não os fizeram livres e, por conseguinte, culpáveis. Nenhuma mínima dúvida cristã pode passar pela mente do determinista. Nenhum demônio pode sussurrá-lo, numa hora de angústia, que, talvez, o promotor de vendas fraudulento foi o responsável por ele estar no asilo. Nenhum ataque de ceticismo deve sugeri-lo que, talvez, o professor primário foi o culpado pela surra de matar dada no pequeno garoto. A fé do determinista deve permanecer firme, senão a fraqueza da natureza humana, certamente, fará com que os homens se enfureçam quando são difamados ou devolvam o soco, quando são socados. Em resumo, o livre arbítrio parecerá, em princípio, pertencer ao Desconhecido. Mesmo assim, o Sr. Blatchford não conseguirá pregar o que a ele pareça mera caridade sem afirmar, sobre isso, um dogma. E eu não conseguirei pregar o que me parece ser mera honestidade, sem afirmar outro.
Aqui está a falha do agnosticismo. Que a nossa visão cotidiana das coisas que sabemos (do senso comum), realmente depende de nossa visão de coisas que não sabemos (do senso comum). Tudo bem dizer a um homem, como faz o agnóstico, “cultive seu jardim.” Mas, suponha que ele ignore tudo fora do seu jardim, inclusive o sol e a chuva?
Isso é fato real. Você não pode viver sem dogmas sobre as coisas. Você não pode agir vinte e quatro horas por dia sem decidir se as pessoas são responsáveis ou não. A Teologia é um produto muito mais prático que a Química.
Alguns deterministas imaginam que o cristianismo inventou um dogma como o livre arbítrio por diletantismo – uma simples contradição. Isso é absurdo. Você se confronta com contradições onde quer que você esteja. Os deterministas me dizem, com um grau de verdade, que o determinismo não faz diferença na vida diária. Isso significa que, apesar do determinismo saber que os homens não têm livre arbítrio, mesmo assim, ele continua tratando-os com se tivessem.
A diferença, então, é muito simples. O cristão coloca a contradição em sua filosofia. O determinista a coloca em seus hábitos diários. O cristão afirma, como um mistério declarado, o que o determinista chama nonsense. O determinista tem o mesmo nonsense em seu café da manhã, em seu almoço, em seu chá e em seu jantar, todos os dias de sua vida.
O cristão, repito, coloca o mistério em sua filosofia. Este mistério, pela sua escuridão, ilumina todas as coisas. Depois disso, vida é vida, pão é pão e queijo é queijo: ele pode sorrir e lutar. O determinista torna a questão lógica e lúcida: e à luz dessa lucidez, todas as coisas são obscurecidas, as palavras perdem o sentido, e as ações, o objetivo. Ele fez de sua filosofia um silogismo e dele próprio um lunático delirante. [3]
Essa não é uma questão entre misticismo e racionalidade. É uma questão entre misticismo e loucura. Pois, o misticismo, e somente o misticismo, tem mantido o homem são, desde o início dos tempos. Todos os caminhos retilíneos da lógica levam ao caos, à anarquia ou à obediência passiva, por tratar o universo como uma pura engrenagem material ou então como uma ilusão da mente. É somente o místico, o homem que aceita as contradições, que pode sorrir e caminhar livremente pelo mundo.
Você está surpreso pelo fato de que a mesma civilização que acreditou na Trindade descobriu a máquina a vapor? Todos as grandes doutrinas cristãs são deste tipo. Examine-as você mesmo, cuidadosa e justamente. Tenho espaço para apenas dois exemplos. O primeiro é a idéia cristã de Deus. Tal como temos todos sido agnósticos, também temos sido panteístas. Com uma ingenuidade infantil é fácil dizer, “Por que o homem não pode enxergar Deus num vôo de um pássaro e ser feliz?” Mas, vem o tempo em que, indo além, dizemos, “Se Deu está nos pássaros, sejamos não só bonitos como eles, mas sejamos cruéis como os pássaros, vivamos a vida louca e colorida da natureza.” E algo que mantém sua própria inteireza dentro de nós resiste e nos alerta, “Meu amigo, você está enlouquecendo.”
Então vem o outro lado e dizemos: “Os pássaros são odiosos, as flores são vergonhosas. Um universo com tais coisas não merece meu tributo.” E a coisa inteira em nosso íntimo diz: “Meu amigo, você está enlouquecendo.”
Então vem uma coisa fantástica e nos diz: “Você está certo de gostar dos pássaros, mas errado em copiá-los. Há uma coisa boa em todas essas coisas, mas todas essas coisas são menores que você. O Universo está certo, mas o Mundo está errado. A coisa por trás de tudo não é cruel como um pássaro, mas bondosa como um homem.” E a coisa inteira dentro de nós diz: “Encontrei o caminho da montanha.”
Assim, quando o cristianismo surgiu, o mundo antigo tinha acabado de chegar a esse dilema. Ele ouviu a Voz do Culto à Natureza que rezava, “Todas as coisas naturais são boas. A guerra é saudável como as flores. A luxúria é tão cândida como as estrelas.” E ele ouviu também o lamento dos desesperados Estóicos e Idealistas. “As flores estão em guerra: as estrelas estão maculadas: nada é certo além da consciência do homem e esta foi completamente vencida.”
Ambas as visões eram consistentes, filosóficas e exaltadas: suas únicas desvantagens eram que a primeira levava logicamente ao assassinato, e a segunda, ao suicídio. Depois de uma agonia do pensamento, o mundo descobriu um caminho saudável entre os dois. Era o Deus cristão. Ele fez a Natureza mas, Ele era Homem.
Finalmente, há uma palavra a dizer sobre a Queda. Só poderá ser uma palavra, e ela é esta. Sem a doutrina da Queda, toda a idéia do progresso é sem sentido. O Sr. Blatchford diz que não houve uma Queda, mas uma ascensão gradual. Mas, a própria palavra “ascensão” implica que você saiba em que direção está ascendendo. A menos que haja um padrão, você não pode se dizer em ascensão ou em queda. Mas o ponto principal é que a Queda, tal como todos os outros largos caminhos do cristianismo, está embebida, invisivelmente, na linguagem comum. Qualquer um pode dizer, “Muito poucos homens são realmente humanos.” Ninguém diria, “Muito poucas baleias são realmente, ‘baleiais’.”
Se você quisesse dissuadir um homem de beber sua décima dose de whisky, você bateria em suas costas e diria, “Seja homem.” Ninguém que desejasse dissuadir um crocodilo de comer seu décimo explorador, bateria nas costas da fera e diria, “Seja crocodilo.” Pois, não temos nenhuma noção de um crocodilo perfeito, nenhuma alegoria de uma baleia expulsa do Éden ‘baleial’. Se uma baleia viesse ao nosso encontro e dissesse: “Eu sou um novo tipo de baleia, eu abandonei a ‘baleiez’,” não deveríamos nos preocupar. Mas, se um homem viesse até nós (como muitos logo virão) e dissesse, “Eu sou um novo tipo homem. Eu sou o super-homem. Eu abandonei a misericórdia e a justiça;” deveríamos responder, “Sem dúvida você é novo, mas nem um pouco parecido com o homem perfeito, pois este sempre esteve na mente de Deus. Caímos com Adão e ascenderemos com Cristo; mas preferimos cair com Satã, que ascender com você.”
Publicado em The American Chesterton Society
[1]Reproduzido de The Religious Doubts of Democracy (1904) e de "The Blatchford Controversies" (in The Collected Works of G.K. Chesterton, Vol. 1) (N. do T.)
[2] Nome que a Economia tinha na época. (N. do T.)
[3] A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas, para os que foram salvos, para nós, é uma força divina. Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo? Já que o mundo, com a sua sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura de sua mensagem (...) mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. (1 Cor. 1, 18; 20-21; 23;25) (N. do T.)
14/06/2006
Civilização Ocidental
Quem quiser saber o que é Civilização Ocidental e porque querem destruí-la na visão de Roger Scruton clique http://www.isi.org/lectures/video/ram/v_scruton060403.ram . Quem quiser saber quem é Roger Scruton clique http://www.morec.com/scruton.htm .
Have fun!!!
Have fun!!!
07/06/2006
Uma fábula revisitada
"The Ant and the Grasshopper", extraída do livro "Is Reality Optional? and other essays", de Thomas Sowell
Traduzida e adaptada por Miguel Nagib.
Assim como os filmes “Rocky” e “Guerra nas Estrelas” tiveram suas seqüências, as velhas fábulas deveriam ter as suas. Aqui está a seqüência para uma delas: A Formiga e a Cigarra.
Era uma vez, uma cigarra e uma formiga que viviam no campo. Durante todo o verão, a cigarra cantou e dançou, enquanto a formiga trabalhava duro, debaixo de um sol escaldante, para armazenar comida para o inverno. Quando o inverno chegou, a cigarra teve fome e, num dia frio e chuvoso, procurou a formiga para pedir-lhe comida.
“Quê?! Você está maluca?”, disse a formiga. "Eu arruinei minhas costas durante todo o verão enquanto você cantava e ria de mim por não aproveitar a vida..."
“Eu fiz isso?”, perguntou a cigarra mansamente.
“Sim! Você disse que eu era um desses bobalhões que não compreendiam a essência da moderna filosofia da auto-realização.”
“Puxa, sinto muito”, disse a cigarra. “Eu não sabia que você era tão sensível. Mas certamente você não vai usar isso contra mim numa hora dessas.”
“Bem, eu não costumo guardar rancor, mas tenho boa memória.” Eis que aparece uma outra formiga.
“Olá, Lefty!”, disse a primeira formiga.
“Olá, George.”
“Lefty, você sabe o que essa cigarra quer que eu faça? Que eu lhe dê uma parte da comida pela qual eu trabalhei tanto nesse verão, sob o sol inclemente.”
“Ora, na minha opinião, isso é o mínimo que você devia fazer, até mesmo sem esperar que ela lhe pedisse” disse Lefty.
