27/07/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I e Opondo-se à heresia austríaca


Dr. Peter Chojnowski


A) O sonho libertário de De Roover

Nunca foi uma opção atrativa muito interessante para alguém se basear apenas em concepções prevalecentes em seu próprio tempo. Os Whigs americanos de 1787 inspiraram-se na república romana e os democratas franceses de 1789 recorreram à democracia ateniense. Considerar como um modelo político algo de 2000 anos atrás é um exemplo genuíno do gosto por antiguidades. Pelo menos, Napoleão, com sua admiração tardia por Carlos Magno, retrocedeu apenas 1000 anos para encontrar um exemplo de uma situação em que sua nova forma de governo “funcionara” (Devemos lembrar aqui que a razão de os povos não adotarem, no transcorrer de tanto tempo, esses dois antigos modelos de governo, foi porque eles estavam suficientemente conscientes de que eles não “funcionaram”). Alguns libertários se sentem compelidos a estabelecer uma conexão entre suas idéias e o catolicismo. Resta-nos imaginar quais seriam suas motivações. Contudo, o que é claro é que, na segunda metade do século passado, e mesmo neste século, tem havido libertários que identificam as primeiras idéias capitalistas (considero aqui o capitalismo como a forma econômica do liberalismo – não confundir com o esquerdismo americano) com as que existiam dentro do organismo corporativo da cristandade, antes do “alvorecer” do Iluminismo. Há pensadores libertários mais negligentes que chegariam mesmo a afirmar que não somente há certas anomalias liberais no paradigma do cristianismo histórico, mas ainda, que o liberalismo é o próprio paradigma civilizacional do cristianismo. O foco recorrente de tal “sonho” libertário é a Escola de Salamanca da Renascença Tardia[1] e os santos Bernardino de Sena e Antonino de Florença. A questão principal, apesar de não ser a única, é a do “preço justo”. Será que os escolásticos tardios, representados pela Escola de Salamanca, além de dois santos da Renascença, conhecidos pelos seus sermões a respeito de questões econômicas, podem ser identificados como os primeiros defensores do liberal-capitalismo devido à sua, suposta, insistência de que o “preço justo” que devia ser sustentado pela Igreja, Estado e Sociedade é simplesmente aquele que é dado ao produto devido à inter-relação da oferta do produtor e da demanda do consumidor? Se a “justiça” econômica, no seu nível mais básico e essencial, for simplesmente uma questão de aderência fiel às “leis da oferta e da demanda”, podemos dizer que a visão desses pensadores católicos poderia ser, de fato, caracterizada como um exemplo de um nascente liberalismo econômico. Se há algo mais na “justiça” do que a simples interação da vontade livre do produtor e da escolha livre do consumidor, então o que defendiam esses pensadores não poderia ser denominado uma forma inicial das concepções miseanas/neo-liberais/libertárias.

Ao procurar um exemplo de um neo-liberal que representa essa tentativa de encontrar raízes, num passado distante, das doutrinas liberais que parecem bem modernas, podemos recorrer a Raymond de Roover, que publicou um artigo com o título “O conceito do preço justo: teoria e política econômica” no Journal of Economic History (Dezembro de 1958).[2] É interessante ler o que diz De Roover da “típica” visão medieval, na medida em que ela se relaciona com o tópico “preço justo”. No artigo lemos:

“De acordo com uma crença amplamente disseminada – encontrada em quase todos os livros que trata do assunto – o preço justo estava ligado à concepção medieval de uma hierarquia social e correspondia a um ganho razoável que permitiria o produtor viver e tratar de sua família de uma forma adequada a seu nível de vida [minha ênfase]. Considera-se geralmente que essa doutrina encontrou sua aplicação prática no sistema de guildas. Nesse sentido, as guildas são descritas como agências de bem-estar social, que impediam a competição injusta, protegiam os consumidores contra o logro e a exploração, criavam igualdade de oportunidades para seus membros e asseguravam a eles um meio de vida modesto mas decente, dentro dos padrões tradicionais.” [3]

