Do livro A Coisa, 1929
G.K. Chesterton
Deparei-me, outro dia, mais ou menos indiretamente, com uma senhora de maneiras educadas e até elegantes, do tipo que seus inimigos chamariam de extravagante e seus amigos de refinada, que por acaso mencionou certa pequena cidade da parte oeste do país, e aduziu, com uma voz sibilante, que ela continha “um ninho de católicos romanos”. Isto aparentemente se referia a uma família que casualmente eu conheço. A senhora então disse, com uma voz alterada de profundo fatalismo: “Só Deus sabe o que é dito e feito atrás daquelas portas fechadas.”
Ao ouvir essa estimulante especulação, minha mente retrocedeu às minhas lembranças do lar em questão, que estão ligadas principalmente a biscoitos doces e a uma pequena menina que se persuadira firmemente de que eu era capaz de comer um número ilimitado deles. Mas quando eu contrastei essa memória com a visão daquela senhora, ficou repentina e surpreendentemente claro para mim o vasto abismo que ainda se estende entre nós e muitos de nossos compatriotas, e as extraordinárias idéias que sobre nós ainda entretêm pessoas que andam por aí, sem cuidadores ou camisas-de-força, e que aparentemente são, em todos os outros assuntos, sãos. É, sem dúvida, verdade, e teologicamente razoável, dizer que só Deus sabe o que acontece nas casas dos católicos; como o é dizer que só Deus sabe o que se passa na cabeça dos protestantes. Não sei por que as portas dos católicos deveriam estar mais fechadas que as portas dos outros; o hábito não é incomum em pessoas de todas as crenças filosóficas quando se recolhem à noite; e em outras ocasiões, dependendo do clima ou do gosto pessoal. Mas mesmo aqueles que acham difícil acreditar que um católico comum é tão excêntrico a ponto de se trancar na sala de estar, ou de fumar, assim que ele ponha o pé em casa, têm realmente uma idéia obsessiva de que é mais concebível isto de um católico do que de um metodista calvinista ou de um irmão Plymouth.[1] Permanece o sabor rançoso de um tipo de romance sensacionalista acerca de nós; como se fossemos todos nobres estrangeiros ou conspiradores. E o fato realmente interessante é que esse absurdo melodrama pode ser encontrado entre pessoas instruídas; embora, na atualidade, mais em indivíduos instruídos do que numa classe instruída. O mundo ainda nos faz esse elogio louco e imaginativo ao imaginar que somos muito menos comuns do que realmente somos. O argumento, claro, é aquele com o qual estamos exaustivamente acostumados, em milhares de outros aspectos; o argumento de que porque a evidência contra nós não pode ser encontrada, ela deve ser ocultada. É óbvio que os católicos romanos não gritam uns com os outros nas ruas os detalhes do massacre de São Bartolomeu;[2] e a única conclusão que qualquer homem razoável pode tirar é que eles o fazem a portas fechadas. O projeto de por fogo em Londres não é, exceto raramente, proclamado em letras grandes em pôsteres do Universo; então, que conclusão possível pode haver, senão que os sinais são dados em mesas de chá particulares, por meio de um alfabeto simbólico de biscoitos doces? Seria um exagero dizer que é meu hábito diário pular sobre velhos judeus na rua Fleet e arrancar seus dentes; então, dada minha admitida obsessão, resta apenas supor que minha casa é equipada como uma câmara de tortura para esse modo de odontologia medieval. Os crimes católicos não são maquinados em público, então é razoável supor que eles sejam maquinados em privado. Há realmente uma remota terceira alternativa; que eles não sejam maquinados absolutamente; mas é absurdo esperar que nossos compatriotas sugiram uma coisa tão extravagante.
Ora, essa misteriosa ilusão, ainda muito mais comum do que muitos supõem, mesmo na Inglaterra, e que se estende a todo o interior dos EUA, é por acaso outro exemplo do que sugeri em um ensaio anterior; o fato de que aqueles que estão sempre bisbilhotando e procurando por coisas secretas sobre nós, nunca nem mesmo notaram as coisas mais evidentes sobre eles mesmos. Temos apenas de nos perguntar o que seria dito se realmente confessássemos alguma conspiração tão descaradamente como metade de nossos acusadores fez. O que seria dito, tanto nos EUA quanto na Europa, se realmente tivéssemos nos comportado como uma sociedade secreta, em lugares onde os grupos de nossos inimigos não podem nem mesmo negar que são, eles próprios, sociedades secretas? O que aconteceria se o Congresso Católico de Glasgow ou Leeds realmente consistissem inteiramente de delegados encapuzados de capa e capuz brancos, todos com suas faces cobertas e seus nomes desconhecidos, a observarem pelas frestas de suas apavorantes máscaras brancas? Contudo, esta era, até muito recentemente, a rígida rotina da grande organização americana empenhada em destruir o catolicismo; uma organização que recentemente ameaçou tomar o governo dos EUA. O que seria dito, se realmente houvesse uma coisa definida, reconhecida e inteiramente desconhecida, chamada de Sociedade Secreta dos Católicos; tal como tem havido, desde há muito tempo, uma reconhecida, mas desconhecida Sociedade Secreta dos Maçons? Ouso dizer que muito do que está envolvido em tais coisas é apenas tolice inofensiva. Mas se tivéssemos feito tais coisas, teriam nossos críticos dito que elas eram apenas tolices inofensivas? Suponha que começássemos a disseminar a Fé por meio de um movimento chamado “Know Nothing”[Nada conhecemos],[3] porque tivéssemos o hábito de balançar nossas cabeças, dar de ombros e jurar que nada conhecíamos da Fé que intencionávamos propagar. Suponha que nossa veneração pela dignidade de São Pedro fosse total e completamente uma veneração pela negação de São Pedro; e que a usássemos como um tipo de motto ou senha para o juramento de que não conhecíamos Cristo. Contudo, esta era reconhecidamente a política de todo um movimento político nos EUA, que objetivava destruir a cidadania dos católicos. Suponha que a Máfia e todas as associações secretas de assassinos do Continente estivessem trabalhando notoriamente para o lado católico, e não para o outro lado. Será que nos deixariam sossegados por isso? O mundo não ressoaria com denuncias indignadas acerca da desgraça de nossa conduta, e de uma traição que nunca deveria ser esquecida? Contudo, essas coisas são feitas constantemente, e a intervalos regulares, e inclusive nos dias que correm, por partidos anti-católicos; e nunca é considerado necessário lembrá-las, ou dizer uma palavra de desculpa, nos escritos de qualquer partidário anti-católico. É apenas nosso modo jesuítico que nos faz ousar olhar sobre as cercas, quando todo mundo está apenas roubando cavalos.