“Quê?!”
“Quando a natureza distribui seus frutos de forma desigual, podemos ao menos tentar corrigir a desigualdade.”
“Frutos da natureza uma ova!”, disse George. “Eu tive de carregar toda essa comida até aqui, subindo o morro e cruzando um riacho num pedaço de pau, sem me distrair um segundo para não ser comido por outros bichos. Por que esse vagabundo não fez o mesmo para ter o que comer no inverno?”
“Calma, calma, George”, amenizou Lefty. “Não devemos usar a palavra ‘vagabundo’. Hoje dizemos ‘sem-teto’.”
“Pois eu digo ‘vagabundo’ mesmo. Qualquer um que seja tão preguiçoso que não cuide para ter um teto sobre a sua própria cabeça, que prefira ficar na chuva a fazer um pequeno esforço...”
"Eu não sabia que ia chover desse jeito”, interrompeu a cigarra. “O serviço de metereologia previu que faria bom tempo."
“Tempo bom?”, George resmungou. “Foi isso mesmo o que o homem do tempo havia dito a
Noé.”
Lefty pareceu afligir-se. “Estou surpreso com a sua crueldade, George, seu egoísmo e sua avareza.”
“Você ficou louco, Lefty?”
“Não, pelo contrário, eu fui educado.”
“Bem, hoje em dia isso pode ser até mais grave.”
“No verão passado, eu segui uma trilha de migalhas de biscoito deixada por um grupo de estudantes que me levou a uma sala de aula na Universidade.”
“Você esteve na Universidade? Se é assim, não me surpreende que tenha voltado com esse belo discurso e essas idéias idiotas.”
“Eu me recuso a dialogar nesses termos. Em todo caso, lhe digo que participei do curso de Justiça Social do Professor Murky. Ele explicou como a riqueza do mundo é distribuída de forma desigual.”
“Riquezas do mundo?”, repetiu George. “O mundo não carregou essa comida morro acima. O mundo não cruzou o riacho num pedaço de pau. O mundo não correu o risco de ser comido por um devorador de formigas."
“Essa é uma forma estreita de enxergar o problema”, disse Lefty.
“Se você é tão generoso, por que você mesmo não dá de comer a essa cigarra?”
“É isso o que eu vou fazer”, replicou Lefty. E, virando-se para a cigarra, lhe disse: “Venha comigo. Vou levá-la ao albergue do governo. Lá você terá comida e um lugar para dormir”.
“Ah, você está trabalhando para o governo agora?!”
“Sim, eu entrei para o serviço público”, disse Lefty orgulhoso. “I want to 'make a difference' in this world."
“Vê-se que você realmente esteve na Universidade...”, disse George. “Mas se você é tão amigo da cigarra, por que você não a ensina a trabalhar durante o verão para ter o que comer no inverno?”
“Nós não temos o direito de mudar seus costumes e tentar fazer que ela seja como nós. Isso seria imperialismo cultural.”
George estava chocado demais para responder. Lefty não apenas ganhou a discussão, como continuou a expandir o seu programa de albergues para cigarras. Como a notícia se espalhou, uma multidão de cigarras começou a chegar de toda parte. Até que algumas jovens formigas decidiram adotar o estilo de vida das cigarras.
Quando a geração mais velha de formigas se foi, mais e mais formigas se juntaram às cigarras. Finalmente, todas as formigas e todas as cigarras passaram a usar o seu tempo curtindo a vida, sem compromissos, e viveram felizes para sempre – isto é, durante o verão. Então veio o inverno.
Traduzida e adaptada por Miguel Nagib.
Assim como os filmes “Rocky” e “Guerra nas Estrelas” tiveram suas seqüências, as velhas fábulas deveriam ter as suas. Aqui está a seqüência para uma delas: A Formiga e a Cigarra.
Era uma vez, uma cigarra e uma formiga que viviam no campo. Durante todo o verão, a cigarra cantou e dançou, enquanto a formiga trabalhava duro, debaixo de um sol escaldante, para armazenar comida para o inverno. Quando o inverno chegou, a cigarra teve fome e, num dia frio e chuvoso, procurou a formiga para pedir-lhe comida.
“Quê?! Você está maluca?”, disse a formiga. "Eu arruinei minhas costas durante todo o verão enquanto você cantava e ria de mim por não aproveitar a vida..."
“Eu fiz isso?”, perguntou a cigarra mansamente.
“Sim! Você disse que eu era um desses bobalhões que não compreendiam a essência da moderna filosofia da auto-realização.”
“Puxa, sinto muito”, disse a cigarra. “Eu não sabia que você era tão sensível. Mas certamente você não vai usar isso contra mim numa hora dessas.”
“Bem, eu não costumo guardar rancor, mas tenho boa memória.” Eis que aparece uma outra formiga.
“Olá, Lefty!”, disse a primeira formiga.
“Olá, George.”
“Lefty, você sabe o que essa cigarra quer que eu faça? Que eu lhe dê uma parte da comida pela qual eu trabalhei tanto nesse verão, sob o sol inclemente.”
“Ora, na minha opinião, isso é o mínimo que você devia fazer, até mesmo sem esperar que ela lhe pedisse” disse Lefty.
“Quê?!”
“Quando a natureza distribui seus frutos de forma desigual, podemos ao menos tentar corrigir a desigualdade.”
“Frutos da natureza uma ova!”, disse George. “Eu tive de carregar toda essa comida até aqui, subindo o morro e cruzando um riacho num pedaço de pau, sem me distrair um segundo para não ser comido por outros bichos. Por que esse vagabundo não fez o mesmo para ter o que comer no inverno?”
“Calma, calma, George”, amenizou Lefty. “Não devemos usar a palavra ‘vagabundo’. Hoje dizemos ‘sem-teto’.”
“Pois eu digo ‘vagabundo’ mesmo. Qualquer um que seja tão preguiçoso que não cuide para ter um teto sobre a sua própria cabeça, que prefira ficar na chuva a fazer um pequeno esforço...”
"Eu não sabia que ia chover desse jeito”, interrompeu a cigarra. “O serviço de metereologia previu que faria bom tempo."
“Tempo bom?”, George resmungou. “Foi isso mesmo o que o homem do tempo havia dito a
Noé.”
Lefty pareceu afligir-se. “Estou surpreso com a sua crueldade, George, seu egoísmo e sua avareza.”
“Você ficou louco, Lefty?”
“Não, pelo contrário, eu fui educado.”
“Bem, hoje em dia isso pode ser até mais grave.”
“No verão passado, eu segui uma trilha de migalhas de biscoito deixada por um grupo de estudantes que me levou a uma sala de aula na Universidade.”
“Você esteve na Universidade? Se é assim, não me surpreende que tenha voltado com esse belo discurso e essas idéias idiotas.”
“Eu me recuso a dialogar nesses termos. Em todo caso, lhe digo que participei do curso de Justiça Social do Professor Murky. Ele explicou como a riqueza do mundo é distribuída de forma desigual.”
“Riquezas do mundo?”, repetiu George. “O mundo não carregou essa comida morro acima. O mundo não cruzou o riacho num pedaço de pau. O mundo não correu o risco de ser comido por um devorador de formigas."
“Essa é uma forma estreita de enxergar o problema”, disse Lefty.
“Se você é tão generoso, por que você mesmo não dá de comer a essa cigarra?”
“É isso o que eu vou fazer”, replicou Lefty. E, virando-se para a cigarra, lhe disse: “Venha comigo. Vou levá-la ao albergue do governo. Lá você terá comida e um lugar para dormir”.
“Ah, você está trabalhando para o governo agora?!”
“Sim, eu entrei para o serviço público”, disse Lefty orgulhoso. “I want to 'make a difference' in this world."
“Vê-se que você realmente esteve na Universidade...”, disse George. “Mas se você é tão amigo da cigarra, por que você não a ensina a trabalhar durante o verão para ter o que comer no inverno?”
“Nós não temos o direito de mudar seus costumes e tentar fazer que ela seja como nós. Isso seria imperialismo cultural.”
George estava chocado demais para responder. Lefty não apenas ganhou a discussão, como continuou a expandir o seu programa de albergues para cigarras. Como a notícia se espalhou, uma multidão de cigarras começou a chegar de toda parte. Até que algumas jovens formigas decidiram adotar o estilo de vida das cigarras.
Quando a geração mais velha de formigas se foi, mais e mais formigas se juntaram às cigarras. Finalmente, todas as formigas e todas as cigarras passaram a usar o seu tempo curtindo a vida, sem compromissos, e viveram felizes para sempre – isto é, durante o verão. Então veio o inverno.
31/05/2006
Artigo meu no Mídia Sem Máscara
Saiu hoje (31/05/2006) um artigo meu no sítio do Mídia Sem Máscara intitulado "Versão televisiva da compaixão". Seu link é http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4925 .
25/05/2006
Para entender o Brasil de hoje
Se alguém quer entender o que se passa no Brasil hoje, ou seja, o que é a mistura entre PT e PCC, para de ler Folha de São Paulo e cia. e pare, sobretudo de assistir ao Jornal Nacional.
Leia, por exemplo, o artigo transcrito abaixo, do professor e filósofo Olavo de Carvalho. Seja paciente e humilde. O assunto é complexo. Não procure soluções simples para assunto tão complicado. Se algo no que está escrito lhe causar desconforto, continue lendo e depois analise mais atentamente o desconforto. Ele é provavelmente devido a duas visões de mundo conflitantes. Uma é aquela que você vê na telinha da Globo e nas páginas da Folha. A outra é a real, que é descrita no artigo.
Se você acha isso um exagero, dê uma olhadinha no sítio do Mídia Sem Máscara. Acompanhe por alguns dias o sítio e você terá uma nova visão da realidade. Será como um cego que teve sua visãqo de volta. Faça o experimento, com muita humildade e paciência e boa sorte.
Segue o artigo.
____________________
Experimento sociológico
Olavo de Carvalho em 24 de maio de 2006
Resumo: Quando pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, os cientistas sociais não estão cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade.
