A revista Veja, em sua edição 2078, de 17 de setembro de 2008, publica uma resenha de dois livros que tratam do tema do diabo, Anjos Caídos e Satã. O resenhista é Jerônimo Teixeira.
Não li nenhum dos dois livros e nem irei lê-los, pois tenho mais o que fazer. Mas chamam a atenção na resenha algumas afirmações. Se elas são do sr. Jerônimo ou dos autores dos livros, não fica claro no texto.
Uma observação inicial é a de que há uma superficialidade insuportável na resenha. Tal como em outra resenha que comentei aqui (O mal, os católicos e a Veja), parece que atualmente os resenhistas têm muito pouco interesse em se aprofundar no tema do livro que eles comentam. As obras que o sr. Jerônimo cita, além da que ele comenta, para dar um sabor de erudição ao seu texto são “Legenda Áurea” e “Fausto”. A referência à “Legenda Áurea” mostra que tipo de conhecimento tem o resenhista, pois qualquer católico minimamente informado sabe que a obra é totalmente condenável por ser inverídica[1]. Ele ainda cita uma referência de Charles Baudelaire ao diabo. No mais, o sr. Jerônimo tenta fazer o diabo parecer um ser absolutamente ridículo.
Aqui lembro-me de Bernanos em seu “Diário de um Pároco de Aldeia”, quando o pároco diz: “Pois Satã é um amo muito rígido: ele não ordenaria, como o Outro, com sua simplicidade divina: ‘Imitem-me!’ Ele não suporta que suas vítimas se assemelhem a ele, permite-lhes apenas uma caricatura grosseira, impotente, com a qual deve se deliciar, sem jamais se saciar, a feroz ironia do abismo.” Lembro também da advertência inicial que C.S. Lewis faz em seu “Cartas de um Diabo a seu Aprendiz”: “Há dois erros semelhantes mas opostos que os seres humanos podem cometer quanto aos demônios. Um é não acreditar em sua existência. O outro é acreditar que eles existem e sentir um interesse excessivo e pouco saudável por eles. Os próprios demônios ficam igualmente satisfeitos com ambos os erros, e saúdam o materialista e o mago com a mesma alegria.” Faria muito bem ao sr. Jerônimo ler tanto o livro de Bernanos quanto o de Lewis.
Comentemos pois a resenha, no que ela tem de mais significativo. A primeira frase que chama a atenção é: “No cômputo final, Satanás é quase como um figurante na Bíblia. Sua aparição”. A outra, semelhante a essa é: “A narrativa cristã da perdição e da redenção do homem quase poderia prescindir do Coisa-Ruim.” Notem, primeiramente, que satanás e coisa-ruim são escritos com letra maiúscula e redenção com minúscula. Daí se vê que o sr. Jerônimo não entende bem as coisas que comenta. Não entende que a Redenção só foi necessária por causa da Queda, que teve participação direta da serpente, que outra coisa não é que satanás.
Com relação à posição bíblica de figurante de satanás, vamos clarear um pouco as coisas. Primeiramente, nós católicos, somos os primeiros a admitir que as referências bíblicas a satanás não são numerosas. Mas elas são muito significativas. Vejamos algumas:
“Como caíste do céu,
ó astro brilhante, que, ao nascer
do dia, brilhavas?
Como caíste por terra, tu que ferias as nações?
Que dizias no teu coração: Subirei
ao céu,
estabelecerei o meu trono acima dos astros de Deus,
sentar-me-ei sobre o monte da aliança,
(situado) aos lados do aquilão.
Sobrepujarei a altura das nuvens,
Serei semelhante ao Altíssimo.
E contudo foste precipitado no inferno,
Até ao mais profundo dos abismos.” (Is 14:12-15)
“Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e para os seus anjos”. (Mt 25:41)
“Eu via satanás cair do céu como um raio.”(Lc 10:18)
“Houve no céu uma grande batalha: Miguel e os seus anjos pelejavam contra o dragão, e o dragão com os seus anjos pelejava contra ele; porém estes não prevaleceram, nem o seu lugar se encontrou mais no céu. Foi precipitado aquele grande dragão, aquela antiga serpente, que se chama demônio e satanás, que seduz todo o mundo, foi precipitado na terra, e foram precipitados como ele os seus anjos.” (Ap 12:7-9)
Somam-se a essas, as narrativas dos três Evangelhos sinóticos sobre as tentações de Nosso Senhor Jesus Cristo pelo demônio. Sobre elas há um comentário belíssimo de Bento XVI em seu livro “Jesus de Nazaré”.