Indicarei em nota de rodapé todos os autores que compartilhavam esses, universalmente reconhecidos, “equívocos”.[4] Tal era a “idílica” visão da Idade Média sustentada pelo grande economista alemão Max Weber e pelo escritor, polemista e historiador britânico Arthur Penty. Segundo De Roover, outro famoso economista alemão, Werner Sombart (1863-1941), foi ainda além: segundo ele, não somente os artesãos, mas também os comerciantes medievais lutavam por conseguir apenas um ganho suficiente para a sobrevivência em seu nível social, não procurando acumular riqueza ou subir na escala social. Essa atitude, alegava Sombart, estava fundamentada no conceito de preço justo “que dominava inteiramente o período da Idade Média.” [5]


De Roover, contudo, tem um entendimento diferente do ambiente mental da Era Cristã com relação aos preços e à atividade econômica em geral. Em meio a muitos non sequiturs, alegações históricas confusas e, mesmo, contraditórias, encontramos De Roover usando de subterfúgios para desviar a atenção, tais como, “O próprio Tomás de Aquino reconhece que o preço justo não pode ser determinado com precisão, mas pode variar dentro de certa faixa, o que não significa nenhuma injustiça. Isso ... não está de acordo com a dialética marxista; mas concorda com a análise econômica clássica e neo-clássica” [minha ênfase].[6] Assim, uma afirmação moral equilibrada e óbvia sobre um aspecto menor da questão do preço justo, porque ela não está de acordo com a teoria marxista, faz a posição de Santo Tomás de Aquino “concordar com a análise clássica e neo-clássica.”

A lógica bizarra e forçada presente na análise de De Roover só pode ser tratada superficialmente aqui. Por exemplo, um dos economistas “ingênuos”, Werner Sombart, cita Heinrich von Langenstein (1325-97) que diz: “se as autoridades públicas não fixam um preço, o produtor deve fixá-lo, mas ele não deve cobrar mais do que o seu trabalho e as despesas de manutenção de seu nível de vida (per quanto res suas vendendo statum suum continuare posit).” Isso está totalmente de acordo com o entendimento “tradicional” do pensamento social e econômico da Idade Média católica. Langenstein continua na mesma tecla, “E se ele cobra mais a fim de enriquecer-se ou melhorar sua posição, ele comete o pecado da avareza.” [7] Essa posição de Langenstein era “considerada como uma formulação característica da doutrina escolástica do preço justo,” segundo De Roover. A citação de Sombart, De Roover insiste, foi “copiada por todos os autores, desde então.”[8] De Roover tenta jogar água fria no entusiasmo dos historiadores econômicos pelos escritos de Langenstein, dizendo que, “Langenstein não era um dos gigantes da filosofia medieval, mas uma figura menor.”[9] Esta afirmação é, claro, totalmente irrelevante para o tópico em questão. A questão não era se Langenstein era um dos “gigantes” da filosofia medieval, mas se sua afirmação a respeito da teoria e prática econômica pode ser vista como “característica.” Ninguém precisa ser um gigante para ser característico. “Gigantes”, não são, a propósito, nem um pouco característicos, mas isso é uma outra conversa.

Quando De Roover trata de um verdadeiro gigante, Santo Tomás de Aquino, descobrimos afirmações contraditórias em meio a deduções mais que questionáveis. A respeito de Santo Tomás, ele se atém a um tópico que ele – De Roover – acredita confirmará que a “maioria dos doutores [escolásticos]” sustentava que o “preço justo” não correspondia ao custo da produção como determinado pelo status social do produtor, mas era “simplesmente o preço de momento do mercado.” Claramente, De Roover entendia que se o preço justo significasse outra diferente do “preço justo” capitalista, falharia sua tentativa de fundamentar o capitalismo neo-liberal no pensamento e na tradição social católicos. Ele tinha de provar que a “justiça” do preço cobrado na cristandade medieval se realizava exatamente no preço que o item pudesse alcançar no mercado livre. O plano era descrever Santo Tomás como um pioneiro liberal em matéria econômica e, então, indicar como o pensamento escolástico posterior o seguiu, preparando, assim, o terreno para Adam Smith e o liberalismo capitalista de Manchester.