A maioria dos cientistas sociais não se dedica a outra coisa senão a explicar os acontecimentos como efeitos de "causas" impessoais e anônimas, como por exemplo a "luta de classes" (com todas as variações aí introduzidas pela moda e pelas conveniências táticas), escamoteando a ação concreta dos indivíduos e grupos que dirigem o processo. Tudo aí parece derivar de estruturas, de leis, de estatísticas, reduzindo-se os agentes reais a meros instrumentos, quase sempre inconscientes, de forças coletivas que os transcendem imensuravelmente. A principal utilidade dessa construção fantasiosa é encobrir sob um manto de invisibilidade a força dos próprios cientistas sociais enquanto "agentes de transformação", bem como a dos grupos e entidades que lhes dão sustentação editorial e financeira.
Os exemplos sucedem-se a cada semana, mas tornam-se mais enfáticos nos momentos de confusão e pânico, quando essas criaturas das trevas emergem de seus sepulcros acadêmicos para vir explicar ao mundo que não há nada de novo sob o Sol, que está tudo sob o controle infalível da ciência que professam. Assim, diante do estado insurrecional triunfante produzido em São Paulo por uma iniciativa estratégica bem articulada entre o governo brasileiro e três organizações milionárias, PCC, MST e FARC, o sociólogo francês Loïc Wacquant, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, foi convocado às pressas pela Folha de S. Paulo do dia 15 para acusar os culpados de sempre e ajudar as vítimas a não enxergar os agentes efetivos por trás do processo.
A principal glória curricular do prof. Wacquant é ser autor de dois livros que explicam a criminalidade como efeito da guerra dos ricos contra os pobrezinhos e ter recebido, em função de suas obras, um prêmio da paupérrima John D. & Catherine T. MacArthur Foundation, badalado como "o prêmio dos gênios".
Felizmente, a ciência social às vezes nos fornece o antídoto à sua própria vigarice. No caso, o antídoto é o "experimento imaginário" sugerido por Max Weber para comparar a importância relativa de vários fatores causais numa dada situação. Trata-se de fazer abstração mental de determinado fator e averiguar se, sem ele, os acontecimentos teriam sido possíveis. Suponhamos a miséria e a desigualdade. Elas estão presentes por igual em sociedades assoladas pela violência criminosa e entre povos mais pacíficos como os indianos e os romenos. Mutatis mutandis , a criminalidade no Brasil não se expandiu nas áreas mais pobres, mas justamente naquelas que, ao longo das últimas décadas, passaram da miséria absoluta a um padrão de vida que, na Índia, seria considerado de classe média, como por exemplo as favelas cariocas. Omitida a comparação, porém, restam dentro de cada área isolada sinais aparentes em quantidade bastante para manter viva a impressão de que o crime é efeito da miséria. Acoplada a outro topos da retórica esquerdista, o de que a miséria é causada pelo imperialismo americano, essa crença tem por efeito despertar o ódio aos EUA e fomentar esperanças messiânicas numa nova ordem internacional paradisíaca, a ser instaurada sob os auspícios da ONU, da China e da Rússia. Para a realização desse objetivo trabalham incansavelmente várias fundações bilionárias, entre as quais Rockefeller, Carnegie, Soros e, é claro, MacArthur. Seus esforços nesse sentido já foram bem documentados meio século atrás por uma comissão do Congresso americano (v. René A. Wormser, Foundations: Their Power and Influence , New York, Devin-Adair, 1958) e desde então não fizeram senão multiplicar-se em abrangência e quantidade de recursos, incluindo dotações de dinheiro do próprio governo de Washington, que essas entidades sugam e utilizam para seus próprios fins (de modo que esse governo acaba aparecendo como o culpado do que fazem contra ele). Premiar uns quantos "gênios" que ajudem a revestir de honorabilidade científica a trapaça essencial em que se assenta a operação é a parte menos dispendiosa do orçamento. O grosso do dinheiro vai para fomentar diretamente movimentos subversivos e organizações pró-terroristas (v. a estrutura da rede em http://www.discoverthenetwork.com/ ).
Se, de acordo com o experimento weberiano, abstrairmos do quadro presente a atuação dessas fundações, o resultado será simplesmente que a esquerda revolucionária do Terceiro Mundo não teria podido continuar a existir e prosperar depois da queda da URSS e, portanto, a utilização do crime como instrumento da subversão organizada, que é o seu principal modus operandi na última década, se tornaria inviável.
O banditismo, assim, cresceu junto com o prestígio oficial da tese mesma que o explica pela luta de classes. Alegando razões fundadas nessa teoria, o prof. Wacquant prevê um aumento da violência no Brasil. Mas essas razões são desnecessárias. A violência crescerá junto com o número de idiotas que acreditam no prof. Wacquant.
Se os praticantes da ciência wacquântica fossem sérios, estudariam um pouco de lógica da investigação científica e saberiam que nenhuma correlação causal (entre pobreza e crime ou entre qualquer coisa e qualquer outra) pode ser generalizada para um grupo abrangente de casos sem que esteja muito bem provada ao menos em alguns deles individualmente. Ora, na escala individual a pobreza só pode ser justificação direta e determinante do crime em exemplos excepcionais e raros – tão excepcionais e raros, na verdade, que em todo país civilizado a lei os isenta da qualificação mesma de crimes. São os chamados "crimes famélicos" – o desnutrido que rouba um frango, ou o pai sem tostão que furta um remédio para dar ao filho doente. Em todos os demais casos, a pobreza, se está presente, é um elemento motivacional que, para produzir o crime, tem de se combinar com uma multidão de outros, de ordem cultural e psicológica, entre os quais, é claro, a persuasão pessoal de que delinqüir é a coisa mais vantajosa a fazer nas circunstâncias dadas. Quando o hábito da delinqüência se espalha rapidamente numa ampla faixa populacional, é claro que, antes dele, essa persuasão se tornou crença geral nesse meio, reforçando-se à medida que as vantagens esperadas eram confirmadas pela experiência e pelo falatório. Ora, é de conhecimento público que, entre a mesma população pobre, por exemplo das favelas cariocas ou da periferia paulistana, duas crenças opostas se disseminaram concorrentemente nas últimas três décadas: de um lado, o apelo do crime; de outro, a fé evangélica. Numa população uniformemente pobre, o número de evangélicos praticantes que delinqüem é irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação entre pobreza e crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se pode imaginar. Nenhuma ação humana é determinada diretamente pela situação econômica, mas pela interpretação que o agente faz dela, interpretação que depende de crenças e valores. Estes, por sua vez, vêm da cultura em torno, cujos agentes criadores pertencem maciçamente à camada letrada, como por exemplo os bispos evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos ensinam que, mesmo para o pobre, o crime é um pecado. Os cientistas sociais, que os criminosos, agindo em razão da pobreza, são sempre menos condenáveis do que os ricos e capitalistas que (também por uma correlação geral mágica) criaram a pobreza e são por isso os verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas duas crenças disputam a alma da população pobre. Não é preciso dizer qual delas estimula à vida honesta, qual à prática do crime. Nos bairros mais miseráveis e desassistidos, qualquer um pode fazer esta observação direta e simples: as pessoas de bem repetem o discurso dos bispos, os meliantes o dos cientistas sociais (do sr. Marcola nem preciso dizer nada, já que ele próprio é meio cientista social). Quando, do alto das cátedras, esses senhores pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, não estão cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade. E, quando são premiados por uma organização ostensivamente interessada em disseminar a subversão, como é o caso notório da Fundação MacArthur, eu seria o último a negar que mereceram o prêmio.
Se, deixando de lado as generalizações etéreas, nos atemos à seqüência real dos fatos, a ordem temporal de produção dos acontecimentos da semana passada aparece com o seguinte desenho:
1 - Desde a década de 30, atendendo a uma ordem de Stalin, a intelectualidade esquerdista mundial, onde há mais cientistas sociais per capita do que lobos numa alcatéia, se dedicou ativamente a infundir em todas as patologias sociais, como o crime e o racismo, a substância universalmente explicativa da luta de classes. O esforço dos teóricos foi aí secundado por uma multidão inumerável de romances, filmes, peças de teatro e canções populares que faziam a idéia penetrar profundamente no imaginário popular ao ponto de se tornar um dogma inabalável. Nos países do Terceiro Mundo, justamente graças à profusão de patologias sociais existentes, essa doutrina se impregnou com aderência maior ainda, tornando-se o tema dominante, senão único, de várias culturas nacionais, entre as quais a brasileira (dediquei a esse tema uma série de artigos publicados em 1994 sob o título "Bandidos e letrados").
2 - Quando o ambiente cultural estava suficientemente preparado, a transformação do banditismo em instrumento da luta de classes revolucionária passou da teoria à prática. No Brasil, especialmente, o empenho organizado dos militantes de esquerda para arregimentar a serviço da subversão as gangues de delinqüentes já é um fato abundantemente documentado desde a década de 60. Da esquerda o banditismo absorveu não somente a doutrina e o discurso, mas também as técnicas de guerrilha urbana que empregou, por exemplo, no movimento insurrecional da semana passada. O contato entre as gangues e os grupos terroristas intensificou-se ao ponto de tornar-se institucional. A presença de técnicos das FARC e das organizações terroristas islâmicas em vários grupos criminosos do Brasil já se tornou tão freqüente que não suscita mais nenhuma reação de escândalo. Acostumamo-nos a isso como a um dado da natureza.
3 - Quando a esquerda latino-americana, em 1990, passou por um formidável upgrade com a fundação do Foro de São Paulo, as organizações de narcotraficantes, seqüestradores e assaltantes acompanharam-na na sua ascensão social, assentando-se ao lado de partidos legais como o PT e o PC do B nas assembléias do Foro, coordenação estratégica do movimento comunista latino-americano. Desde então, todo empreendimento subversivo de larga escala, no continente, é realizado sob a supervisão ao menos indireta do Foro de São Paulo. Não há mais iniciativas isoladas: o banditismo avulso vai sendo sepultado na memória coletiva como um resíduo de eras extintas. Por toda a parte o que se vê é integração, conexão, unidade ideológica e estratégica.
