OBS: Este texto foi publicado na revista Verbum, Ano I, no. 2, em novembro de 2016.
Nada distingue mais os católicos dos outros cristãos que a
Eucaristia (e todos os outros sacramentos) e a devoção aos santos (incluindo-se
principalmente a devoção à Virgem Maria). O termo cristão designou, por quinze
séculos, os católicos, a Igreja Universal fundada e alimentada por Nosso Senhor
Jesus Cristo. Com o advento do perverso e pervertido Lutero, cristão se tornou
um termo equívoco. Há atualmente cerca de trinta mil denominações protestantes
que usam o termo para se auto definirem. O grande católico inglês Hilaire
Belloc, em seu livro As Grandes Heresias, argumenta que não existe o que se
convencionou chamar de cristianismo. Existe a Igreja e seus inimigos. Aqui, não
há como discordar de Belloc, embora dois outros ingleses escreveram sobre o tal
cristianismo: C.S. Lewis escreveu um livro em que tenta explicar exatamente o
que é o mero cristianismo (Mere
Christianity). Paul Johnson escreveu a história da coisa (História do
Cristianismo). Para Belloc, cristianismo fora da Igreja é heresia.
Assim, pois, a prática da devoção dos santos é um divisor de
águas entre nós católicos e os hereges ditos cristãos. Importante será então
tecermos algumas observações sobre essa prática católica milenar e a doutrina
que a fundamenta. Comecemos, pois, por Nossa Senhora, nossa Mãe Santíssima.
Uma bela nota biográfica de Chesterton nos dá bem a ideia da
importância da Mãe de Deus. No livro A Coisa, que é exatamente a Igreja
Católica, Chesterton nos descreve talvez o momento mesmo de sua completa e
definitiva conversão.
Os homens precisam de uma imagem,
única, colorida e de claros contornos, uma imagem a ser trazida
instantaneamente à imaginação, quando o que é católico precisa ser distinguido
do que alega ser cristão ou mesmo do que é, em certo sentido, cristão.
Dificilmente consigo lembrar uma ocasião em que a imagem de Nossa Senhora não
se impusesse à minha imaginação de forma definitiva, à simples menção ou
pensamento sobre essas coisas. Eu estava muito distante dessas coisas, e então
com dúvidas sobre elas; e por isso, discutindo com o mundo sobre elas, e comigo
mesmo contra elas; pois esta é a condição antes da conversão. Mas mesmo que a
figura estivesse distante, ou fosse obscura e misteriosa, ou fosse um escândalo
para meus contemporâneos, ou fosse um desafio para mim – nunca duvidei que esta
figura fosse o símbolo da Fé; que ela incorporava, como um ser humano ainda
somente humano, tudo o que A Coisa tinha a dizer para a humanidade. No momento
em que me lembrava da Igreja Católica, lembrava-me dela; quando tentava
esquecer a Igreja Católica, eu tentava esquecê-la; quando finalmente percebi o
que era mais nobre que meu destino, o mais livre e o mais difícil de meus atos
de liberdade, foi em frente à pequena imagem dela, dourada e muito brilhante,
no porto de Brindisi, que eu prometi o que eu iria fazer, se eu retornasse ao
meu próprio país.
Vemos aí a ação da Medianeira de todas as Graças agindo na
conversão de um ser humano, criado e alimentado numa igreja protestante, fundada
por Henrique VIII e inspirada por sua amante, com quem queria se casar.
Repitamos a frase principal da nota biográfica para que não haja dúvidas: “nunca
duvidei que esta figura [Nossa Senhora] fosse o símbolo da Fé; que ela
incorporava, como um ser humano ainda somente humano, tudo o que A Coisa [A
Igreja] tinha a dizer para a humanidade.” Assim é que, toda vez que se quer
atacar a Igreja, atacar a nossa Fé, ataca-se nossa Santíssima Mãe. Não é por
outra razão que Pe. Frederick Faber, também advindo da igreja de Henrique VIII,
diz muito claramente:
A devoção à Mãe de nosso Senhor não é
um ornamento do sistema católico, uma beleza supérflua, nem mesmo um auxílio,
dentre os muitos que podemos ou não empregar, mas é parte integral do
cristianismo, e, sem ela, nossa religião não é, estritamente falando, cristã.
Seria uma religião diferente da que Deus revelou. Nossa Senhora é uma lei
distinta de Deus, um meio especial de graça, cuja importância ressalta do ódio
instintivo que lhe tem a heresia.
