16/01/2010

O QUE É “A COISA”?

 

Tenho traduzido um livro de Chesterton pouco conhecido do público brasileiro (“A Coisa”), público este que conhece muito pouco desse extraordinário escritor católico inglês. Em algum momento um leitor pediu que eu desse uma contextualização maior sobre o livro e sobre os ensaios nele contidos. Não tive tempo de fazer mais do que, em todo ensaio traduzido, adicionar a frase “Do livro ‘A Coisa’, publicado em 1929”. Pretendo agora dar um pouco mais de informação sobre o livro, traduzindo a introdução do mesmo e também um comentário de Dale Ahlquist, contido em seu interessante livro “G.K. Chesterton: The Apostle of Common Sense” [G.K. Chesterton: O Apóstolo do Senso Comum].

Apenas como informação adicional, “A Coisa” é o primeiro livro de Chesterton publicado após sua conversão, que ocorreu em 1922. Chesterton era, de fato, um católico muito antes disso. Sua conversão demorou muito, pois ele esperou sua esposa, que era anglicana, para que ambos se convertessem simultaneamente. Que maior prova de amor um marido pode dar à sua esposa?

Sobre esta conversão Ahlquist diz na introdução de seu livro: “Em 1922, eles [seus críticos] ficaram ainda mais chocados, quando G.K. Chesterton se tornou membro da Igreja Católica Romana. Que um grande homem de letras abraçasse a antiga Igreja de Roma era algo como um escândalo no mundo literário e no meio intelectual. Eles pensaram que Chesterton tinha repentinamente se tornado mais limitado, quando de fato, se tornara universal. O que para eles era um completo quebra-cabeça era, para o próprio Chesterton, a peça final do quebra-cabeça, a completude de um completo pensador.”

Antes de passar aos uextos, listo abaixo, na ordem em que aparecem no livro, os 9 ensaios que traduzi até agora, de um total de 35.

A lógica e o tênis

Por que sou católico

A máscara do agnóstico

Um pensamento simples

A Revolta contra as Idéias

As superstições do protestante

Raízes da sanidade

Inge versus Barnes

O que pensamos a respeito

Pretendo traduzir todos os ensaios, se Deus quiser. Vamos aos textos.

Comentário de Dale Ahlquist – Capítulo 6

Em 1929, Chesterton publicou uma coleção de ensaios sobre o sugestivo título “A Coisa”. (Edições modernas do livro têm adicionado o subtítulo “Por que sou católico”, que é o título de um dos ensaios do livro.) O que é “A Coisa”? Não é apenas qualquer coisa. Não é apenas outra coisa. É A Coisa. É a Igreja Católica.

Nesse livro Chesterton compara “A Coisa” com todas as coisas: filosofias mundanas, negócios, nacionalismo, protestantismo, agnosticismo, arte, história, educação, e até mesmo esportes. A palavra “católico” significa “universal”, e nesse livro Chesterton mostra como A Coisa aplica-se a tudo o mais. Ele também mostra com A Coisa se opõe a tudo o mais. Os ataques contra a fé católica vêm de todos os lados. Chesterton nota que a “tolerância religiosa” parece significar que o cristão liberal e tolerante vê o bem em todas as religiões e nada, exceto o mal, na Igreja Católica. Ele não apenas defende a Igreja de uma grande variedade de ataques, ele mostra como ela é a solução correta para todos os dilemas do mundo. Em todos os casos, a posição católica é a do senso comum. “A Fé”, diz ele, “devolve ao homem seu corpo, sua alma, sua razão, sua vontade e sua própria vida.”

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INTRODUÇÃO

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929.

Gilbert Keith Chesterton

Objetar-se-á naturalmente em relação à publicação destes ensaios dizendo que são de natureza efêmera e controvertida. Em outras palavras, o crítico normal os desprezará como excessivamente frívolos e desgostará deles por serem excessivamente sérios. A trégua de bom gosto assaz unilateral, envolvendo todas as questões religiosas, que prevaleceu até pouco tempo atrás, agora deu lugar a uma guerra assaz unilateral. Mas a trégua pode ainda ser invocada, como o terrorismo do gosto é invocado contra a minoria. Todos conhecemos o bom e velho coronel conservador que jura, com sua face vermelha, que não vai falar de política, mas aquela condenação ao inferno de todos aqueles malditos socialistas não é política. Todos temos um agradável sentimento pela querida e velha senhora, que vive em Bath ou Cheltenham, que não sonharia maldizer ninguém, mas que certamente pensa que todos os discordantes são excessivamente temerários ou que empregados irlandeses são realmente impossíveis. É no espírito dessas duas pessoas admiráveis que a controvérsia é agora conduzida na imprensa, em nome de uma Fé Progressiva ou de uma Religião da Irmandade Universal. Assim, contanto que o escritor empregue gestos de companheirismo e hospitalidade vastos e universais a todos os que estão prontos a abandonar suas crenças religiosas, lhe é permitido ser tão rude quanto ele queira a todos os que se aventuram a retê-las. O deão da Catedral de São Paulo se permite alegremente chamar a Igreja Católica de uma corporação traidora e sangrenta; o Sr. H.G. Wells se permite comparar a Santíssima Trindade a uma dança indigna; o Bispo de Birmingham[1] se permite comparar o Santíssimo Sacramento a uma bárbara festa de sangue. Considera-se que frases como estas não conseguem perturbar aquela paz e harmonia humanas que todos os humanitaristas desejam; não há nada NESSAS expressões que poderia interferir com a irmandade e a simpatia que une a sociedade. Podemos estar certos disto, pois temos a palavra dos próprios escritores de que seu objetivo é gerar uma atmosfera de liberalidade e amor. Se, portanto, qualquer interrupção infeliz estragar a harmonia da ocasião, se for realmente impossível que essas festividades fraternais transcorram sem algum tolo distúrbio, ou sem alguém fazer uma cena, é óbvio que a culpa deve recair sobre uns poucos indivíduos irritáveis e irritantes, que não aceitam essas descrições da Trindade, do Santíssimo Sacramento e da Igreja como expressões que tranqüilizem seus sentimentos ou satisfaçam suas idéias.