De Roover começa sua análise do pensamento de Santo Tomás de Aquino a respeito do “preço justo” afirmando que nos escritos de Aquino, “as passagens relacionadas ao preço estão dispersas e são tão conflitantes que fizeram surgir interpretações variadas.”[10] Ele então continua, afirmando, claramente, o que Santo Tomás definitivamente quis dizer com o termo “preço justo”. À medida que ele “definitivamente” articula o pensamento de Santo Tomás, ele contradiz não só sua própria interpretação, como também as afirmações de Aquino. Por exemplo, De Roover afirma, “Selecionando apenas aquelas passagens favoráveis às suas teses, certos escritores chegaram mesmo à conclusão de que Alberto Magno e Tomás de Aquino formularam uma teoria do valor-trabalho.” Numa nota de rodapé, na mesma página, ele afirma, “De fato, Aquino chega muito próximo de dizer que qualquer troca de duas mercadorias deve ser baseada na razão da quantidade de trabalho nelas despendido.” Não está ele afirmando, aqui, que Aquino tinha uma “teoria do valor-trabalho,” quando, em apenas um parágrafo acima, ele ralhava com “certos escritores” por estes terem concluído que Santo Tomás “formulou uma teoria do valor-trabalho”?

O raciocínio do pensador liberal se torna algo confuso quando o pegamos, no início de um parágrafo, afirmando que Santo Tomás “em nenhum outro lugar expôs tão claramente a questão [do preço justo],” e ao final do parágrafo dizendo que

“essa [única] passagem [que é apenas uma estória relacionada a uma questão moral menor] destrói, com um simples sopro, a tese que tenta transformar Aquino num marxista, e prova acima de qualquer dúvida que ele considerava justo o preço de mercado.”

Então, num único parágrafo, constituído principalmente de uma estória ilustrativa sobre um comerciante que vende trigo numa cidade quando ele sabe que há mais trigo chegando, partimos de um Aquino, o Ambíguo, e chegamos a um Aquino, o Absoluto. Quando atentamos para o trecho citado por De Roover, na Secunda Secundae da Suma Theologica, descobrimos que o artigo citado não tem nada a ver com o tópico do preço justo. Ele versa sobre a questão da “trapaça” e o artigo específico tem o título “Se o vendedor é obrigado a listar os defeitos da coisa vendida.” Santo Tomás afirma aqui que um vendedor age corretamente, sob o ponto de vista da justiça, se ele meramente aceita o valor oferecido pelo comprador, sem informá-lo de que uma grande quantidade de trigo está chegando. Em outras palavras, não é injusto “não prover informação disponível” sobre o valor de curto prazo de um produto. Santo Tomás termina dizendo, “Se, contudo, ele oferecer a informação, ou se ele abaixar o preço, será extraordinariamente virtuoso de sua parte: apesar de ele não estar obrigado a isso, em nome da justiça.”[11] Dessa estória, a respeito de uma questão moral muito específica que não tem nada a ver propriamente com sistemas econômicos ou com o tópico do preço justo, De Roover tira a prova de que “Aquino apoiava a valoração de mercado ao invés do custo”[12], iniciando então uma tradição pré-capitalista na teologia moral, que deu frutos da Escola de Salamanca da Renascença Tardia[13] e nos sermões econômicos de São Bernardino de Siena e Santo Antonino de Florença no século XV.

Antes de tratar da real atitude dos escolásticos tardios em Salamanca e dos sermões de São Bernardino de Siena e de Santo Antonino de Florença, vale a pena observar uma simples réplica a uma objeção, presente na questão 77, “Sobre a trapaça, que é cometida nos atos de vender e comprar.” No artigo 1, o mesmo artigo do qual De Roover tira sua conclusão sobre as inclinações tomistas ao “mercado livre”, lemos, na réplica à Objeção 2, uma linha de raciocínio que poria, certamente, Santo Tomás, fora das fronteiras de qualquer forma do capitalismo liberal. Aqui ele cita Santo Agostinho que diz,

“o bufão, olhando para si mesmo ou para a experiência dos outros, pensava que todos os homens são inclinados a comprar por uma ninharia e vender por um alto preço. Mas como, na realidade, isso é mau, está ao alcance do poder do homem agir com justiça e resistir e vencer essa inclinação.”