Essas (e outras) poucas referências bíblicas são a palavra da Sagradas Escrituras. Para nós, católicos, além das Sagradas Escrituras, há também a Tradição da Igreja. E aí há muitíssimas referências ao diabo, da Patrística latina e grega, de vários grandes teólogos, dos Concílios e dos Papas.
Há assim uma riqueza imensa de comentários sobre a natureza do pecado dos anjos rebeldes e de sua rebelião contra Deus.
O Concílio que definiu o dogma referente ao demônio foi o IV Concílio Laterano de 1215: “Diabolus enim et alii dæmones a Deo quidem naturâ creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali.” [O diabo e os outros demônios foram criados por Deus naturalmente bons, mas por si mesmos se tornaram maus.]
Que o diabo tenha a natureza angélica, que ele tenha sido criado bom e se rebelado por orgulho encerra um grande ensinamento para nós católicos: o grande pecado contra Deus é o orgulho ou soberba. É ele que pode nos levar aos infernos e é em direção a ele que o demônio nos empurra. Por isso, a primeira das bem-aventuranças é: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Os ricos de espírito são os orgulhosos e: “Ai de vós ricos, porque recebestes já a consolação.”
Depois de tudo isso, o sr. Jerônimo termina sua resenha, dando razão a Baudelaire “que observou que o maior truque do Diabo é nos convencer de que ele não existe.” O resenhista conclui: “Faz sentido: é só dar-lhe um pouco de atenção, para o Diabo se tornar uma figurinha ridícula.” Quem escreve diabo com letra maiúscula, protocolando-o o maior respeito, e depois o chama de figurinha ridícula ou perdeu o juízo ou quer brincar com fogo.
Nós católicos queremos a maior distância do diabo, pois sabemos que ele é mau e muito mais poderoso que nós humanos. Por isso rezamos pedindo a proteção dos santos, da Virgem Maria, nossa grande protetora contra o demônio e do Altíssimo Jesus Cristo que, quando entre nós, expulsou muitos demônios que atentavam os seres humanos e em nome de quem é feito o exorcismo católico.
Quem se interessar pelo assunto “demônio” pode consultar a Enciclopédia Católica sobre Demônio e Demonologia.
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[1] Ver, por exemplo, o verbete Beato Jacopo de Veragine, da Enciclopédia Católica.
16 comentários:
Desculpe minha ignorância, mas, poderia comentar a frase:
A referência à “Legenda Áurea” mostra que tipo de conhecimento tem o resenhista, pois qualquer católico minimamente informado sabe que a obra é totalmente condenável por ser inverídica.
Parabéns pelo belo apostolado.
Angueth, enquanto o MSM não volta ao ar, você não poderia publicar aqui as novas traduções do Sowell?
agradeço
Caro anônimo,
A Legenda Áurea é um livro devocional que como livro histórico sobre os santos peca por muitos exageros sobre a vida dos mesmos. O resenhista tomou uma história contida neste livro para exemplificar a ação do demônio sob o ponto de vista católico. Essa é a razão de meu comentário.
Antônio Emílio Angueth de Araújo
Caro anônimo,
Sobre Sowell, vou conversar com o editor do MSM sobre o assunto.
Obrigado. Antônio Emílio.
Estava querendo comprar a Legenda Áurea. O senhor recomendaria outro livro?
pois é professor, faço também a mesma solictação do comentarista anterior.
Acho que o mídia não vai mais entrar no ar. Não é possivel que se demore tanto pra consertar o que um hacker fez.
Assim, publicar os artigos do Sowell por aqui seria uma bela idéia.
Abraços,
Caros,
Sobre os artigos de Sowell, eu conversei com o editor do MSM. Ele acha que, sendo o MSM o detentor da autorização de publicação dos artigos, é aconselhável que somente o MSM os publique. Eu concordo com ele.
Os artigos estão sendo distribuídos normalmente através da newsletter do MSM.
Antônio Emílio Angueth de Araújo.
Caro anônimo,
A vida dos santos é muito importante para todo católico. Eles são nossos exemplos, a prova viva do caminho que leva à vida eterna. No entanto, não é fácil acharmos textos historicamente precisos sobre os santos.
Algumas sugestões: artigos de Gustavo Corção (acesse a Permanência e depois Gustavo Corção); as biografias de São Francisco de Assis e Santo Tomás de Aquino escritas por Chesterton, o livro "Vida e conduta de Santo Antão" escrito por Santo Atanásio e finalmente, a Enciclopédia Católica, que infelizmente está em inglês, em www.newadvent.org.