4 - Como fundador e principal líder do Foro de São Paulo, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva sempre esteve muito bem informado do grau de organização que seus colegas de militância haviam conseguido transmitir aos grupos de delinqüentes, nas cadeias ou fora delas. Mais informado ainda encontrava-se esse cidadão pelo fato de ser presidente da República, tendo sob seu serviço direto os órgãos de inteligência e a Polícia Federal, além, é claro, da figura insubstituível do seu ministro da Justiça, cuja convivência íntima com os líderes maiores do banditismo nacional tem representado, para ele, mais que um estilo de vida, um meio de próspera subsistência.
5 - Em vista disso, é absolutamente impossível que essas duas excelências ignorassem a preparação do mais vasto movimento insurrecional já planejado neste país no último meio século, e que, portanto, fosse com cândida inocência e desconhecimento das conseqüências que a primeira autorizou e a segunda pôs em prática o indulto que colocou na rua, livres, armados e bem articulados, doze mil delinqüentes, entre os quais os autores da carnificina.
6 - Mais impossível ainda é que os excelentíssimos ignorassem o detalhe mais lindamente perverso da situação que geraram. Todo mundo sabe que, neste país, os policiais recebem uma quantidade irrisória de munições, tendo de dispender do próprio bolso para garantir-se em situações de risco de vida. Ao ver-se acossados, nas ruas, nos batalhões e nos postos, por inimigos decididos a tudo e incomparavelmente mais armados e municiados, os policiais paulistas, naturalmente, correram às lojas de armamentos para trocar o leite das crianças por meios elementares de defesa. Com enorme surpresa, descobriram que um determinado item da lei do desarmamento, que até então jazia inerte num papel, tinha acabado de entrar em vigor: não podiam comprar munição nenhuma sem autorização escrita da Polícia Federal. Comerciantes de armas relatam que viram policiais saírem de suas lojas chorando, conscientes de que estavam condenados à morte sem apelação. Se me disserem que o sr. ministro da Justiça ignorava essa armadilha, responderei então que ele é o mais estúpido incompetente que já passou pelo seu cargo, já que a entidade encarregada de fornecer as autorizações repentinamente exigidas e faltantes está sob o seu comando direto. Mas somente um país muito louco, muito alienado, mantém nesse cargo, numa hora dessas, o advogado pessoal do próprio chefe da insurreição. Como defensor de Marcola, o sr. Márcio Thomaz Bastos tem confiabilidade zero até mesmo para dar uma opinião imparcial quanto aos acontecimentos da semana passada, quanto mais para reter em suas mãos, com avareza assassina, os meios de defesa que teriam podido salvar centenas de pessoas.
7 - Aqueles que acima da suspeita racional coloquem a crença dogmática na idoneidade do governo petista podem apostar numa conjunção fortuita de fatores, na santa e pura coincidência. Eu é que não.P.S.- A situação de total desamparo em que o governo brasileiro deixa os policiais, entregando-os à mercê dos criminosos, já é um fato oficialmente reconhecido pela justiça norte-americana. No fim de abril, um tribunal da Flórida concedeu asilo político a um policial de Minas Gerais por reconhecer que, após matar em tiroteio um importante líder do narcotráfico local, o infeliz estava tão desguarnecido quanto um pato de plástico num estande de tiro. Voltarei ao assunto num próximo artigo. Como a promotoria abdicou de recorrer da sentença, a decisão está incorporada à jurisprudência americana e valerá para os casos subseqüentes. Os policiais brasileiros propositadamente deixados sem munição na hora do aperto já não podem dizer que não têm a quem recorrer: esqueçam o sr. Márcio Thomaz Bastos, peçam socorro à justiça de um país onde existe justiça.
Publicado pelo Diário do Comércio em 22/05/2006.
Leia, por exemplo, o artigo transcrito abaixo, do professor e filósofo Olavo de Carvalho. Seja paciente e humilde. O assunto é complexo. Não procure soluções simples para assunto tão complicado. Se algo no que está escrito lhe causar desconforto, continue lendo e depois analise mais atentamente o desconforto. Ele é provavelmente devido a duas visões de mundo conflitantes. Uma é aquela que você vê na telinha da Globo e nas páginas da Folha. A outra é a real, que é descrita no artigo.
Se você acha isso um exagero, dê uma olhadinha no sítio do Mídia Sem Máscara. Acompanhe por alguns dias o sítio e você terá uma nova visão da realidade. Será como um cego que teve sua visãqo de volta. Faça o experimento, com muita humildade e paciência e boa sorte.
Segue o artigo.
____________________
Experimento sociológico
Olavo de Carvalho em 24 de maio de 2006
Resumo: Quando pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, os cientistas sociais não estão cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade.
A maioria dos cientistas sociais não se dedica a outra coisa senão a explicar os acontecimentos como efeitos de "causas" impessoais e anônimas, como por exemplo a "luta de classes" (com todas as variações aí introduzidas pela moda e pelas conveniências táticas), escamoteando a ação concreta dos indivíduos e grupos que dirigem o processo. Tudo aí parece derivar de estruturas, de leis, de estatísticas, reduzindo-se os agentes reais a meros instrumentos, quase sempre inconscientes, de forças coletivas que os transcendem imensuravelmente. A principal utilidade dessa construção fantasiosa é encobrir sob um manto de invisibilidade a força dos próprios cientistas sociais enquanto "agentes de transformação", bem como a dos grupos e entidades que lhes dão sustentação editorial e financeira.
Os exemplos sucedem-se a cada semana, mas tornam-se mais enfáticos nos momentos de confusão e pânico, quando essas criaturas das trevas emergem de seus sepulcros acadêmicos para vir explicar ao mundo que não há nada de novo sob o Sol, que está tudo sob o controle infalível da ciência que professam. Assim, diante do estado insurrecional triunfante produzido em São Paulo por uma iniciativa estratégica bem articulada entre o governo brasileiro e três organizações milionárias, PCC, MST e FARC, o sociólogo francês Loïc Wacquant, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, foi convocado às pressas pela Folha de S. Paulo do dia 15 para acusar os culpados de sempre e ajudar as vítimas a não enxergar os agentes efetivos por trás do processo.
A principal glória curricular do prof. Wacquant é ser autor de dois livros que explicam a criminalidade como efeito da guerra dos ricos contra os pobrezinhos e ter recebido, em função de suas obras, um prêmio da paupérrima John D. & Catherine T. MacArthur Foundation, badalado como "o prêmio dos gênios".
Felizmente, a ciência social às vezes nos fornece o antídoto à sua própria vigarice. No caso, o antídoto é o "experimento imaginário" sugerido por Max Weber para comparar a importância relativa de vários fatores causais numa dada situação. Trata-se de fazer abstração mental de determinado fator e averiguar se, sem ele, os acontecimentos teriam sido possíveis. Suponhamos a miséria e a desigualdade. Elas estão presentes por igual em sociedades assoladas pela violência criminosa e entre povos mais pacíficos como os indianos e os romenos. Mutatis mutandis , a criminalidade no Brasil não se expandiu nas áreas mais pobres, mas justamente naquelas que, ao longo das últimas décadas, passaram da miséria absoluta a um padrão de vida que, na Índia, seria considerado de classe média, como por exemplo as favelas cariocas. Omitida a comparação, porém, restam dentro de cada área isolada sinais aparentes em quantidade bastante para manter viva a impressão de que o crime é efeito da miséria. Acoplada a outro topos da retórica esquerdista, o de que a miséria é causada pelo imperialismo americano, essa crença tem por efeito despertar o ódio aos EUA e fomentar esperanças messiânicas numa nova ordem internacional paradisíaca, a ser instaurada sob os auspícios da ONU, da China e da Rússia. Para a realização desse objetivo trabalham incansavelmente várias fundações bilionárias, entre as quais Rockefeller, Carnegie, Soros e, é claro, MacArthur. Seus esforços nesse sentido já foram bem documentados meio século atrás por uma comissão do Congresso americano (v. René A. Wormser, Foundations: Their Power and Influence , New York, Devin-Adair, 1958) e desde então não fizeram senão multiplicar-se em abrangência e quantidade de recursos, incluindo dotações de dinheiro do próprio governo de Washington, que essas entidades sugam e utilizam para seus próprios fins (de modo que esse governo acaba aparecendo como o culpado do que fazem contra ele). Premiar uns quantos "gênios" que ajudem a revestir de honorabilidade científica a trapaça essencial em que se assenta a operação é a parte menos dispendiosa do orçamento. O grosso do dinheiro vai para fomentar diretamente movimentos subversivos e organizações pró-terroristas (v. a estrutura da rede em http://www.discoverthenetwork.com/ ).
Se, de acordo com o experimento weberiano, abstrairmos do quadro presente a atuação dessas fundações, o resultado será simplesmente que a esquerda revolucionária do Terceiro Mundo não teria podido continuar a existir e prosperar depois da queda da URSS e, portanto, a utilização do crime como instrumento da subversão organizada, que é o seu principal modus operandi na última década, se tornaria inviável.
O banditismo, assim, cresceu junto com o prestígio oficial da tese mesma que o explica pela luta de classes. Alegando razões fundadas nessa teoria, o prof. Wacquant prevê um aumento da violência no Brasil. Mas essas razões são desnecessárias. A violência crescerá junto com o número de idiotas que acreditam no prof. Wacquant.