O exemplo, citado por Santo Tomás, que Santo Agostinho usa para ilustrar essa idéia, é aquele do homem que paga o preço justo por um livro a um vendedor que, por ignorância, estava pedindo um preço menor por ele. Aqui vemos o comprador virtuoso, que sabe o real valor do livro, ignorando o valor de mercado do livro (aquele que estava sendo pedido pelo vendedor para aqueles que, livremente, o queriam comprar), e, justamente compensando o vendedor por sua perda. Santo Tomás conclui desse exemplo que a inclinação “capitalista” de comprar tão barato quanto possível e vender tão caro quanto possível – característica de uma inclinação pela aquisição e de um esmagador auto-interesse – pode ser vencida da mesma forma que qualquer outro vício. Ele reconhece, contudo, que essa atitude de auto-interesse – que é, precisamente, a atitude assumida pelo capitalismo liberal – é “comum a muitos que caminham no largo caminho do pecado.”[14] Aqui, vemos claramente que a atitude econômica da cristandade contrastou com a atitude econômica do neo-liberalismo. Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino não são nada neo-liberais. Claramente, o “preço de mercado” não é necessariamente o “preço justo” . Para citar uma frase comumente usada por De Roover, “Este texto ... não se presta a uma diferente interpretação.”[15]

________________________________________________
[1] Acho que aqui o autor queria dizer Escolástica Tardia. (N. do T.)
[2] Ver, mais recentemente, Alejandro A. Chafuem, Faith and Liberty: the economic thought of Late Scholastics, Lexington Books, New York, 2003. (N. do T.)
[3] Raymond de Roover, “The Concept of Just Price: Theory and Economic Policy”, in Journal of Economic History 18 (Dez. 1958), p. 418.
[4] Para uma visão tradicional da história e da economia da Idade Média, rejeitada como um “conto de fadas” por Raymond de Roover, cf. William Ashley, An Introduction to English Economic History and Theory, 4th ed., 2 vols. (London: Longmans, Green, 1920), I, Part II, 391; John M. Clark, The Social Control of Business, 2nd ed. (New York: McGraw-Hill Book Co., 1939), pp.23-24; Shepard B. Clough and Charles W. Cole, Economic History of Europe, rev. ed. (Boston: D.C. Heath, 1946), pp.31, 68; George Clune, The Medieval Guild System (Dublin: Browne and Nolan, 1943), p.55; Alfred de Tarde, L'idee du justeprix (Paris: Felix Alcan, 1907), pp.42-43; Joseph Dorfman, The Economic Mind in American Civilization, 3 vols. (New York: Viking Press, 1946-1949), 1,5; N. S. B. Gras, Business and Capitalism (New York: Crofts, 1939), pp. 122-123; Herbert Heaton, Economic History of Europe, 1st ed. (New York: Harper, 1936), p.204; George O'Brien, An Essay on Medieval Economic Teaching (London: Longmans, Green, 1920), pp. 111-112; Leo S. Schumacher, The Philosophy of the Equitable Distribution of Wealth (Washington, D.C.: The Catholic University of America, 1949), p.47; James Westfall Thompson, An Economic and Social History of the Middle Ages, 300-1300 (New York: Century Co., 1928), p.697. Além desses, incluído também cmo um representante dessa visão errônea da Idade Média, Arthur J. Penty, A Guildman's Interpretation of History (New York: Sunrise Turn, n.d.), pp.38-46. De Roover conclui essas notas de rodapé, dizendo: “Essa lista não está, de forma alguma, completa” [minha ênfase].
[5] Ibid., p.419. Cf. Werner Sombart, Der moderne Kapitalismus (Munich: Duncker & Humblot, 1916), I, 292-293.
[6] De Roover, Just Price, p. 420.
[7] Como fonte desta citação, De Roover cita Heinrich von Langenstein, Tractatus bipartitus de contractibus emptionis et venditionis, Part I, cap. 12, publicado em Johannes Gerson, Opera omina, IV (Cologne, 1484), fol. 191. Segundo De Roover, “Nenhuma edição mais recente está disponível.”
[8] De Roover, Just Price, p. 419.
[9] Ibid., p.420.
[10] Ibid., p.42l.
[11] St. Thomas Aquinas, Summa Theologica, II-II, Q. 77, Art. 3, ad 4.
[12] De Roover, Just Price, p.423.
[13] De novo, acho que o autor queria dizer Escolástica Tardia. (N. do T.)
[14] ST, II-II, Q. 77, Art. I, ad 2.
[15] De Roover, Just Price, p.421.

