20/08/2018

Os Santos da Reforma



 O título acima se refere, obviamente, ao exército de santos que Nosso Senhor nos enviou na época da chamada “reforma”, ou o movimento que Lutero iniciou em 1517 e que completa agora 500 anos. Segundo Pe. Rivaux, em seu Tratado de História Eclesiástica: “Lutero, destruindo toda a subordinação à autoridade eclesiástica, proclamando a independência absoluta do espírito, abolindo todas as ideias de abstinência, de mortificação e de penitência, reuniu em suas mãos todo o poder que o inferno tinha na terra.” Palavras terríveis as do Pe. Rivaux; mais terríveis ainda por serem a mais pura verdade. Do ponto de vista espiritual, esquecendo por hora os aspectos históricos, o poder infernal varreu toda a Civilização Ocidental e criou uma situação que não iria ser resolvida jamais. Esse poder ainda devasta o mundo, hoje, com muito mais sofisticação que anteriormente.

Sabemos que o inferno só age com a autorização de Deus, e alguns consideram a Reforma Protestante como um castigo para a Igreja, pelo seu estado lastimável logo no término da Idade Média. Mas como aconteceu com a Queda, depois da qual Deus nos mandou um exército de Profetas e depois Seu próprio Filho, Ele não se esqueceu de seu povo, e nos mandou muitos, muitíssimos santos para salvar o que podia ser salvo da antiga cristandade unida.

Precisávamos mesmo desse exército de santidade, pois o ataque protestante foi diferente de todos até então desferidos contra a Igreja de Cristo. Os ataques anteriores eram heresias e movimentos heréticos em que era possível explorar seus conteúdos, debate-los, defini-los e, enfim, condená-los. Mas o movimento protestante produziu, segundo Belloc[1], “uma pletora de heresias”, não uma heresia. E essas heresias possuíam uma atmosfera comum, ainda segundo Belloc, que prolongava e espalhava uma atmosfera moral muito específica e que conhecemos como protestantismo. As antigas heresias disputavam e rivalizavam-se com a Igreja então existente; o protestantismo propunha dissolver a Igreja Católica. Hoje sabemos o sucesso que esse movimento infernal está logrando.

Chesterton diz, em sua biografia de Santo Tomás, que “cada geração busca seu santo por instinto; e ele não é o que o povo quer, mas, ao contrário, o que o povo precisa.” Isto certamente se aplica a cada santo que Nosso Senhor nos enviou naquele século XVI. Veja-se, por exemplo, esta lista certamente incompleta: Santo Inácio de Loyola (1491-1556), São Francisco Xavier (1506-1552), São Carlos Borromeu (1538-1584), São Francisco de Sales (1567-1622), Santa Teresa D’Ávila (1515-1582), São Francisco Borja (1510-572), São Pedro de Alcântara (1499-1562), Santo Estanislau Kotska (1550-1568), Santo Aloísio Gonzaga (1568-1591), São Felipe Neri (1515-1595), Santa Joana Francisca de Chantal (1572-1641), Santa Maria Madalena de Pazzi (1566-1607), São João de Deus (1495-1550), São Pedro Canísio (1521-1597), São João da Cruz (1542-1591) São Pio V (1504-1565).

O ano de 1550 vê quase todos estes santos vivos (três deles nasceriam pouco depois). Do recém-nascido Santo Estanislau ao quase falecido São João de Deus e os ainda por nascer São Francisco de Sales, Santa Joana e Santo Aloísio. Há documentação abundante da incorruptibilidade dos corpos dos seguintes santos[2]: São Francisco Xavier, São João de Deus, Santa Teresa D’Ávila, Santo Estanislau Kotska, São Carlos Borromeu, São João da Cruz, São Felipe Neri, Santa Maria Madalena de Pazzi, São Francisco de Sales, Santa Joana Francisca de Chantal e São Pio V.

A importância de cada um desses santos é matéria de avaliação pessoal no que tange a devoção pessoal, mas não há como negar que, no plano histórico mais geral, e também no plano sobrenatural, alguns foram mais importantes que outros, na preservação da Fé Católica onde foi possível fazê-lo. O evento central para a preservação da fé foi obviamente o Concílio de Trento. O nome de São Carlos Borromeu está indelevelmente ligado a esse concílio. Ele foi o responsável direto pela elaboração e publicação do Catecismo do Concílio de Trento, conhecido como Catecismo Romano. Quem conhece esse catecismo sabe quão monumental ele é e quão fundamental ele foi para a verdadeira reforma da Igreja. O trabalho desse santo em sua diocese, como bispo, foi também extraordinário.