Ressaltemos a frase que me parece crucial no texto de Faber:
“Nossa Senhora é uma lei distinta de Deus”. Assim, o que todos os santos
afirmam e o que a doutrina nos ensina é que, como Pe. Adolph Tanquerey expõe no
seu Compêndio de Teologia Ascética e Mística:
A veneração à Virgem Santíssima deve
ser maior que a que temos para com os
anjos e santos, porque Ela, pela sua dignidade de Mãe de Deus, pelo seu múnus
de Mediadora, pela sua santidade, sobrepuja todas as criaturas. E, assim, o seu
culto, não obstante ser culto de dulia
e não de latria, é chamado com razão
de culto de hiperdulia, pois é
superior ao que se tributa aos anjos e santos.
O culto de latria
é o devido apenas a Deus, Uno e Trino; é o culto de adoração. O culto de dulia (que significa servidão) é o devido
aos santos em geral; o culto de superdulia
à Nossa Senhora. Assim, devemos ter para com Nossa Mãe a escravidão preconizada
por São Luís Maria de Montfort. Não deixemos dúvidas neste ponto e afirmemos
com Pe. Faber: a devoção à Virgem Maria não é opcional para nós católicos. Só
sairemos do Purgatório pelas mãos de Maria, só entraremos no Reino dos Céus
pelas mãos de Maria. É assim porque Deus quis, e ponto final.
Quanto aos santos em geral e ao nosso Anjo da Guarda em
particular, nossa devoção nasce de maneira diversa. Pode ser que nossos pais
nos tenham posto sob a guarda de algum santo em especial, pois era o santo de
sua devoção. Pode ser que tenhamos nos afeiçoado a algum santo, ao longo de
nossa vida, por razões diversas: algo que tenha nos tocado em suas vidas,
alguma inspiração em nossas orações, a influência de algum padre, algum amigo
ou algum escritor. Esses caminhos da vida mostram também a ação da graça que
vem da Virgem Santíssima. A Igreja nos oferece um panteão amplíssimo de santos
que preenchem todas as nossas necessidades e o calendário litúrgico nos
possibilita rezar por todos eles, todos os dias do ano, prática recomendada
pela Igreja, e muito salutar para a manutenção de nossa Fé.
O Concílio de Trento afirma, e com ele toda a Igreja, que:
Os corpos dos santos Mártires e dos
demais que reinam com Cristo, que outrora foram membros de Cristo e templos do
Espírito Santo, devem ser venerados pelos fiéis, pois os homens obtêm por seu
intermédio muitos benefícios de Deus.
Além disso, o Concílio ordena que as imagens de Cristo, da
Virgem Mãe de Deus e dos outros santos sejam colocadas e guardadas nas igrejas
e se lhes rendam a honra e a reverência devidas, não porque se creia que nelas há alguma divindade ou virtude em
vista da qual se lhes deva prestar culto ou pedir alguma coisa, ou pôr a
confiança nelas, como faziam antigamente os gentios na adoração aos ídolos, mas porque a honra tributada a elas se
refere aos que essas imagens representam; de tal maneira que pelas imagens
que beijamos e ante as quais nos ajoelhamos, adoramos a Cristo e veneramos aos
santos, cuja semelhança possuem. Essa é a essência do que sempre ensinou a
Igreja a todos os católicos, ao longo dos séculos. É nisso que devemos
acreditar e praticar, como nossos irmãos fizeram por mais de dois milênios.
Diante da crise tremenda por que passa a Igreja atualmente,
vemos arrefecer, não surpreendentemente, o culto dos santos e da Virgem
Santíssima. Quem ainda não observou que tiraram de nossas igrejas as imagens
dos santos? Quem não vê nisso um vento frio de tendência protestante varrendo a
Igreja? O jansenismo foi outra tendência protestante que atacou a Igreja nos
séculos XVII e XVIII; seu alvo era a Eucaristia, pois afastava os fiéis deste
sacramento por excesso de escrúpulos. As heresias deixam marcas na Fé, mesmo
depois de contestadas e eventualmente vencidas.
Uma das formas mais eficientes de lutarmos contra todos os
inimigos que nos atacam é praticarmos a devoção aos santos e a Maria
Santíssima. Essa devoção e essa prática só depende de nós; não depende de nenhum
bispo e, nem sequer, do Papa. Afervoremos, pois, nossa devoção. Façamos a nossa
parte e sejamos abençoados pela Virgem Santa e pelos santos de nossa devoção.