5 comentários:

Anônimo disse...

Pais e filhos
Pois é. Trata-se de uma luta. Tenho de disputar a Internet com um exército de adolescentes cheios do que dizer. Tudo porque, já disse, a incompetência é o pior dos reacionarismos. A rede sem fio deveria estar funcionando, e eu, indivíduo e dono de mim mesmo, deveria estar com o meu laptop. Mas tudo era menos verdade. A rede não funciona. E os infantes, de ambos os sexos, têm muito o que dizer no MSN, no Orkut, sei lá onde. Uma da manhã. Estão todos à minha volta dizendo tolices. Deveriam estar na cama. O laxismo moderno vai formar uma geração de incapazes. O que fazem garotos e garotas de 12, 13, 14 anos acordados a essa hora, com acesso à rede mundial, sem qualquer forma de controle? É evidente que impor limites não é tarefa do estado, mas dos pais. Os pais, no entanto, abriram mão de educar seus filhos. É por isso que burocratas medíocres, como o tal José Eduardo Romão, aquele do Chicabom, se assanham a ser a consciència das famílias – ao menos era esse o seu pretexto para tentar impor a censura prévia. É claro que era mentira.

Bem, mas onde estão os pais? Eu lhes respondo. Educar é uma tarefa chata. Uma parte opta pela vocação missionária, aquela chatice paulo-freiriana. Segundo esses imbecis, educar é usar o universo do "educando", transformando-o num saber. Outros preferem abrir mão da tarefa, responsabilizando a cultura, a segunda natureza, por tudo o que acontece com as crianças. É o caso dos pais daqui. É o caso da classe média. São famílias destruídas pela vulgarização da psicologia e da psicanálise. Para estes, dizer um “vai dormir porque eu estou mandando” é uma violência terrível.

MSN, Orkut, Internet e afins são males em si? Precisamos de Romão Chicabom? Estou provando justamente o contrário. É claro que minhas filhas já estão dormindo. Se serão pessoas melhores do que estes aqui do lado, falando com outros que também estão fora do controle, bem..., isso eu não sei. O que sei é que estou fazendo a minha parte. Há coisas que cabem a mim decidir, limitar, proibir. E delas espero que se sintam um tanto contrariadas. Eu ofereço o padrão; elas entram com o desejo e a tentativa de transgressão. Não haverá uma só ultrapassagem da linha que será feita com a minha anuência, embora eu saiba que ultrapassá-la é parte do processo. O que elas precisam é da liberdade para me contar suas agruras. Precisam é da certeza de que o meu amor incondicional não implica endosso incondicional a seus atos.

Crianças precisam ouvir “não”. Trata-se de uma exigência da formação da personalidade. Mas os pais modernos têm um medo pânico de cumprir a sua função. Ontem, no café da manhã, vi um rapazola destratar o pai. Não falava alto. Estava na mesa ao lado da minha. Por isso ouvi tudo. O garoto se referia ao antigo chefe da família como um idiota, um cretino que estava ali para atrapalhar. Nada havia do necessário assassinato psicanalítico do pai. Era pura depredação da autoridade. O menino estava pronto para sair espancando mulheres em ponto de ônibus. O pai se calou. Minhas filhas acompanharam a cena. Ficamos todos um tanto envergonhados. Uma delas, quase instintivamente, levantou e me abraçou discretamente. Parecia querer me proteger daquilo. Senti-me contrangido. Aquele pai se constrangeu? Sei lá. Acho que ele também já havia perdido a noção do certo e do errado. E, quando isso acontece, tudo é permtiido.