Se os praticantes da ciência wacquântica fossem sérios, estudariam um pouco de lógica da investigação científica e saberiam que nenhuma correlação causal (entre pobreza e crime ou entre qualquer coisa e qualquer outra) pode ser generalizada para um grupo abrangente de casos sem que esteja muito bem provada ao menos em alguns deles individualmente. Ora, na escala individual a pobreza só pode ser justificação direta e determinante do crime em exemplos excepcionais e raros – tão excepcionais e raros, na verdade, que em todo país civilizado a lei os isenta da qualificação mesma de crimes. São os chamados "crimes famélicos" – o desnutrido que rouba um frango, ou o pai sem tostão que furta um remédio para dar ao filho doente. Em todos os demais casos, a pobreza, se está presente, é um elemento motivacional que, para produzir o crime, tem de se combinar com uma multidão de outros, de ordem cultural e psicológica, entre os quais, é claro, a persuasão pessoal de que delinqüir é a coisa mais vantajosa a fazer nas circunstâncias dadas. Quando o hábito da delinqüência se espalha rapidamente numa ampla faixa populacional, é claro que, antes dele, essa persuasão se tornou crença geral nesse meio, reforçando-se à medida que as vantagens esperadas eram confirmadas pela experiência e pelo falatório. Ora, é de conhecimento público que, entre a mesma população pobre, por exemplo das favelas cariocas ou da periferia paulistana, duas crenças opostas se disseminaram concorrentemente nas últimas três décadas: de um lado, o apelo do crime; de outro, a fé evangélica. Numa população uniformemente pobre, o número de evangélicos praticantes que delinqüem é irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação entre pobreza e crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se pode imaginar. Nenhuma ação humana é determinada diretamente pela situação econômica, mas pela interpretação que o agente faz dela, interpretação que depende de crenças e valores. Estes, por sua vez, vêm da cultura em torno, cujos agentes criadores pertencem maciçamente à camada letrada, como por exemplo os bispos evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos ensinam que, mesmo para o pobre, o crime é um pecado. Os cientistas sociais, que os criminosos, agindo em razão da pobreza, são sempre menos condenáveis do que os ricos e capitalistas que (também por uma correlação geral mágica) criaram a pobreza e são por isso os verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas duas crenças disputam a alma da população pobre. Não é preciso dizer qual delas estimula à vida honesta, qual à prática do crime. Nos bairros mais miseráveis e desassistidos, qualquer um pode fazer esta observação direta e simples: as pessoas de bem repetem o discurso dos bispos, os meliantes o dos cientistas sociais (do sr. Marcola nem preciso dizer nada, já que ele próprio é meio cientista social). Quando, do alto das cátedras, esses senhores pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, não estão cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade. E, quando são premiados por uma organização ostensivamente interessada em disseminar a subversão, como é o caso notório da Fundação MacArthur, eu seria o último a negar que mereceram o prêmio.
Se, deixando de lado as generalizações etéreas, nos atemos à seqüência real dos fatos, a ordem temporal de produção dos acontecimentos da semana passada aparece com o seguinte desenho:
1 - Desde a década de 30, atendendo a uma ordem de Stalin, a intelectualidade esquerdista mundial, onde há mais cientistas sociais per capita do que lobos numa alcatéia, se dedicou ativamente a infundir em todas as patologias sociais, como o crime e o racismo, a substância universalmente explicativa da luta de classes. O esforço dos teóricos foi aí secundado por uma multidão inumerável de romances, filmes, peças de teatro e canções populares que faziam a idéia penetrar profundamente no imaginário popular ao ponto de se tornar um dogma inabalável. Nos países do Terceiro Mundo, justamente graças à profusão de patologias sociais existentes, essa doutrina se impregnou com aderência maior ainda, tornando-se o tema dominante, senão único, de várias culturas nacionais, entre as quais a brasileira (dediquei a esse tema uma série de artigos publicados em 1994 sob o título "Bandidos e letrados").
2 - Quando o ambiente cultural estava suficientemente preparado, a transformação do banditismo em instrumento da luta de classes revolucionária passou da teoria à prática. No Brasil, especialmente, o empenho organizado dos militantes de esquerda para arregimentar a serviço da subversão as gangues de delinqüentes já é um fato abundantemente documentado desde a década de 60. Da esquerda o banditismo absorveu não somente a doutrina e o discurso, mas também as técnicas de guerrilha urbana que empregou, por exemplo, no movimento insurrecional da semana passada. O contato entre as gangues e os grupos terroristas intensificou-se ao ponto de tornar-se institucional. A presença de técnicos das FARC e das organizações terroristas islâmicas em vários grupos criminosos do Brasil já se tornou tão freqüente que não suscita mais nenhuma reação de escândalo. Acostumamo-nos a isso como a um dado da natureza.
3 - Quando a esquerda latino-americana, em 1990, passou por um formidável upgrade com a fundação do Foro de São Paulo, as organizações de narcotraficantes, seqüestradores e assaltantes acompanharam-na na sua ascensão social, assentando-se ao lado de partidos legais como o PT e o PC do B nas assembléias do Foro, coordenação estratégica do movimento comunista latino-americano. Desde então, todo empreendimento subversivo de larga escala, no continente, é realizado sob a supervisão ao menos indireta do Foro de São Paulo. Não há mais iniciativas isoladas: o banditismo avulso vai sendo sepultado na memória coletiva como um resíduo de eras extintas. Por toda a parte o que se vê é integração, conexão, unidade ideológica e estratégica.
4 - Como fundador e principal líder do Foro de São Paulo, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva sempre esteve muito bem informado do grau de organização que seus colegas de militância haviam conseguido transmitir aos grupos de delinqüentes, nas cadeias ou fora delas. Mais informado ainda encontrava-se esse cidadão pelo fato de ser presidente da República, tendo sob seu serviço direto os órgãos de inteligência e a Polícia Federal, além, é claro, da figura insubstituível do seu ministro da Justiça, cuja convivência íntima com os líderes maiores do banditismo nacional tem representado, para ele, mais que um estilo de vida, um meio de próspera subsistência.
5 - Em vista disso, é absolutamente impossível que essas duas excelências ignorassem a preparação do mais vasto movimento insurrecional já planejado neste país no último meio século, e que, portanto, fosse com cândida inocência e desconhecimento das conseqüências que a primeira autorizou e a segunda pôs em prática o indulto que colocou na rua, livres, armados e bem articulados, doze mil delinqüentes, entre os quais os autores da carnificina.
6 - Mais impossível ainda é que os excelentíssimos ignorassem o detalhe mais lindamente perverso da situação que geraram. Todo mundo sabe que, neste país, os policiais recebem uma quantidade irrisória de munições, tendo de dispender do próprio bolso para garantir-se em situações de risco de vida. Ao ver-se acossados, nas ruas, nos batalhões e nos postos, por inimigos decididos a tudo e incomparavelmente mais armados e municiados, os policiais paulistas, naturalmente, correram às lojas de armamentos para trocar o leite das crianças por meios elementares de defesa. Com enorme surpresa, descobriram que um determinado item da lei do desarmamento, que até então jazia inerte num papel, tinha acabado de entrar em vigor: não podiam comprar munição nenhuma sem autorização escrita da Polícia Federal. Comerciantes de armas relatam que viram policiais saírem de suas lojas chorando, conscientes de que estavam condenados à morte sem apelação. Se me disserem que o sr. ministro da Justiça ignorava essa armadilha, responderei então que ele é o mais estúpido incompetente que já passou pelo seu cargo, já que a entidade encarregada de fornecer as autorizações repentinamente exigidas e faltantes está sob o seu comando direto. Mas somente um país muito louco, muito alienado, mantém nesse cargo, numa hora dessas, o advogado pessoal do próprio chefe da insurreição. Como defensor de Marcola, o sr. Márcio Thomaz Bastos tem confiabilidade zero até mesmo para dar uma opinião imparcial quanto aos acontecimentos da semana passada, quanto mais para reter em suas mãos, com avareza assassina, os meios de defesa que teriam podido salvar centenas de pessoas.
7 - Aqueles que acima da suspeita racional coloquem a crença dogmática na idoneidade do governo petista podem apostar numa conjunção fortuita de fatores, na santa e pura coincidência. Eu é que não.P.S.- A situação de total desamparo em que o governo brasileiro deixa os policiais, entregando-os à mercê dos criminosos, já é um fato oficialmente reconhecido pela justiça norte-americana. No fim de abril, um tribunal da Flórida concedeu asilo político a um policial de Minas Gerais por reconhecer que, após matar em tiroteio um importante líder do narcotráfico local, o infeliz estava tão desguarnecido quanto um pato de plástico num estande de tiro. Voltarei ao assunto num próximo artigo. Como a promotoria abdicou de recorrer da sentença, a decisão está incorporada à jurisprudência americana e valerá para os casos subseqüentes. Os policiais brasileiros propositadamente deixados sem munição na hora do aperto já não podem dizer que não têm a quem recorrer: esqueçam o sr. Márcio Thomaz Bastos, peçam socorro à justiça de um país onde existe justiça.
Publicado pelo Diário do Comércio em 22/05/2006.
06/05/2006
A VERBORRAGIA DOS INTELECTUAIS
por Rodrigo Constantino
Quando algumas pessoas afirmam que a resposta para todos os nossos males encontra-se na palavra mágica “educação”, inevitavelmente me vem à cabeça a figura de Marilena Chauí. A professora da USP tem até doutorado, mas defende tudo de errado no mundo. Não que eu menospreze a relevância da educação. Ela é fundamental, sem dúvida. Apenas não é a panacéia que alguns pensam, como se fosse curar todas as doenças do nosso povo. Creio que o buraco é mais embaixo. Somos prisioneiros de uma mentalidade torta, que deposita no Estado uma fé messiânica, transferindo a responsabilidade, que é individual, para entes coletivos. Há um grave problema cultural no país. Somente aprender a ler e escrever não resolve isso. Marilena Chauí é a prova disso.
O contra-exemplo para quem deposita toda a fé na educação está em Cuba. Dizem que não há analfabetos naquela ilha-presídio. No entanto, sobra miséria, enquanto Fidel aparece entre os mais ricos do mundo, segundo a revista Forbes, que avalia em quase um bilhão de dólares sua fortuna. Os cubanos são analfabetos funcionais. Como disse Mário Quintana, “os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem”. De que adianta saber ler e ter apenas um jornal como fonte de “informação”, controlado pelo ditador? Para que vale saber ler e ser vítima de doutrinação ideológica desde cedo, nas escolas? O que importa ter diploma e não ter emprego? Temos taxistas engenheiros e prostitutas diplomadas. Isso é o resultado de “educação” sem liberdade econômica. Fica então a pergunta: qual educação é válida?
