O homem depois da Queda, frente à fatalidade da morte, prefere uma queda maior.
Mais sábio é meditares sobre
Esta certeza: morrerás
E não sonharás mais, e os vermes
Ou os cães comerão teu cadáver[2] (quadra 34)
Em lugar de te abandonares
Nos braços desse irmão da Morte,
Bebe vinho! Para dormir
Terás, sabes, a eternidade. (quadra 35)
Este hedonismo é diabólico porque considera Deus um criador malicioso.
Senhor, ó Senhor, responde-nos!
Deste-nos olhos, permitiste
Que a beleza das criaturas
Perturbasse os nossos sentidos
Dotaste-nos da faculdade
De ser felizes, e pretendes
Todavia que renunciemos
A gozar dos bens deste mundo?
Mas isto é-nos mais impossível
Que virar, Senhor, uma taça
Para o chão, sem que se derrame
O líquido que ela contém. (quadra 112)
Nossa compulsão ao vinho, para Khayyam, é uma lei tão inexorável quanto a lei da gravidade. Não podemos resisti-la. E isso é culpa de Deus, que nos criou assim. Khayyam segue culpando Deus pela criação do mal, pura gnose de sotaque persa e puro hedonismo diabólico.
O Criador do Universo e das estrelas
Superou-se a si mesmo ao criar a dor
Bocas como rubis e cabeleiras
Embalsamadas, quantas sois na Terra? (quadra 36)
Estamos largados neste “vale de lágrimas” sem a menor chance de compreendermos nada. Deus é relapso, irresponsável, indiferente à nossa vida que oscila entre o bem e o mal. Assim, devemos beber vinho!
Retóricos e sábios
Morreram sem chegar
À conclusão nenhuma
Sobre o ser e o não-ser
Nós, ignaros, bebamos
O bom suco das uvas,
Deixando aos grandes homens
O regalo das passas. (quadra 58)
Disputam o bem e o mal
A primazia na Terra.
O Céu não é responsável
Pelas voltas do destino.
Não agradeças portanto
O Céu, nem tampouco o acuses ...
O Céu é indiferente
A tuas dores e alegrias. (quadra 51)
Deus é enganador. As coisas que Ele criou nos enganam. Isso foi exatamente o que a serpente disse a Eva no Paraíso, pouco antes do Pecado Original.
Só conhecemos da ventura o nome.
Nosso mais velho amigo é o vinho novo.
Afaga o único bem que não engana:
A urna cheia do sangue dos vinhedos. (quadra 61)
Se Deus é enganador e criador do mal, Khayyam recusa o perdão de Deus.
Podes perseguir-me incessante,
Ó imagem de outra ventura!
Podeis, ó vozes amorosas,
Modular os vossos encantos!
Olho só para o que eu escolhi.
Só escuto o que já me embalou.
Dizem-me: “Deus te perdoará.”
Recuso o perdão que não peço. (quadra 71)
E quem recusa Deus, perde a razão e o entendimento.
Falam de um Criador ...
Terá formado
Então os seres só para destruí-los?
Por que são feios?
Quem é o responsável?
Por que são belos?
Não compreendo nada. (quadra 76)
“Não compreendo nada”: é a voz do vinho, é a voz do nada!
Falam da estrada do Conhecimento ...
Uns dizem tê-la achado, outros procuram-na.
Mas um dia uma voz há de exclamar-lhes:
“Não há estrada nenhuma, nem vereda!” (quadra 77)
“Não há estrada nenhuma, nem vereda!”: é a voz do bêbado nos indicando o caminho.
A contradição é sempre companheira de quem despreza a razão. O apologista do vinho e das raparigas nos diz que é indiferente aos sentidos!
Se soubesses quão pouco me interesso
Pelos quatro elementos naturais
E pelas cinco faculdades do homem!
Certos sábios da Grécia – ao que me dizes
Eram capazes de propor um cento
De enigmas aos ouvintes.
É total
A minha indiferença a tal respeito
Traz-me vinho, toca o alaúde e que as suas notas
Suas modulações façam lembrar-me
A brisa que cicia nas ramagens
Das árvores, a brisa leve, leve,
Leve ...
A brisa que passa como nós! (quadra 98)
“Traz-me vinho”: como será que Khayyam saboreará este vinho? Com um dos cinco sentidos? “Toca o alaúde”: Khayyam escutará o som do alaúde com um dos cinco sentidos ou com algum outro que o vinho lhe tenha dotado? Este é o samba do persa bêbado.
Para terminar este pequeno comentário, vou mostrar um Khayyam cartesiano e kantiano avant la lettre.
O mundo será abolido,
Pois do nosso pensamento
É que a sua realidade
Depende exclusivamente. (última estrofe, quadra 102)
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[2] Uso aqui a tradução de Manuel Bandeira, Ediouro, 2001.
2 comentários:
Caro Angueth,
Acho que essas quadras de Khayyam remetem ao típico niilismo que assola a humanidade atual, bomabardeada que foi por pensadores como Kant, Comte, Marx, Nietszche, Freud e Sartre. É o triunfo da idéia sobre a realidade que, em termos práticos, significa tão-somente a nulidade da existência, reduzida, agora, ao que determinar o pensamento e esmagada sob o peso da inexorabilidade do fim das coisas.
Em termos bíblicos, o hedonismo do persa lembra a advertência que nos oferecem os primeiros capítulos do livro da Sabedoria, preservado no cânon católico. Os excertos aqui citados encaixam-se á perfeição com o insensato que, sob a égide da morte vindoura, entrega-se aos prazeres, atitude que o documento sagrado demonstra, firmemente, ser de uma tolice exemplar.
Abraços
P.S.: você já leu a Epopéia de Gilgamesh? Curiosamente, ela reflete uma busca ímpar pelo sentido da existência, mas no meu entender termina em um pessimismo que já aponta para o hedonismo, como "saída" (o protagonista é incitado a resignar-se diante da fatalidade da morte, restando-lhe somente viver intensamente o que o mundo lhe oferece). Claro, em linha e proporção bem distintas mesmo de Khayyam.
Caro Eduardo,
Muito bem lembrado o livro da Sabedoria. Talvez eu utilize sua idéia num post futuro, uma comparação entre Rubaiyat e o livro da Sabedoria.
Muito obrigado pela visita.
Antônio Emílio Angueth de Araújo
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