Logo, vejam só: a Internet é um bem. O mal está na destruição da autoridade paterna. Leiam como quiserem o que vai a seguir porque não vou explicar muito: mãe foi feita para perdoar e compreender. Como Nossa Senhora, como a Maria dos católicos, como a Compadecida. O pai foi feito para reprimir, de sorte que seu abraço e perdão, mais duro e tardio, representam a reconciliação com o mundo desde o fim. Ignoro tragédia maior para a formação da psique do que um pai liberal, “bacana”, para o qual toda experiência é válida. Não é. Isso é mentira. Infelizmente, a banalização da psicologia fez isso com as nossas crianças. Muitas delas perderam completamente a referência. É disso que se ressentem os professores nas escolas, tanto as públicas como as particulares.

Tenho cá pra mim, constatação decorrente da simples observação da realidade, que as mães continuam a exercer o seu papel de Compadecida. Perdidos mesmo, deslocados na realidade, privados e expropriados de sua função, estão os pais. O feminismo não sabe o mal que fez e que tem feito à civilização. Os homens, de certo modo, se tornam maricas e fazem filhos não menos. Não. Isso não quer dizer que sejam crianças suaves, efeminadas. Muito pelo contrário. Sem a clareza do mundo das interdições, tornam-se especialmente violentas.

Pronto. O mundo da pedagorréia pode se preparar para me atacar na linha: “Quem você pensa que é para pontificar sobre educação?” A pergunta procede. Não sou nada. Apenas um entusiasta da palavra “decoro”. E certas coisas são indecorosas. Ponto. Isso nada tem a ver com moralismo. Apenas reivindico o antigo mundo da adequação. E deixo uma sugestão: “Não tenham receio de dizer ‘Não’ a suas crianças. Ele pode ser tão educativo quanto o ‘Sim’. Quase sempre, educa mais. A origem da palavra “educar” é “conduzir”. Quem conduz também reprime.

Por que essa gente não vai dormir? Porque seus pais estão com preguiça. A preguiça da paternidade. Sim! Às vezes, temo um futuro bárbaro. Contra o meu incorrigível otimismo. Vamos agora às outras formas de política.

Anônimo disse...

Caríssimo Angueth,

Congratulações pelo maravilhoso trabalho neste blog (está na minha pasta de Favoritos).

Angueth, estranhei essa mensagem postada por um "anônimo", porque acabo de lê-la postada no blog do Reinaldo Azevedo, por esse autor.

Talvez o colega anônimo tenha esquecido de mencionar que se trata de uma citação daquele jornalista, isso se não for o próprio.

Apenas para a sua ciência, certo?

Grande abraço

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Eduardo,

Obrigado pelas palavras.

Quanto ao texto postado por um amigo anônimo, eu notei que ele seria do Reinaldo Azevedo, pelo estilo e algumas expressões que ele cunhou em seu blog.

Grande abraço.

Antônio Emílio Angueth de Araújo

Anônimo disse...

Pe. Laguérie comenta o documento da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, de 29/06/2007
Pe. Philippe Laguérie
Quarta feira 25 de julho de 2007, http://blog.institutdubonpasteur.org/spip.php?article82


Em seu já célebre discurso de 22 de dezembro de 2005 à Cúria, o Papa tinha anunciado uma releitura do Concílio para dar dele a interpretação autêntica, ou seja, a interpretação da Sé Romana. Este novo documento inscreve-se, evidentemente, nesse trabalho anunciado e empreendido por Bento XVI. Sobre o mesmo tema, já se tinha a declaração Dominus Jesus, cujo principal redator, como todos sabem, foi ele mesmo. Obrigado ao Papa por prosseguir esse trabalho que só ele pode fazer!

Alguns dias apenas após o célebre Motu Próprio, a Congregação para a Doutrina da Fé publica sob a assinatura do Cardeal Levada, seu presidente, cinco respostas sobre o caráter único da Igreja de Cristo que é a Igreja Católica Romana. E como o Instituto do Bom Pastor se comprometeu também a trabalhar nesse sentido e a apoiar o Pontífice Romano para permitir-lhe dar o sentido autêntico do magistério, é muito justo que nós façamos, meus confrades e eu mesmo, um grande eco a essas páginas decisivas para o futuro da Igreja.

1) Que magistério?