Voltando ao exemplo de Marilena Chauí, temos nessa intelectual o ícone das pregações esquerdistas que sempre fracassaram, trazendo infinita miséria para as cobaias dessas experiências grotescas. Lembro que o socialismo não foi idealizado por proletários, mas sim por intelectuais eruditos. A doutora Chauí, que tenta culpar fatores exógenos pela enorme crise moral que seu querido partido se meteu, defende aberrações como o MST e ainda enxerga importância no Fórum Social Mundial, cacofonia sem propostas concretas que serve apenas de palco para críticas vazias. O “outro mundo possível” pregado pelos seus participantes é na verdade a Utopia, o “não-lugar”, que na prática leva ao caos e terror dos países que testaram o comunismo. O fato de Chauí ter um doutorado parece não ajudá-la a enxergar o óbvio, partindo da premissa altamente questionável de que ela é honesta intelectualmente.
Os absurdos pregados por Chauí parecem ser infindáveis. A professora considera que justiça “consiste em tornar iguais os desiguais”. Como seres humanos sempre serão diferentes em inúmeros aspectos – tais como altura, beleza, peso e gostos – podemos concluir que tal igualdade diz respeito somente ao fator financeiro. Tamanho materialismo só pode ser fruto de uma grande inveja de quem detesta o sucesso alheio. Afinal, riqueza não é estática, mas sim dinâmica e criada por indivíduos. Para um ficar rico, o outro não tem que ficar pobre. Defender a igualdade material, tirando dos ricos para dar aos pobres, é imoral, além de ineficiente, pois nenhuma nova riqueza será criada assim. Fica também a suspeita de hipocrisia, dado que a professora vive com bem mais conforto que a média, e poderia começar sua “justiça social” doando seus bens materiais para pessoas mais pobres. Defender o altruísmo com o esforço alheio é fácil.
Marilena Chauí culpa o “neoliberalismo” pelos problemas brasileiros. Como pode alguém com tanta erudição desconhecer que o liberalismo passou mais distante do Brasil que Plutão da Terra? Será que tanta “educação” não foi suficiente para a intelectual saber que estamos depois da octogésima posição no ranking de liberdade econômica tanto do Heritage como do Frasier, conhecidos institutos internacionais? Que “neoliberalismo” é esse onde abrir uma empresa é tarefa hercúlea, e fechar é impossível? Onde está a liberdade econômica quando a burocracia controla cada detalhe dos negócios? O Brasil é tudo, menos liberal. Chauí, com mestrado e doutorado, não sabe disso?
Em resumo, educar o povo é crucial, uma condição necessária para o progresso da nação. Mas não parece ser suficiente. Afinal, qual educação será dada é uma questão fundamental. O que será lido quando o povo souber ler? Quando vemos famosos intelectuais defendendo ideologias totalmente fracassadas, fica a dúvida: será que o povo poderá ter uma educação decente sob a tutela de professores como Marilena Chauí? Me parece que antes de tudo os brasileiros precisam de um antídoto contra a verborragia dos intelectuais de esquerda. A maioria das desgraças humanas não foi parida por idéias de completos ignorantes, mas sim por intelectuais de renome, como a senhora Marilena Chuaí.
http://rodrigoconstantino.blogspot.com
Rodrigo Constantino é economista, formado pela PUC-RJ, com MBA de Finanças pelo IBMEC.
Quando algumas pessoas afirmam que a resposta para todos os nossos males encontra-se na palavra mágica “educação”, inevitavelmente me vem à cabeça a figura de Marilena Chauí. A professora da USP tem até doutorado, mas defende tudo de errado no mundo. Não que eu menospreze a relevância da educação. Ela é fundamental, sem dúvida. Apenas não é a panacéia que alguns pensam, como se fosse curar todas as doenças do nosso povo. Creio que o buraco é mais embaixo. Somos prisioneiros de uma mentalidade torta, que deposita no Estado uma fé messiânica, transferindo a responsabilidade, que é individual, para entes coletivos. Há um grave problema cultural no país. Somente aprender a ler e escrever não resolve isso. Marilena Chauí é a prova disso.
O contra-exemplo para quem deposita toda a fé na educação está em Cuba. Dizem que não há analfabetos naquela ilha-presídio. No entanto, sobra miséria, enquanto Fidel aparece entre os mais ricos do mundo, segundo a revista Forbes, que avalia em quase um bilhão de dólares sua fortuna. Os cubanos são analfabetos funcionais. Como disse Mário Quintana, “os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem”. De que adianta saber ler e ter apenas um jornal como fonte de “informação”, controlado pelo ditador? Para que vale saber ler e ser vítima de doutrinação ideológica desde cedo, nas escolas? O que importa ter diploma e não ter emprego? Temos taxistas engenheiros e prostitutas diplomadas. Isso é o resultado de “educação” sem liberdade econômica. Fica então a pergunta: qual educação é válida?
Voltando ao exemplo de Marilena Chauí, temos nessa intelectual o ícone das pregações esquerdistas que sempre fracassaram, trazendo infinita miséria para as cobaias dessas experiências grotescas. Lembro que o socialismo não foi idealizado por proletários, mas sim por intelectuais eruditos. A doutora Chauí, que tenta culpar fatores exógenos pela enorme crise moral que seu querido partido se meteu, defende aberrações como o MST e ainda enxerga importância no Fórum Social Mundial, cacofonia sem propostas concretas que serve apenas de palco para críticas vazias. O “outro mundo possível” pregado pelos seus participantes é na verdade a Utopia, o “não-lugar”, que na prática leva ao caos e terror dos países que testaram o comunismo. O fato de Chauí ter um doutorado parece não ajudá-la a enxergar o óbvio, partindo da premissa altamente questionável de que ela é honesta intelectualmente.
Os absurdos pregados por Chauí parecem ser infindáveis. A professora considera que justiça “consiste em tornar iguais os desiguais”. Como seres humanos sempre serão diferentes em inúmeros aspectos – tais como altura, beleza, peso e gostos – podemos concluir que tal igualdade diz respeito somente ao fator financeiro. Tamanho materialismo só pode ser fruto de uma grande inveja de quem detesta o sucesso alheio. Afinal, riqueza não é estática, mas sim dinâmica e criada por indivíduos. Para um ficar rico, o outro não tem que ficar pobre. Defender a igualdade material, tirando dos ricos para dar aos pobres, é imoral, além de ineficiente, pois nenhuma nova riqueza será criada assim. Fica também a suspeita de hipocrisia, dado que a professora vive com bem mais conforto que a média, e poderia começar sua “justiça social” doando seus bens materiais para pessoas mais pobres. Defender o altruísmo com o esforço alheio é fácil.
Marilena Chauí culpa o “neoliberalismo” pelos problemas brasileiros. Como pode alguém com tanta erudição desconhecer que o liberalismo passou mais distante do Brasil que Plutão da Terra? Será que tanta “educação” não foi suficiente para a intelectual saber que estamos depois da octogésima posição no ranking de liberdade econômica tanto do Heritage como do Frasier, conhecidos institutos internacionais? Que “neoliberalismo” é esse onde abrir uma empresa é tarefa hercúlea, e fechar é impossível? Onde está a liberdade econômica quando a burocracia controla cada detalhe dos negócios? O Brasil é tudo, menos liberal. Chauí, com mestrado e doutorado, não sabe disso?
Em resumo, educar o povo é crucial, uma condição necessária para o progresso da nação. Mas não parece ser suficiente. Afinal, qual educação será dada é uma questão fundamental. O que será lido quando o povo souber ler? Quando vemos famosos intelectuais defendendo ideologias totalmente fracassadas, fica a dúvida: será que o povo poderá ter uma educação decente sob a tutela de professores como Marilena Chauí? Me parece que antes de tudo os brasileiros precisam de um antídoto contra a verborragia dos intelectuais de esquerda. A maioria das desgraças humanas não foi parida por idéias de completos ignorantes, mas sim por intelectuais de renome, como a senhora Marilena Chuaí.
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Rodrigo Constantino é economista, formado pela PUC-RJ, com MBA de Finanças pelo IBMEC.
03/05/2006
A BARBÁRIE DO “ESPECIALISMO”
Jose Ortega y Gasset
A tese era que a civilização do século XIX produziu automaticamente o homem-massa. Convém não fechar sua exposição geral sem analisar, num caso particular, a mecânica dessa produção. Desta sorte, ao concretizar-se, a tese ganha em força persuasiva.
Esta civilização do século XIX, dizia eu, pode resumir-se em duas grandes dimensões: democracia liberal e técnica. Tomemos agora somente a última. A técnica contemporânea nasce da copulação entre o capitalismo e a ciência experimental. Não toda técnica é científica. Aquele que fabricou os machados de pedra, no período chelense, carecia de ciência, e, não obstante, criou uma técnica. A China chegou a um alto grau de tecnicismo sem suspeitar em nada a existência da física. Só a técnica moderna da Europa possui uma raiz científica, e dessa raiz lhe vem seu caráter específico, a possibilidade de um ilimitado progresso. As demais técnicas — mesopotâmica, nilota, grega, romana, oriental — espraiam-se até um ponto de desenvolvimento que não podem ultrapassar, e apenas o tocam começam a retroceder em lamentável involução.
Esta maravilhosa técnica ocidental tornou possível a maravilhosa proliferação da casta européia. Recorde-se o dado de que tomou seu vôo este ensaio e que, como eu disse, encerra germinalmente todas estas meditações. Do século V a 1800 a Europa não consegue ter uma população superior a 180 milhões. De 1800 a 1914 ascende a mais de 460 milhões. O pulo é único na história humana. Não há dúvida de que a técnica — junto com a democracia liberal — engendrou o homem-massa no sentido quantitativo desta expressão. Mas estas páginas tentaram mostrar que também é responsável da existência do homem-massa no sentido qualitativo e pejorativo do termo.