Está claro em todas essas afirmações que elas são aceitas por todas as pessoas inteligentes, exceto por aqueles que não as aceitam. Mas como eu mesmo, em minha experiência política, me aventurei a duvidar do direito do coronel conservador de amaldiçoar seus oponentes políticos e dizer que isso não é política, ou da senhora de amar a todos e odiar os irlandeses, tenho a mesma dificuldade em admitir o direito do cristão mais liberal e tolerante de ver o bem em todas as religiões e nada, exceto o mal, na minha. Mas sei que publicar réplicas para se contrapor a isso, particularmente réplicas diretas que já foram usadas em controvérsias reais, será considerado por muitos como uma provocação e uma impertinência.

Bem, devo confessar neste caso que sou tão antiquado a ponto de senti-lo como um ponto de honra. Penso que posso dizer que sou normalmente do tipo sociável, que se dá bem com seus semelhantes; nem sempre estou disposto a discutir ou disputar; e valorizo muito as relações geralmente alegres que mantenho com aqueles que de mim diferem por meros argumentos. Gosto muito da Inglaterra, mesmo como ela é, muito diferente do que foi ou poderá vir a ser; tenho vários gostos populares, das histórias de detetives à defesa dos bares; vi-me em muitas situações do lado da maioria, como por exemplo, na propaganda do patriotismo inglês durante a Grande Guerra. Posso até descobrir nessas simpatias um material suficiente para interesses populares; e, num sentido mais prático, nada me satisfaz mais do que escrever histórias de detetive, exceto lê-las. Mas se nesta excessivamente feliz e preguiçosa existência descubro que meus companheiros de religião estão sendo execrados com insultos por dizerem que sua religião é verdadeira, não seria correto que eu não me colocasse na posição de ser também insultado. Muitos deles tiveram uma vida muito dura e eu, uma vida muito fácil, para não considerar um privilégio ser objeto dos mesmos curiosos e controvertidos métodos. Se o deão da Catedral de São Paulo realmente acredita, como ele indubitavelmente diz, que os mais devotos e devotados líderes da Igreja Católica, quando aceitam (realista, e mesmo, relutantemente) o fato de um milagre moderno, eles fazem parte de uma “lucrativa impostura”, devo preferir acreditar que me acusa, juntamente com homens melhores que eu, de me tornar um impostor meramente por lucro imundo. Se a palavra “jesuíta” é usada como sinônimo da palavra “mentiroso”, devo preferir que a mesma simples tradução deva se aplicar à palavra “jornalista”, o que é muito mais freqüentemente verdade. Se o deão acusa os católicos, como católicos, de desejar que homens inocentes morram na prisão (como ele faz), devo preferir que ele me conte como responsável por alguma parte desse terrível e sanguinário melodrama; isso poderia, em qualquer caso, servir de material para uma história de detetive. Em resumo, é precisamente porque eu simpatizo e concordo com meus companheiros protestantes e agnósticos, em noventa e nove assuntos em cem, que sinto ser um ponto de honra não desprezar suas acusações nesses pontos, se eles realmente têm tais acusações a fazer. Sinto muito se este pequeno livro parece ser controvertido em assuntos sobre os quais todo mundo se permite ser controvertido, exceto nós mesmos. Mas temo que não haja solução para isso; e se asseguro ao leitor que tentei começar escrevendo-o com um inquebrantável espírito de caridade, é sempre possível que a caridade possa ser tão unilateral quanto a controvérsia. De qualquer maneira, o livro representa minha atitude em relação à controvérsia; e é quase impossível que tudo nele esteja errado, exceto o que esteja certo.


[1] Bispo da Igreja Anglicana. (N. do T.)

2 comentários:

Anônimo disse...

Professor, bom dia!
Gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre tradução.
Suponha que o sr. encontre um texto excelente sobre Cristo na internet, 100% ortodoxo (segundo a doutrina da Igreja), ótimo para publicar em seu blogue, mas onde o autor falasse, em determinado trecho, do escândalo que era para os gregos a idéia de um Deus que "teve sujeira debaixo das unhas": o sr. simplesmente evitaria esta expressão como se não existisse no original ou a deixaria no texto traduzido? O sr. a acha ofensiva?
Obrigado pela atenção,
Guilherme

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Guilherme,

Vou citar aqui um trecho da obra "A Arte de Traduzir" de Brenno Silveira, com o qual concordo plenamente:

"Antes de mais nada, o tradutor tem de adotar uma titude de humildade diante de original que tem à sua frente. Deve lembrar-se, sempre, de que não é autor, nem co-autor da obra. A sua tarefa é simplesmente esta: passar para a sua língua, da maneira mais fiel possível, tudo o que está escrito no original. Não tem o direito de alterar, modificar, omitir ou acrescentar coisa alguma. O livro, na tradução, tem de ser o que o livro seria se o autor dispusesse de algum meio mágico que lhe permitisse escrevê-lo, simultaneamente, identicamente, em dois idiomas."

Esta é também minha posição. Com Chesterton, às vezes gasto horas para traduzir um seqüência mínima de palavras que se fosse omitida, talvez não tivesse muito impacto no entendimento do texto. Mas se o autor escreveu, tenho de traduzir o mais exatamente possível.

Um abraço.

Antônio Emílio Angueth de Araújo.