O documento, assinado pelo Cardeal Levada, prefeito da Congregação, foi, entretanto, aprovado de forma especial pelo Papa, “ratificado e confirmado” em entrevista particular. É portanto, um magistério do próprio Papa. Tomaremos cuidado, entretanto, apesar da grande autoridade de que ele goza, em não fazer dele um documento infalível, pois, se as três primeiras condições estão bem presentes (autor, assunto e universalidade dos destinatários), falta evidentemente a principal que é a vontade de obrigar a acreditar e a sustentar. Entretanto, se faria mal em subestimar um tal texto: ele representa a interpretação autêntica que o Papa faz do Concílio. Pois, Deo gratias, ela começou, indiscutivelmente.

2) Um documento preciso

Uma introdução, cinco curtas questões e respostas rápidas. O conjunto cabe em duas páginas, sem contar duas outras, exclusivamente de referências. O resultado é uma impressão de clareza muito agradável. Uma sociedade, qualquer que seja, deve ser dirigida assim, por alguns textos claros e precisos, como nos bons velhos tempos dos bons velhos Papas! Ao contrário da legislação européia, por exemplo, que já não está cabendo em uma biblioteca monumental, muito menos na cabeça de uma pessoa de bem, nem que fosse um especialista. Contendo – perdoem-me os leitores – centenas de páginas sobre o tamanho dos botões da roupa de baixo, para as quais, evidentemente, ninguém dá a mínima! Aqui, o Papa tem a coragem de enfrentar com determinação uma das doutrinas mais controvertidas e mais agitadas pelo mau espírito do Concílio, por ele denunciado, e de voltar ao texto bruto. Belo trabalho realmente, de desarmar as minas, de maneira sistemática, corajosa e lúcida.

3) Um princípio definitivo (primeira questão)

Com grande reforço de citações do próprio Concílio e dos Papas precedentes, o Papa atual explica que o Concílio não quis mudar a doutrina anterior, não a mudou de fato, e se compreende facilmente – mesmo se somos nós que o acrescentamos explicitamente – não poderia mudá-la. Porque há alguma coisa de irreformável na doutrina dogmática sobre a Igreja, de que se trata evidentemente aqui. Sabe-se, aliás, que a intenção oficial de todos os Papas e Bispos do Concílio era precisamente de não definir nada. Isso basta para dizer que, conseqüentemente, não só eles não podiam introduzir doutrinas contrárias ao magistério precedente, mas mesmo que eles não podiam introduzir doutrinas simplesmente novas, por mais que fossem justas e tiradas do depósito da Revelação.

Esse grande princípio de hermenêutica vai ficar portanto para o que vier depois: é à luz do Magistério anterior e portanto da Tradição da Igreja que deverão ser levantadas todas as dificuldades, contradições e equívocos devidos, no próprio texto, ao mau espírito do Concílio. Pois no fim das contas, vai ficar para sempre esse escândalo histórico de que foi necessário, 40 anos mais tarde, toda a autoridade de um Pontífice luminoso para eliminar uma a uma todas as armadilhas de uma “anfibologia” quase institucional. O Papa cita em referência as inumeráveis questões dos padres do Concílio todas pedindo que fossem esclarecidas as citações incriminadas e às quais foi respondido invariavelmente que a doutrina tradicional estava claramente expressa!

4) Uma doutrina definitiva (segunda e terceira questões):

Não apenas porque o Papa o diz claramente, mas porque é a doutrina do magistério mais solene da Igreja: A única Igreja fundada por Cristo, exatamente de acordo com a nota de unicidade do nosso Credo, é a Igreja Católica Romana, com o Papa à frente. O termo “subsiste” empregado pela Lumen Gentium indica apenas uma permanência no ser histórico dessa única Igreja, com todos os elementos instituídos por Cristo, na Igreja Católica “na qual se encontra concretamente a Igreja de Cristo sobre esta terra”. Não se pode ser mais claro! Vê-se aqui que o verbo subsistir toma aqui um sentido equivalente, até mesmo mais intenso que o verbo ser: o de uma permanência na unicidade do ser.

