Começa hoje a Quaresma. É o período mais importante do Ano
Litúrgico, onde procuramos padecer com Nosso Senhor, e com Sua graça, Sua
Paixão. A Cruz nos acompanhará até a Ressurreição.
O Ano Litúrgico é uma lição anual que a Igreja nos dá, uma
espécie de Catecismo permanente a nos lembrar das Verdades fundamentais,
aquelas que não devemos esquecer até nossa morte. A maior delas nos é ensinada
na Quaresma: que somos pó e ao pó retornaremos. Nada melhor que hoje
relembremos o sermão de Pe. Antônio Vieira, que nos fala sobre isso. Reproduzo
abaixo esse extraordinário sermão, pedindo a Deus, como no Introitus da Missa de hoje:
Misereris omnium, Domine, et nihil odisti eorum
quae fecisti, dissimulans peccata hominum propter paenitentiam et parcens illis:
quia tu es Dominus, Deus noster.
Ps. Miserere mei, Deus, miserere mei: quoniam
in te confidit anima mea. Gloria Patri.
SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZA
(Igreja de S. Antônio dos Portugueses,
Roma. Ano de 1672.)
Padre Antônio Vieira
Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.
Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás
de converter.
I
O pó futuro, em que nos havemos de
converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos
entender essa verdade? A resposta a essa dúvida será a matéria do presente
discurso.
Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os
mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma
de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer:
outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a
alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a
presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois
pó, e em pó vos haveis de converter.
Sois pó, é a presente; em pó vos haveis
de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter,
vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o
entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é
necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou
cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas
pedras?
As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada
que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses
sepulcros recentes do Vaticano.
Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas,
responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano,
aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de
todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é
necessário fé, nem entendimento, basta a vista.
Mas que me diga e me pregue
hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de
futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis
es?
Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o
contrário?
É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta
língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e
pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis
es?
Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me,
e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente,
sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não.
Pois como é pó o sensitivo?
O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o
racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam
que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos
podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta
e a solução dela será a matéria do nosso discurso.
Para que eu acerte a
declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão
importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se
digne de nos alcançar graça.
Ave Maria.
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3 comentários:
Caro Prof. Angueth,
"Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva?"
Estou um pouco confusa sobre os quatro pontos que o Padre Antônio Vieira pede que levemos em consideração todos os dias poderia me explicar o significado de cada uma dessas perguntas? Como devo pensar e meditar cada uma delas?
Desde já agradeço,
Paz e Bem
Moniza
Caro professor,
Se me permite uma dica, há em Librivox.org áudios de ao menos seis sermões do Pe. Vieira; infelizmente não há um da Quarta de Cinzas.
Ouvi-los com frequência parece ajudar bastante a leitura de outros.
Escreva com maior frequência.
Alessandro.
Cara Moniza,
Salve Maria!
Quem sou eu para comentar Pe. Vieira! Preciso lê-lo todo ainda, principalmente seus 30 sermoes sobre o Rosário, dos quais li só o primeiro.
Mas essas quatro perguntas fundamenta o que se chama o "exame de consciência" que todo católico deve fazer todos os dias da vida, além da meditação da própria morte. Aliás, este sermão nada mais é que uma grande meditação sobre nossa própria morte. As quatro perguntas podem ser resumidas numa só: o que tenho feito de minha vida e o que terei para mostrar quando, morto, passar pelo Julgamento Particular, na presença do Altíssimo, cara a cara com Ele. Temor e tremor, estes são os sentimentos de quem vive à espera de tão momentoso encontro.
Como diz Bernanos: "Mas qual é o peso de nossas chances, para nós que aceitamos, de uma vez por todas, a assustadora presença do divino em cada instante de nossas pobres vidas?"
Essa é a situação precária que todo católico vive. Com a virtude da Esperança sempre presente, mas com a presença das três concupiscências a nos desviar sempre de nosso maior objetivo. Somos pó e tudo que há de bom em nós vem de Deus. A única coisa que produzimos por nós mesmos é o pecado. Eis a precariedade de nossa situação.
Ad Iesum per Mariam.
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