Em resumo, o que eu disse recentemente sobre fanatismo é ainda mais verdadeiro sobre coisas secretas. Quanto a haver algo meramente antiquado acerca de certo tipo de estreiteza doutrinal, esta se encontra muito mais em Dayton, Tennesse,[4] do que em Louvain ou Roma. E da mesma forma, quanto a haver algo antiquado sobre todas essas farsas de máscaras e mantos, elas têm sido muito mais características da Ku Klux Klan do que dos Jesuítas. Em verdade, esse tipo de protestante é uma figura de melodrama ultrapassado, em duplo sentido e em duplo aspecto. É antiquado nos complôs que ele nos atribui e naqueles que ele próprio pratica.
Em relação à sua prática, é provável que o mundo a descobrirá muito antes dele. O anticlerical continuará encenando solenemente as trapaças de Cagliostro,[5] como um médium ainda venda os olhos à luz do dia; e abrirá sua boca em palavras de mistério muito depois de todos no mundo estiverem completamente iluminados a respeito dos Illuminati.[6] E embora a comicidade quase imbecil daquela sociedade americana, que parece consistir inteiramente de começar tantas palavras quanto possível com KL, tenha sido atenuada por uma reação de sanidade relativa, não tenho dúvidas de que há ainda muitos nobres companheiros nórdicos saudando-se pelo feliz segredo de serem um Kláguia ou um Klimperador, muito tempo depois que todo mundo parou de se klinteressar por isso. Sob o aspecto político, o poder de tais conspirações foi praticamente desarticulado em ambos os Continentes; na Itália, pelos fascistas e nos EUA, por um conjunto de governadores razoáveis e de espírito público de ambos os partidos políticos. Mas a questão de interesse histórico permanece: a de que as mesmas pessoas que nos acusavam de mistificação e mistério é que envolveram todas as suas atividades secularizadas com mistérios e mistificações muito mais fantásticas; a de que eles nem sequer tiveram a hombridade de lutar contra um antigo ritual com a aparência de uma simplicidade republicana, mas se gabaram de ocultar tudo numa espécie de complexidade cômica; mesmo quando não havia nada a ocultar. Hoje, movimentos com a Ku Klux Klan têm muito pouco a ocultar ou que valha a pena ocultar; e é portanto provável que nossa curiosidade romântica sobre eles seja muito menor que a imperecível curiosidade romântica deles sobre nós. A senhora protestante continuará ressentindo-se do fato de que Deus não compartilhe com ela Seu conhecimento do extraordinário significado do chá com biscoitos doces no lar católico. Mas nós provavelmente sentiremos cada vez menos interesse por qualquer coisa que os Kláguias fazem a portas fechadas [closed doors] – ou talvez eu devesse dizer, portas klechadas (klosed doors).
[1] A Irmandade Plymouth era uma seita milenarista que surgiu em Plymouth, Inglaterra, nos anos 1830. (N. do T.)
[2] O massacre de São Bartolomeu foi o assassinato de protestantes, por católicos franceses, que começou no dia de São Bartolomeu do ano de 1572. (N. do T.)
[3] Partido Americano, ou Know Nothing, anti-católico e anti-imigração, formado apenas por homens protestantes. Este partido floresceu em meados do século XIX, nos EUA, e se opunha fortemente à imigração de católicos irlandeses e alemães. (N. do T.)
[4] Cidade onde, em 1925, aconteceu o julgamento de um professor de biologia, John Scopes, acusado de infringir uma lei estadual que proibia o ensino da teoria da evolução. (N. do T.)
[5] Conde Alessandro Cagliostro (1743-1795) foi o nome assumido pelo siciliano Giuseppe Balsamo, que ganhou notoriedade como alquimista e vendedor de drogas e poções. (N. do T.)
[6] Seita secreta criada, em 1776, por Adam Weishaupt, um obscuro professor de filosofia da Universidade de Ingolstadt, na Bavária. Acredita-se que os Illuminati tiveram participação decisiva na Revolução Francesa e em todo o movimento hoje conhecido como iluminismo. Para isto, ver, por exemplo, Libido Dominandi – Sexual Liberation and Political Control, de E. Michael Jones, Editora Saint Augustine, 2000. (N. do T.)
Um comentário:
Por isso não saio criticando o catolicismo só por ser o catolicismo. Isso nunca leva a coisa boa. Só leva ao engano, ao falso-testemunho e outras coisas tão toscas, que fazem seus praticantes pessoas mais tolas que as vítmas de sua língua enganosa.
Eu tava assistindo o Pe. Paulo Ricardo dando uma sova num protestante desse tipo. Acho interessante que, embora o Chesterton elogie a tradição, condena a parcialidade da velhinha. Aquilo não é senso-comum, né?
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