Mas por que, prossegue o Papa, utilizar esse termo subsistir no lugar do verbo ser, especificando também essas conotações? Para indicar que um certo número de elementos pertencentes, de modo próprio, a esta única Igreja de Cristo, encontram-se entre os cismáticos. Pode-se discutir se este era o melhor meio. E, verdade seja dita que, em vista dos quarenta anos de saliva e de tinta gastos por causa disso, não é lá muito certo que esse fosse o melhor! Mas ninguém pode de agora em diante utilizar esse texto para sustentar que haja outros modos de subsistência da Igreja de Cristo, em sua unicidade, outras Igrejas “normais”, de direito divino. A todas elas falta alguma coisa da Igreja de Cristo e elas têm que pedir e receber tal coisa da Única que possui a identidade adequada à fundação de Jesus Cristo.

5) Os elementos constitutivos ou essenciais (quarta e quinta questões).
O Papa fala de três elementos constitutivos da Igreja de Cristo, no resto do documento. A verdadeira sucessão apostólica, a realidade do sacramento da eucaristia, e a comunhão com a Igreja Católica e portanto com o Papa, seu chefe. Só a Igreja Romana, possuindo esses três elementos constitutivos da Igreja de Cristo, pode ser a Ela, por esse motivo, identificada. O segundo desses três elementos não apresenta nenhuma dificuldade: os católicos e os ortodoxos são os únicos a possuir esse tesouro da missa em toda sua amplitude, sendo o meio disso o sacramento da ordem, igualmente conservado por eles. O primeiro já coloca uma dificuldade teológica real; sem dúvida a sucessão apostólica é sacramentalmente idêntica entre os ortodoxos e os católicos. Mas é evidente também que não há bispo legítimo sem a comunhão com o Pontífice Romano, o bispo dos bispos. Esta segunda condição tem muito a ver com a terceira. E se os bispos ortodoxos são sacramentalmente verdadeiros bispos, sua sucessão apostólica formal é gravemente maculada por essa falta de comunhão. Assim, o elemento por eles conservado é bem mais a realidade do sacramento da ordem em sua plenitude que a sucessão apostólica. Após esse esclarecimento, o Papa admite portanto que os ortodoxos, ao conservarem esses dois elementos tem um direito real à denominação de igrejas (particulares sempre). Por outro lado, nenhuma comunidade proveniente da reforma tem direito a isso, por não possuir nem verdadeiro sacerdócio, nem Eucaristia. O Conselho Ecumênico das Igrejas tem negada a legitimidade de seu título, diga-se de passagem.

Pois o Papa afirma que a sucessão apostólica é um “elemento essencial constitutivo da Igreja”, enquanto a comunhão, a única coisa que falta aos ortodoxos, é apenas “um de seus princípios constitutivos internos” (não essencial portanto), ainda que não seja um mero complemento exterior da igreja particular. Todos esses princípios são, portanto, constitutivos da única Igreja desejada por Cristo e é por isso que só a Igreja Romana, ao possuir todos eles, pode ser essa Igreja.

Dito de outro modo, entre os elementos constitutivos, há alguns que são essenciais, que justificam sozinhos que se fale de igreja. Isso é bom senso e verdadeira filosofia. Tomemos um exemplo: a saúde, para um homem, é um constitutivo interno de seu ser; mas ela não poderia ser um constitutivo essencial: um homem doente é evidentemente um homem verdadeiro, embora deficiente, até a incapacidade total, talvez. Do mesmo modo, um homem desprovido do uso da razão: falta-lhe um constitutivo interno do homem (o uso da razão), mas não um elemento essencial de seu ser (a racionalidade).

Assim os ortodoxos constituem verdadeiras igrejas, sempre particulares, enquanto as outras não o poderiam constituir, sendo desprovidas das características essenciais de uma igreja. O Papa devolve assim à Igreja Católica Romana, depois de tantas humilhações sofridas, seu lugar único de esposa de Cristo Jesus.

O Direitista disse...

Caro Antonio Emílio, o que vc pensa sobre essa questão do preço justo?

Confesso que eu tendo a acreditar que, sendo toda troca voluntária, não pode haver injustiça em uma transação qualquer.

A exceção seria o caso de uma pessoa que precisa de um determinado bem que só um fornecedor ou um punhado de fornecedores em conluio possuem, caso em que se aproveitar dessa situação para lucrar o máximo possível me parece de fato injusto.

Em todos os demais casos, por quê haveria algo de injusto em se trocar voluntariamente um bem por outro ou por uma quantia de dinheiro?