Belloc destaca, em sua obra sobre a Reforma[3], dois santos que ele denomina de “elementos subsidiários de defesa” da Fé: Santo Inácio de Loiola e São Filipe Neri. São Filipe Neri participou ativamente da reforma do clero e de seus costumes, exatamente no centro da cristandade: Roma. O apóstolo de Roma, com seus exemplos, sua piedade, sua imensa capacidade intelectual, seu amor a Deus e a Nossa Senhora e seus milagres, foi uma motivação extraordinária para a reforma dos costumes e para o terror dos inimigos da Igreja. Além disso, ele teve uma participação central num acontecimento que poderia ter levado a França para o lado dos protestantes. Henrique IV, antes calvinista, tinha abjurado a heresia e se convertido ao catolicismo. No caos das guerras religiosas, ele voltou ao calvinismo. Mais uma vez, ele quis voltar à antiga religião, mas o papa Clemente VIII, com apoio dos cardeais, negou ao rei a absolvição. São Filipe, consciente do que estava acontecendo e prevendo a apostasia da França, fez jejuns e orações extraordinárias e pediu ao Cardeal Barônio, seu filho espiritual e confessor do papa, que o acompanhasse nesses exercícios espirituais. Depois de três dias de práticas espirituais, disse ao cardeal: “Hoje o papa te pedirá para ouvi-lo em confissão, antes de lhe dares a absolvição, dizei-lhe: O Pai Filipe ordenou-me que negasse a V. Santidade a absolvição e lhe declarasse que não continuarei a servir-te de confessor se não concederes absolvição ao rei da França.” Assim Barônio fez. Clemente VIII, impressionado com essa declaração, pediu a absolvição com a promessa de cumprir o pedido de São Filipe. Isso salvou a França para a Fé.

Embora o século XVI tenha presenciado o surgimento de numerosas ordens religiosas (mais um sinal da interferência de Deus para salvar seu povo escolhido), tais como os teatinos, os capuchinhos, os recoletos, os oratorianos, etc, nenhuma foi mais instrumental naquele momento que a ordem criada por Santo Inácio, a Companhia de Jesus. A importância dessa ordem pode ser aquilatada pela quantidade e qualidade dos inimigos que ela suscitou, principalmente dentro da Igreja. Santo Inácio, como militar, deu à sua ordem uma organização militar, uma disciplina militar. E nas guerras religiosas, esse regimento de santos homens lutaram no front mais destituído de soldados; nas fileiras do conhecimento, da retidão pessoal e do ensino. Os jesuítas, como se chamaram os soldados de Santo Inácio, forneceram à Igreja as melhores armas para esse front da guerra. Eles consolidaram um poderoso método de ensino que foi preservado por séculos e que educou toda a Europa católica, consolidando as decisões do Concílio de Trento e formando inumeráveis gerações católicas em todo o mundo. Somos católicos hoje, nós habitantes da América do Sul, por causa dos jesuítas. Quando se espalharam pelo mundo, eles ganharam incontáveis almas para o reino de Nosso Senhor. Um deles, o fabuloso São Francisco Xavier batizou, segundo avaliações da época, mais de um milhão de pessoas na Índia e por onde ele passou. Isso é tão extraordinário quando seus milagres, incluindo várias ressurreições.

Como não falar também do livro que Santo Inácio escreveu, delineando seus Exercícios Espirituais, a base da meditação católica. O cardeal Newman diz desse livro que: “Se há alguma obra que faça bem conhecer a comunhão íntima dos membros da Igreja Católica, com seu Deus e Salvador, é certamente esta”. O papa Paulo III, em 1548, aprovou a obra de Santo Inácio, nestes termos: “Conhecendo que esses Exercícios são cheios de piedade e santidade, muito úteis e salutares à santificação e adiantamento dos fiéis, nós o aprovamos, louvamos e confirmamos no todo e em suas partes: Quoad onmia et singula in eis contenda”. São Francisco de Sales dizia que essa obra tinha salvado tantas almas quantas letras encerrava.

Não é obviamente um mero acaso que São Filipe Neri e Santo Inácio de Loiola foram singularizados por Belloc no processo da Contra-Reforma.

Que todos eles roguem a Deus por nós.



[1] As Grandes Heresias, Hilaire Belloc, trad. Antônio Emílio Angueth de Araújo, Ed. Permanência, 2009.
[2] Ver, por exemplo, The Incorruptibles, Joan Carrol Cruz, Tan Books, 1977.
[3] How The Reformation Happened, Hilaire Belloc, Tan Books, 1992.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que roguem, especialmente, nesses difíceis tempos que no encontramos!

Ps.: Excelente texto.

Att, João Paulo.