Antônio Emílio Angueth de Araújo.
Não existe um grupo na bégica que estuda as veracidades históricas dops santos ?
o livro deles não é recomendável ?
Vejam que há alguns meses a Veja fez um editorial anunciando que não escreveria mais a palavra estado com letra maiúscula e dando os porquês de dita decisão.
Isso denota que ela dá grande valor à inicial maiúscula.
De fato, cada um glorifica o deus que quer. MAs a liberdade não costuma se desatrelar da responsabilidade.
Seu trabalho neste site é extraordinariamente interessante. Parabéns!
Luiz Ricardo
Caro anônimo,
Não conheço o trabalho do grupo da Bélgica. Nem de que grupo se trata. Assim, não posso comentar.
Antônio Emílio Angueth de Araújo.
O grupo a que o anônimo se refere são os Bolandistas (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bolandistas - em português) ou (http://www.newadvent.org/cathen/02630a.htm - em inglês) ou, ainda, (http://www.kbr.be/~socboll/index.html, em francês). Esses jesuítas têm, desde o século XVII, se dedicado à hagiografia, o estudo dos santos. Esses estudos foram publicados nas Acta Sanctorum (67 volumes - http://www.kbr.be/~socboll/P-acta.html) e em outras publicações.
Professor,
O senhor q tem contato com os editores do MSM tem como explicar esse período tão grande pra MSM ficar fora do ar ?????
Faz quase um mês !!!!
Caro Alexandre,
Deus lhe pague pelas referências. Vou consultá-las com muito gosto.
Antônio Emílio.
P.S. Caro anônimo, não tenho informação sobre o que está ocorrendo com o MSM. O editor me disse que semana que vem podemos ter novidades.
Fiz essa pergunta no blog do julio severo mas não obtive resposta.
Alguém sabe essa informação que pergunto abaixo.
Por lógica, creio que todo país que tenha aprovado a legislação do casamento homossexual tenha com o tempo uma parcela cada vez maior da população que seja homossexual.
Isso pq as novas gerações que vão surgindo passam a entender a conduta homossexual como normal e muitos jovens passarão a ser homossexuais por entenderem que aquela conduta não é reprovável.
Isso vale para qualquer conduta em direito. Após permitido por lei, a conduta vira costume e passa a ser incorporada no dia a dia de uma população.
Isso porém decorre apenas de dedução lógica. Não tenho dados sobre isso.
Alguem saberia dizer se países como Holanda e Inglaterra que aprovaram o casamenpo homossexual há tempos tem uma parcela maior de sua população sendo homossexual do que os demais que ainda não o aprovaram ?
Caro Antônio,
Seu ‘blog’ sempre precioso dispensa maiores elogios e assim sendo me permito passar direto ao ponto: parece que o texto ficou um pouco ambíguo com relação a Baudelaire, mas há um fato importantíssimo que simplesmente não pode permanecer ignorado: se verificarmos a tal da “referência” a Baudelaire descobriremos que o jornalista simplesmente inverteu o sentido do conto original, com a maior cara de pau, confiando, não sem razão, que ninguém o conhecesse para denunciar o embuste. Porque não é verossímil que o jornalista seja tão débil mental a ponto de interpretar um texto simples e curto precisamente no seu sentido inverso. Assim é muito mais provável que o sujeito tenha pinçado essa citação do Google para posar de erudito.
Ache o que quiser de Baudelaire, o que está em jogo aqui é a justiça, e para julgá-lo é preciso primeiro resgatar o poeta das mãos pérfidas de um trapaceiro vulgar. Este conto de Baudelaire é praticamente uma expansão, por assim dizer, da sua referência de C.S. Lewis, é a estória de um sujeito que, já com certas tendências ao mais baixo, acaba se encantando com os truques do diabo e aposta com ele, perdendo sua alma. No meio da conversa, o diabo lhe revela que apenas uma única vez temeu por seu poder, justamente quando um orador dizia que o maior truque do diabo é fazer-nos crer que ele não existe, ou seja, a frase de C.S. Lewis, ou seja, o contrário do que o jornalista concluiu.
Não quero falar mais para não estragar a estória, que vale a pena ser lida, é curta e serve mais ou menos como um adendo à frase de C.S. Lewis, então segue o link para o original em francês com uma tradução em inglês: http://www.piranesia.net/baudelaire/spleen/29joueur.html
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