Por “massa” — prevenia eu no princípio — não se entende especialmente o obreiro; não designa aqui uma classe social, mas uma classe ou modo de ser homem que se dá hoje em todas as classes sociais, que por isso mesmo representa o nosso tempo, sobre o qual predomina e impera. Agora vamos ver isso com sobrada evidência.
Quem exerce o poder social? Quem impõe a estrutura de seu espírito na época? Sem dúvida, a burguesia. Quem, dentro dessa burguesia é considerado como o grupo superior, com a aristocracia do presente? Sem dúvida, o técnico: engenheiro, médico, financista, professor etc. etc. Quem, dentro do grupo técnico, o representa com maior altitude e pureza? Sem dúvida, o homem de ciência. Se um personagem astral visitasse a Europa, e com ânimo de julgá-la lhe perguntasse por que tipo de homem, entre os que a habitam, preferia ser julgada, não há dúvida de que a Europa apontaria satisfeita e certa de uma sentença favorável, seus homens de ciência. É claro que o personagem astral não perguntaria por indivíduos excepcionais, mas procuraria a
regra, o tipo genérico “homem de ciência”, cume da humanidade européia.
Pois bem: o homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unipessoal de cada homem de ciência, mas porque a técnica mesma — raiz da civilização — o converte automaticamente em homem-massa; quero dizer, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno.
A coisa é muito conhecida: fez-se constar inúmeras vezes; mas, somente articulada no organismo deste ensaio, adquire a plenitude de seu sentido e a evidência de sua gravidade.
A ciência experimental inicia-se ao finalizar o século XVI (Galileu), consegue constituir-se nos finais do XVII (Newton) e começa a desenvolver-se nos meados do XVIII. O desenvolvimento de algo é coisa diferente de sua constituição e está submetido a condições diferentes. Assim, a constituição da física, nome coletivo da ciência experimental, obrigou a um esforço de unificação. Tal foi a obra de Newton e demais homens de seu tempo. Mas o desenvolvimento da física iniciou uma faina de caráter oposto à unificação para progredir, a ciência necessitava que os homens de ciência se especializassem. Os homens de ciência, não a ciência. A ciência não é especialista. Ipso facto deixaria de ser verdadeira. Nem sequer a ciência empírica, tomada na sua integridade, é verdadeira se a separamos da matemática, da lógica, da filosofia. Mas o trabalho nela tem de ser — irremissivelmente — especializado.
Seria de grande interesse, e maior utilidade que a aparente à primeira vista, fazer uma história das ciências físicas e biológicas, mostrando o processo de crescente especialização no trabalho dos investigadores. Isso faria ver como, geração após geração, o homem de ciência tem sido constrangido, encerrado num campo de ocupação intelectual cada vez mais estreito. Mas não é isto o importante que essa história nos ensinaria, mas justamente o inverso: como em cada geração o científico, por ter de reduzir sua órbita de trabalho, ia progressivamente perdendo contato com as demais partes da ciência, com uma interpretação integral do universo, que é o único merecedor dos nomes de ciência, cultura, civilização européia.
A especialização começa, precisamente, num tempo que chama homem civilizado ao homem “enciclopédico”. O século XIX inicia seus destinos sob a direção de criaturas que vivem enciclopedicamente, embora sua produção tenha já um caráter de especialismo. Na geração seguinte, a equação se deslocou, e a especialidade começa a desalojar dentro de cada homem de ciência a cultura integral. Quando em 1890 uma terceira geração assume o comando intelectual da Europa, encontramo-nos com um tipo de científico sem exemplo na história. É um homem que, de tudo quanto há de saber para ser um personagem discreto, conhece apenas determinada ciência, e ainda dessa ciência só conhece bem a pequena porção em que ele é ativo investigador. Chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber.
O caso é que, fechado na estreiteza de seu campo visual, consegue, com efeito, descobrir novos fatos e fazer avançar sua ciência, que ele apenas conhece, e com ela a enciclopédia do pensamento, que conscienciosamente desconhece. Como foi e é possível coisa semelhante? Porque convém repisar a extravagância deste fato inegável: a ciência experimental progrediu em boa parte mercê do trabalho de homens fabulosamente medíocres, e menos que medíocres. Quer dizer, que a ciência moderna, raiz e símbolo da civilização atual, deu guarida dentro de si ao homem intelectualmente médio e lhe permite operar com bom êxito. A razão disso está no que é, ao mesmo tempo, vantagem maior e perigo máximo da ciência nova e de toda civilização que esta dirige e representa: a mecanização. Uma boa parte das coisas que é preciso fazer em física e em biologia é faina mecânica de pensamento que pode ser executada por qualquer pessoa. Para os efeitos de inúmeras investigações é possível dividir a ciência em pequenos segmentos, encerrar-se em um e desinteressar-se dos demais. A firmeza e exatidão dos métodos permitem esta transitória e prática desarticulação do saber. Trabalha-se com um desses métodos como com uma máquina, e nem sequer é forçoso para obter abundantes resultados possuir idéias rigorosas sobre o sentido e fundamento deles. Assim a maior parte dos científicos propelem o progresso geral da ciência encerrados num nicho de seu laboratório, como a abelha no seu alvéolo.
Por isso cria uma casta de homens sobremodo estranhos. O investigador que descobriu um novo fato da Natureza tem por força de sentir uma impressão de domínio e de segurança em sua pessoa. Com certa aparente justiça se considerará como “um homem que sabe”. E, com efeito, nele se dá um pedaço de algo que, junto com outros pedaços não existentes nele, constituem verdadeiramente o saber. Esta é a situação íntima do especialista, que nos primeiros anos deste século chegou à sua mais frenética exageração. O especialista “sabe” muito bem seu mínimo rincão de universo; mas ignora basicamente todo o resto.
Eis aqui um precioso exemplar deste estranho homem novo que eu tentei, por uma e outra de suas vertentes e aspectos, definir. Eu disse que era uma configuração humana sem igual em toda a história. O especialista serve-nos para concretizar energicamente a espécie e fazendo ver todo o radicalismo de sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.
E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas as tomará com energia e suficiência, sem admitir — e isto é o paradoxal — especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização o tornou hermético e satisfeito dentro de sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia o levará a querer predominar fora de sua especialidade. E a conseqüência é que, ainda neste caso, que representa um maximum de homem qualificado — especialismo — e, portanto, o mais oposto ao homem-massa, o resultado é que se comportará sem qualificação e como homem-massa em quase todas as esferas da vida.
A advertência não é vaga. Quem quiser pode observar a estupidez com que pensam, julgam e atuam hoje na política, na arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os “homens de ciência”, e é claro, depois deles, médicos, engenheiros, financistas, professores, etc. Essa condição de “não ouvir”, de não se submeter a instâncias superiores que reiteradamente apresentei como característica do homem-massa, chega ao cúmulo nesses homens parcialmente qualificados. Eles simbolizam, e em grande parte constituem o império atual das massas, e sua barbárie é a causa mais imediata da desmoralização européia.
Por outra parte, significam o mais claro e preciso exemplo de como a civilização do último século abandonada à sua própria inclinação, produziu esse broto de primitivismo e barbárie.
O resultado mais imediato desse especialismo não compensado tem sido que hoje, quando há maior número de “homens de ciência” que nunca, haja muito menos homens “cultos” que, por exemplo, em 1750. E o pior é que com esses perdigueiros do forno científico nem sequer está garantido o progresso íntimo da ciência. Porque esta necessita de tempo em tempo, como orgânica regulação de seu próprio incremento, um trabalho de reconstituição, e, como eu disse, isso requer um esforço de unificação, cada vez mais difícil, que cada vez complica regiões mais vastas do saber total. Newton pode criar seu sistema físico sem saber muita filosofia, mas Einstein precisou saturar-se de Kant e de Mach para poder chegar a sua aguda síntese. Kant e Mach — com estes nomes simboliza-se só a massa enorme de pensamentos filosóficos e psicológicos que influíram em Einstein — serviram para liberar a mente desse e deixar-lhe a via livre para sua inovação. Mas Einstein não é suficiente. A física entra na crise mais profunda de sua história, e só poderá salvá-la uma nova enciclopédia mais sistemática que a primeira.
O especialismo, pois, que tornou possível o progresso da ciência experimental durante um século, aproxima-se a uma etapa em que não poderá avançar por si mesmo se não se encarrega uma geração melhor de construir-lhe um novo forno mais poderoso.
Mas se o especialista desconhece a fisiologia interna da ciência que cultiva, muito mais radicalmente ignora as condições históricas de sua perduração, isto é, como devem estar organizados a sociedade e o coração do homem, para que possa continuar havendo investigadores. A decadência de vocação científica que se observa nestes anos — à qual já aludi — é um sintoma preocupador para todo aquele que tenha uma idéia clara do que é civilização, a idéia que sói faltar ao típico “homem de ciência”, cume de nossa atual civilização. Também ele acredita que a civilização está aí, simplesmente, como a crosta terrestre e a selva primigênea.
Texto integral: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ortega.html
A tese era que a civilização do século XIX produziu automaticamente o homem-massa. Convém não fechar sua exposição geral sem analisar, num caso particular, a mecânica dessa produção. Desta sorte, ao concretizar-se, a tese ganha em força persuasiva.
Esta civilização do século XIX, dizia eu, pode resumir-se em duas grandes dimensões: democracia liberal e técnica. Tomemos agora somente a última. A técnica contemporânea nasce da copulação entre o capitalismo e a ciência experimental. Não toda técnica é científica. Aquele que fabricou os machados de pedra, no período chelense, carecia de ciência, e, não obstante, criou uma técnica. A China chegou a um alto grau de tecnicismo sem suspeitar em nada a existência da física. Só a técnica moderna da Europa possui uma raiz científica, e dessa raiz lhe vem seu caráter específico, a possibilidade de um ilimitado progresso. As demais técnicas — mesopotâmica, nilota, grega, romana, oriental — espraiam-se até um ponto de desenvolvimento que não podem ultrapassar, e apenas o tocam começam a retroceder em lamentável involução.
