Estou
lendo o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de
Leandro Narloch. Bem escrito, com muita coisa interessante que desmistifica
muito livro escolar que anda circulando por aí, financiado com nosso rico
dinheirinho.
Mas
qual não foi minha surpresa, que lendo a parte sobre os comunistas, deparo-me
com a seguinte afirmação, na página 330 da edição ampliada, politicamente
correta em altíssimo grau:
Movimentos
revolucionários costumam colocar seu ideal político acima dos valores
individuais e das regras tradicionais da vida. Cria-se assim uma superioridade
moral que lembra a dos cristãos nas
cruzadas - um pensamento do tipo "eu luto por um mundo justo, uma
sociedade sem contradições, portanto posso matar e roubar em nome desse ideal
sagrado". Assim como cristãos
fanáticos queimavam hereges na Idade Média, os guerrilheiros justificavam,
com sua moral superior, expurgos, assaltos e assassinatos sem julgamento de
seus próprios colegas. Nas pequenas organizações de conspiradores e
guerrilheiros dos anos 1960 e 1970, é fácil perceber o controle extremo da
conduta individual, a violência baseada na superioridade moral e a obsessão com
a traição - a mesma que fez Stálin executar companheiros próximos. Seus
integrantes praticaram crimes bem parecidos com o assassinato de Elza, morta a
mando de Prestes. Em 1973, por exemplo, o professor Francisco Jacques Moreira
de Alvarenga, integrante da Ação Libertadora Nacional do Rio de Janeiro, foi
assassinado numa sala de aula do Colégio Veiga de Almeida. [Negritos meus.]
Viram que coisa mais charmosa? Os cristãos da Idade Média
foram comparados a Stalin e aos grupelhos terroristas assassinos que existiram
no Brasil nos anos 1960 e 1970. Neste trecho, nós aprendemos que as Cruzadas
foram feitas por um mundo mais justo, uma
sociedade sem contradições. Além disso, como isso era o objetivo das
Cruzadas, elas podiam matar e roubar por
estes ideais. Ora isso é um caso extremo de ignorância ou uma leviandade
sem limites. Depois ficamos ainda sabendo que cristãos fanáticos queimavam
hereges na Idade Média; assim mesmo, sem mais qualificações, sem mais
explicações.
Eu conhecia muita mentira deste nível sobre as Cruzadas, mas
nunca vi ninguém afirmar que as Cruzadas foram feitas para se criar um mundo
mais justo, uma sociedade sem contradições. Isto é pura projeção, puro
cronocentrismo. Esta ideia idiota de que um outro mundo seja possível, uma sociedade
melhor, etc., não passava pela cabeça de nenhum homem medieval. Nisto o Sr. Leandro
Narloch foi muito criativo, embora ele esteja muito longe da verdade. O resto
é pura difamação, através do uso de clichês mentirosos e politicamente
corretos; sim, porque não há nada mais politicamente correto que denegrir a
Igreja Católica!
Embora o Sr. Leandro Narloch não seja historiador – segundo o
seu perfil, que consta no próprio livro, ele é jornalista – ele escreveu sobre
a história do Brasil (escreveu também sobre a história da América Latina) e não
se pode admitir que alguém interessando em história seja tão ignorante a
respeito da história geral do mundo. Assim, sobre o tópico das Cruzadas e da
Inquisição, que são vastíssimos temas históricos, inabarcáveis sem muito estudo
e reflexão, longe portanto dos clichês politicamente corretos, vou sugerir uma
bibliografia básica que talvez o jornalista queira estudar. Quem sabe no futuro
ele não escreva um livro com o título: Guia Politicamente Incorreto das Cruzadas
e da Inquisição? Eis alguns livros fundamentais:
1. The Politically Incorrect Guide
to Islam, todo o livro se contrapõe aos clichês sobre as Cruzadas.
3. História das Cruzadas, Steven Runciman, 3 vols., Ed.
Imago, 2003.
4. Sete Mentiras sobre a Igreja Católica, Diane Moczar, Ed.
Castela, 2011.
5. A Inquisição em Seu Mundo, João Bernardino Gonzaga, Ed.
Saraiva, 1993.
Termino com uma nota de pé de página do livro Jardim das
Aflições de Olavo de Carvalho que dá bem a ideia do quanto de idiotice se fala
sobre a Inquisição. Note a última observação de Olavo, pois ela se refere
exatamente à mentira propagada pelo Sr. Leandro Narloch. Há aqui mais
sugestões de leituras.
_________________________________________
Olavo
de Carvalho, no Jardim das Aflições, página 35, ed. É Realizações, 2000.
O número de
balelas que circulam a respeito da Inquisição é assombroso. Elas constituem um
capítulo importante do fabulário popular - do "senso comum", diria
Gramsci - que sustenta a crença na superioridade do mundo moderno e de seus
intelectuais. Eis algumas:
• A Inquisição
atrasou o desenvolvimento científico, proibindo a circulação dos
livros que traziam novas descobertas. - Basta examinar o Index Ubrorum
Prohibitorum para verificar que nele
não consta nenhuma das obras de Copérnico, Kepler, Newton, Descartes, Galileu,
Bacon, Harvey e tutti quanti.