Esta maravilhosa técnica ocidental tornou possível a maravilhosa proliferação da casta européia. Recorde-se o dado de que tomou seu vôo este ensaio e que, como eu disse, encerra germinalmente todas estas meditações. Do século V a 1800 a Europa não consegue ter uma população superior a 180 milhões. De 1800 a 1914 ascende a mais de 460 milhões. O pulo é único na história humana. Não há dúvida de que a técnica — junto com a democracia liberal — engendrou o homem-massa no sentido quantitativo desta expressão. Mas estas páginas tentaram mostrar que também é responsável da existência do homem-massa no sentido qualitativo e pejorativo do termo.
Por “massa” — prevenia eu no princípio — não se entende especialmente o obreiro; não designa aqui uma classe social, mas uma classe ou modo de ser homem que se dá hoje em todas as classes sociais, que por isso mesmo representa o nosso tempo, sobre o qual predomina e impera. Agora vamos ver isso com sobrada evidência.
Quem exerce o poder social? Quem impõe a estrutura de seu espírito na época? Sem dúvida, a burguesia. Quem, dentro dessa burguesia é considerado como o grupo superior, com a aristocracia do presente? Sem dúvida, o técnico: engenheiro, médico, financista, professor etc. etc. Quem, dentro do grupo técnico, o representa com maior altitude e pureza? Sem dúvida, o homem de ciência. Se um personagem astral visitasse a Europa, e com ânimo de julgá-la lhe perguntasse por que tipo de homem, entre os que a habitam, preferia ser julgada, não há dúvida de que a Europa apontaria satisfeita e certa de uma sentença favorável, seus homens de ciência. É claro que o personagem astral não perguntaria por indivíduos excepcionais, mas procuraria a
regra, o tipo genérico “homem de ciência”, cume da humanidade européia.
Pois bem: o homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unipessoal de cada homem de ciência, mas porque a técnica mesma — raiz da civilização — o converte automaticamente em homem-massa; quero dizer, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno.
A coisa é muito conhecida: fez-se constar inúmeras vezes; mas, somente articulada no organismo deste ensaio, adquire a plenitude de seu sentido e a evidência de sua gravidade.
A ciência experimental inicia-se ao finalizar o século XVI (Galileu), consegue constituir-se nos finais do XVII (Newton) e começa a desenvolver-se nos meados do XVIII. O desenvolvimento de algo é coisa diferente de sua constituição e está submetido a condições diferentes. Assim, a constituição da física, nome coletivo da ciência experimental, obrigou a um esforço de unificação. Tal foi a obra de Newton e demais homens de seu tempo. Mas o desenvolvimento da física iniciou uma faina de caráter oposto à unificação para progredir, a ciência necessitava que os homens de ciência se especializassem. Os homens de ciência, não a ciência. A ciência não é especialista. Ipso facto deixaria de ser verdadeira. Nem sequer a ciência empírica, tomada na sua integridade, é verdadeira se a separamos da matemática, da lógica, da filosofia. Mas o trabalho nela tem de ser — irremissivelmente — especializado.
Seria de grande interesse, e maior utilidade que a aparente à primeira vista, fazer uma história das ciências físicas e biológicas, mostrando o processo de crescente especialização no trabalho dos investigadores. Isso faria ver como, geração após geração, o homem de ciência tem sido constrangido, encerrado num campo de ocupação intelectual cada vez mais estreito. Mas não é isto o importante que essa história nos ensinaria, mas justamente o inverso: como em cada geração o científico, por ter de reduzir sua órbita de trabalho, ia progressivamente perdendo contato com as demais partes da ciência, com uma interpretação integral do universo, que é o único merecedor dos nomes de ciência, cultura, civilização européia.
A especialização começa, precisamente, num tempo que chama homem civilizado ao homem “enciclopédico”. O século XIX inicia seus destinos sob a direção de criaturas que vivem enciclopedicamente, embora sua produção tenha já um caráter de especialismo. Na geração seguinte, a equação se deslocou, e a especialidade começa a desalojar dentro de cada homem de ciência a cultura integral. Quando em 1890 uma terceira geração assume o comando intelectual da Europa, encontramo-nos com um tipo de científico sem exemplo na história. É um homem que, de tudo quanto há de saber para ser um personagem discreto, conhece apenas determinada ciência, e ainda dessa ciência só conhece bem a pequena porção em que ele é ativo investigador. Chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber.
O caso é que, fechado na estreiteza de seu campo visual, consegue, com efeito, descobrir novos fatos e fazer avançar sua ciência, que ele apenas conhece, e com ela a enciclopédia do pensamento, que conscienciosamente desconhece. Como foi e é possível coisa semelhante? Porque convém repisar a extravagância deste fato inegável: a ciência experimental progrediu em boa parte mercê do trabalho de homens fabulosamente medíocres, e menos que medíocres. Quer dizer, que a ciência moderna, raiz e símbolo da civilização atual, deu guarida dentro de si ao homem intelectualmente médio e lhe permite operar com bom êxito. A razão disso está no que é, ao mesmo tempo, vantagem maior e perigo máximo da ciência nova e de toda civilização que esta dirige e representa: a mecanização. Uma boa parte das coisas que é preciso fazer em física e em biologia é faina mecânica de pensamento que pode ser executada por qualquer pessoa. Para os efeitos de inúmeras investigações é possível dividir a ciência em pequenos segmentos, encerrar-se em um e desinteressar-se dos demais. A firmeza e exatidão dos métodos permitem esta transitória e prática desarticulação do saber. Trabalha-se com um desses métodos como com uma máquina, e nem sequer é forçoso para obter abundantes resultados possuir idéias rigorosas sobre o sentido e fundamento deles. Assim a maior parte dos científicos propelem o progresso geral da ciência encerrados num nicho de seu laboratório, como a abelha no seu alvéolo.
Por isso cria uma casta de homens sobremodo estranhos. O investigador que descobriu um novo fato da Natureza tem por força de sentir uma impressão de domínio e de segurança em sua pessoa. Com certa aparente justiça se considerará como “um homem que sabe”. E, com efeito, nele se dá um pedaço de algo que, junto com outros pedaços não existentes nele, constituem verdadeiramente o saber. Esta é a situação íntima do especialista, que nos primeiros anos deste século chegou à sua mais frenética exageração. O especialista “sabe” muito bem seu mínimo rincão de universo; mas ignora basicamente todo o resto.
Eis aqui um precioso exemplar deste estranho homem novo que eu tentei, por uma e outra de suas vertentes e aspectos, definir. Eu disse que era uma configuração humana sem igual em toda a história. O especialista serve-nos para concretizar energicamente a espécie e fazendo ver todo o radicalismo de sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.
E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas as tomará com energia e suficiência, sem admitir — e isto é o paradoxal — especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização o tornou hermético e satisfeito dentro de sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia o levará a querer predominar fora de sua especialidade. E a conseqüência é que, ainda neste caso, que representa um maximum de homem qualificado — especialismo — e, portanto, o mais oposto ao homem-massa, o resultado é que se comportará sem qualificação e como homem-massa em quase todas as esferas da vida.
A advertência não é vaga. Quem quiser pode observar a estupidez com que pensam, julgam e atuam hoje na política, na arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os “homens de ciência”, e é claro, depois deles, médicos, engenheiros, financistas, professores, etc. Essa condição de “não ouvir”, de não se submeter a instâncias superiores que reiteradamente apresentei como característica do homem-massa, chega ao cúmulo nesses homens parcialmente qualificados. Eles simbolizam, e em grande parte constituem o império atual das massas, e sua barbárie é a causa mais imediata da desmoralização européia.
Por outra parte, significam o mais claro e preciso exemplo de como a civilização do último século abandonada à sua própria inclinação, produziu esse broto de primitivismo e barbárie.
O resultado mais imediato desse especialismo não compensado tem sido que hoje, quando há maior número de “homens de ciência” que nunca, haja muito menos homens “cultos” que, por exemplo, em 1750. E o pior é que com esses perdigueiros do forno científico nem sequer está garantido o progresso íntimo da ciência. Porque esta necessita de tempo em tempo, como orgânica regulação de seu próprio incremento, um trabalho de reconstituição, e, como eu disse, isso requer um esforço de unificação, cada vez mais difícil, que cada vez complica regiões mais vastas do saber total. Newton pode criar seu sistema físico sem saber muita filosofia, mas Einstein precisou saturar-se de Kant e de Mach para poder chegar a sua aguda síntese. Kant e Mach — com estes nomes simboliza-se só a massa enorme de pensamentos filosóficos e psicológicos que influíram em Einstein — serviram para liberar a mente desse e deixar-lhe a via livre para sua inovação. Mas Einstein não é suficiente. A física entra na crise mais profunda de sua história, e só poderá salvá-la uma nova enciclopédia mais sistemática que a primeira.
O especialismo, pois, que tornou possível o progresso da ciência experimental durante um século, aproxima-se a uma etapa em que não poderá avançar por si mesmo se não se encarrega uma geração melhor de construir-lhe um novo forno mais poderoso.
Mas se o especialista desconhece a fisiologia interna da ciência que cultiva, muito mais radicalmente ignora as condições históricas de sua perduração, isto é, como devem estar organizados a sociedade e o coração do homem, para que possa continuar havendo investigadores. A decadência de vocação científica que se observa nestes anos — à qual já aludi — é um sintoma preocupador para todo aquele que tenha uma idéia clara do que é civilização, a idéia que sói faltar ao típico “homem de ciência”, cume de nossa atual civilização. Também ele acredita que a civilização está aí, simplesmente, como a crosta terrestre e a selva primigênea.
Texto integral: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ortega.html
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