A Inquisição examinava apenas livros de interesse teológico direto, que
nada poderiam acrescentar ao desenvolvimento da ciência moderna. (Em caso de
dúvida, leia-se A Inquisição,
por G. Testas e J. Testas)
• Giordano Bruno
foi um mártir da ciência, condenado pela Inquisição por defender teorias
científicas. - Giordano Bruno não fez nenhuma descoberta, nenhuma
observação, nenhum experimento científico. Nem sequer estudou as ciências
modernas, física, astronomia, biologia ou matemática. As disciplinas que
lecionava eram tipicamente medievais: lógica, gramática e retórica - o trivium.
Ele desprezava a nova mentalidade matemática, e todos os cientistas
matematizantes, de Galileu a Descartes, mostraram a maior indiferença pela sua
obra, cujo maior mérito é justamente o de ter antecipado muito do que hoje
podemos dizer contra a ciência moderna (v. Paul-Henri Michel, La Cosmologie
de Giordano Bruno, Paris, Hermann, 1975.). Ele não foi condenado por
defender teorias científicas, mas por prática de feitiçaria, que na época era
crime. Não sei se a acusação era procedente, talvez não fosse, mas aos que
julguem um absurdo preconceito de eras pretéritas imputar à feitiçaria, de modo
geral, qualquer caráter criminoso, recomendo a leitura do ensaio de Claude
Lévi-Strauss, "O Feiticeiro e sua Magia" (em Antropologia
Estrutural, trad. Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires, Rio, Tempo
Brasileiro, 1975), sobre a realidade das mortes por enfeitiçamento. - Para
completar, a pesquisa histórica mais recente revelou que Bruno esteve muito
provavelmente envolvido em atividades de espionagem contra a Igreja Católica
(v. John Bossy, Giordano Bruno e o Mistério da Embaixada, trad. Eduardo
Francisco Alves, Rio, Ediouro, 1993).
• A Inquisição
instituiu a perseguição aos judeus. - As matanças de judeus, promovidas por
devedores espertos ou por monges fanáticos, eram um hábito consagrado na
Península Ibérica. Não conseguindo reprimir a ralé enfurecida, o Rei de
Portugal pediu que o Santo Ofício se incumbisse dos processos por usura, de
modo a tirar qualquer pretexto que legitimasse as atrocidades dos
"justiceiros populares". Instituindo os processos regulares, a Inquisição
controlou e enfim extinguiu as matanças. E verdade que a Inquisição se mostrou
preconceituosa contra os judeus, mas se em vez de julgá-la por um padrão moral
abstrato e utópico a comparamos com as alternativas reais existentes na época,
entendemos que ela foi um mal menor: a única alternativa era o massacre (v.
Alexandre Herculano, op. cit.).
• A Inquisição
instituiu a tortura generalizada. - A tortura era considerada um procedimento legítimo e praticada
em toda parte desde a Grécia antiga. Durante quase toda a Idade Média, caiu em
desuso, sendo reintroduzida na justiça civil graças à redescoberta -
tipicamente renascentista - dos textos das antigas leis romanas. O que a
Inquisição fez foi seguir o uso então vigente na justiça civil, mas limitando-o
severamente, não permitindo que o acusado fosse torturado mais de uma vez e
proibindo ferimentos sangrentos (v. Testas, op. cit.). Deve-se portanto
à Inquisição o primeiro passo efetivo que se deu contra o uso da
tortura, o que deveria ser considerado um marco na história dos direitos
humanos. A tortura ilimitada foi depois reintroduzida pelos comunistas, na
Rússia, sendo seu exemplo imitado em seguida pelos nazistas e fascistas.
• O processo
de Galileu foi um caso de perseguição inquisitorial. - Bem ao
contrário, o processo foi uma pizza, uma farsa concebida pelo Papa -
padrinho de Galileu - para que seu protegido se livrasse de um grupo de
inquisidores fanáticos mediante uma simples declaração oral sem efeitos
práticos, após a qual ele pôde continuar divulgando suas idéias sem que ninguém
voltasse a incomodá-lo (v. Pietro Redondi, Galileu Herético, trad.
Júlia Mainardi, São Paulo, Companhia das Letras, 1991).
• [Acréscimo da 2-
ed.] A Inquisição espanhola foi um momento culminante da violência
institucionalizada, comparável ao comunismo e ao nazismo. - Conversa mole.
A Inquisição espanhola mandou executar, no total, não mais de 20 mil pessoas em
quatro séculos, isto é, em média, quatro por ano (v. Henry Kamen, The
Spanish Inquisition. A Historical Revision, New Haven and London, Yale University Press, 1997).
Os philosophes de modo
geral não ignoram essas coisas, mas falar delas não é bom para a sua saúde e
suscitaria desconforto na platéia.